Olho no lance

"Na luta contra as fake news, paternalismo com relação ao eleitor é um erro"

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24 de outubro de 2021, 9h35

O vice-procurador-geral Eleitoral, Paulo Gonet Branco, costuma dizer que o Ministério Público Eleitoral — o qual ele representa junto ao TSE — deve ser um fiscal imparcial do processo eleitoral. Isso não significa, porém, abrir mão de ser rigoroso com eventuais desvios durante o pleito. Nas eleições, "o acompanhamento das redes sociais é uma necessidade", diz ele, em entrevista à ConJur, a primeira desde que assumiu o cargo, no dia 2 de agosto deste ano.

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"Cabe ao Ministério Público ficar ainda mais atento do que sempre esteve para garantir a lisura do procedimento, a igualdade de oportunidade dos candidatos, e garantir também que os eleitores não serão afetados na sua autonomia, na sua liberdade de decidir", afirma ele.

Para isso, é essencial não "infantilizar" o eleitor. As eleições colocam em conflito princípios centrais do Direito, como a igualdade de oportunidades dos candidatos, liberdade de expressão e liberdade de informação, afirma. "O ponto de partida nessa discussão é considerar que o eleitor é alguém que não vai ser enganado como uma criança pode ser. Temos que partir do pressuposto de que o eleitor é alguém que tem capacidade de reflexão, que é isso o que define o adulto autônomo."

Gonet, como é conhecido, é doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Direitos Humanos, pela University of Essex, do Reino Unido, e integrante do MP desde 1987.

Ele está convencido de que, mesmo com a profusão de notícias fraudulentas sobre o processo eleitoral, muitas delas divulgadas pelo próprio presidente da República, o eleitor saberá manifestar sua confiança nas urnas eletrônicas. "O processo de votação é sério, bem cuidado e, com certeza, mais seguro do que o processo alternativo tradicional, que existia antes da implementação da votação eletrônica", diz.

Leia os principais trechos da entrevista.

ConJur — Qual é o papel do Ministério Público no processo eleitoral?
Paulo Gonet Branco
Cabe ao Ministério Público ficar ainda mais atento para garantir a lisura do procedimento, a igualdade de oportunidade dos candidatos e garantir que os eleitores não sejam afetados na sua autonomia, na sua liberdade de decidir. A função do Ministério Público é atuar para que esse processo seja o mais fiel possível à vontade popular. Há uma preocupação com o fenômeno das fake news. Por que ele é tão relevante no âmbito eleitoral? Porque o bombardeio de notícias falsas pode fazer com que o eleitor suponha uma realidade não existente e, com isso, fazer uma escolha eleitoral que não corresponde ao que ele desejaria se ele conhecesse a realidade.

ConJur — O que mais preocupa em relação às fake news?
Gonet — 
Fake news não são a mesma coisa que opinião sobre fatos. Tem a ver com a difusão maliciosa de notícias que não são verdadeiras. Opiniões com as quais eu não concordo sobre fatos que a realidade apresenta não são fake news. Com relação à opinião sobre fatos, não pode haver o constrangimento dos poderes públicos sobre quem expõe essas ideias, desde que o faça dentro do padrão civilizatório que a legislação impõe para todos.

ConJur — Vivemos um momento em que o processo eleitoral está sob ataque do mais alto escalão da República. Acredita que a reação das autoridades da Justiça Eleitoral foi suficiente para afastar essas pressões? A campanha contra as eleições já está esgotada?
Gonet —
Estamos em um momento em que, graças a uma atuação bem concebida e bem desenvolvida das autoridades eleitorais, várias dúvidas que poderiam ocorrer às pessoas estão afastadas pelas informações sobre as garantias de idoneidade do processo de votação. Sou muito otimista com relação à segurança que o cidadão tem quando ele se vale do processo informatizado de votação, que já perdura no Brasil há décadas. O TSE criou uma comissão de transparência eleitoral, que é composta não só por quem atua na Justiça Eleitoral, como profissional do Direito, mas também por profissionais da área técnica, da área de informática, professores universitários e até mesmo por órgãos incumbidos de propiciar a segurança. Isso já gerou nas pessoas uma convicção de que o processo de votação é sério, bem cuidado e, com certeza, mais seguro do que o processo alternativo tradicional, que existia antes da implementação da votação eletrônica.

ConJur — Qual sua opinião a respeito da nova reforma eleitoral? Do que o processo eleitoral precisa?
Gonet Espero que haja um aperfeiçoamento daqueles arranjos normativos que têm apresentado problemas, para que a vida político-partidária corresponda às expectativas do cidadão. A proibição da coligação é um avanço, no intuito de conferir maior relevância ao partido político, que faz a interface entre o mundo político e o cidadão. Na medida em que a proibição das coligações é apontada como um elemento que favorece esse propósito de fortalecer essa ligação do indivíduo, do cidadão, com os poderes políticos, é bem-vinda.

ConJur — O país poderia ter menos partidos políticos?
Gonet
A multiplicidade de partidos torna a governança mais difícil. A necessidade inerente de um sistema democrático de acordos, de conversas entre os representantes populares, fica dificultada quando temos uma infinidade de partidos, especialmente se esses partidos não correspondem, necessariamente, a uma pauta de valores específicos de grupos da sociedade.

ConJur Acredita que pode haver algum avanço no sentido de que a Justiça Eleitoral, ou o próprio Parlamento, imponha cláusulas de barreira para a formação de partidos?
Gonet
A formação de partidos, em si, não é ilegítima, pelo contrário. Um dos valores constitucionais é a pluralidade de ideias e de mecanismo de representação de interesses na sociedade. O problema vai acontecer quando a multiplicidade de partidos já não corresponder a esse propósito da pluralidade que o constituinte deseja. Aí encontraremos as situações que são nocivas para o próprio funcionamento do Estado Democrático. Temos que estar prontos para aplaudir não a redução em si do número de partidos, mas a redução dos partidos que não correspondem à necessidade de representação de interesses, de valores e ideias de grupos da sociedade.

ConJur Qual sua visão sobre as discussões para a mudança no sistema de governo, como a do semiparlamentarismo?
Gonet
Ninguém é ingênuo nessa discussão para imaginar que exista um modelo perfeito de relacionamento entre os Poderes com relação ao sistema parlamentarista, semiparlamentarista ou presidencialista. Essa é uma opção que os poderes políticos devem tomar e eu tenho certeza que eles estão bastante conscientes de que todas as opções têm suas vantagens, seus riscos e seus desafios próprios.

ConJur A Câmara dos Deputados aprovou uma proposta de quarentena de quatro anos para que juízes, policiais e membros do Ministério Público possam se candidatar a cargos públicos. Como o senhor vê esse tipo de restrições na legislação eleitoral?
Gonet
Para que essas medidas de quarentena sejam legítimas, é preciso que haja um juízo de ponderação bem estrito e bem cuidado das vantagens e das desvantagens que elas impõem e das expectativas que se têm com essas quarentenas. Se for optar por impor uma quarentena, que ela seja razoável. Não se deve pôr restrição à participação política de cidadãos que não seja aquela estritamente necessária para o bom funcionamento do processo eleitoral.

É preciso ter sempre em mira que a quarentena impõe uma restrição significativa para o direito de pessoas e, no caso de juízes, promotores, delegados de polícia, são pessoas qualificadas, que podem emprestar a sua energia, o seu talento, a sua história de vida e a sua experiência profissional para o processo político.

ConJur Foi publicada uma pesquisa mostrando que desde 2010 o Congresso aprovou em média sete mudanças nas regras eleitorais por ano. Como a Justiça Eleitoral fixa jurisprudência em um quadro como esse?
Gonet O problema da instabilidade legislativa é um drama que atinge qualquer área da vida na sociedade. Sempre que um determinado setor convive com mudanças cotidianas do que é devido, do que é certo, do que é proibido, as incertezas se tornam cada vez mais acentuadas, e isso não é bom. Até para que as leis sejam bem obedecidas é preciso que elas sejam conhecidas.

Se há uma mudança constante, uma inflação normativa desenfreada, isso em nada ajuda os objetivos do Estado de Direito e as necessidades de segurança jurídica que o Estado de Direito deve propiciar. Esse esforço de consolidação no Código Eleitoral pode ser uma tentativa de tornar mais estável o universo normativo no campo eleitoral.

ConJur A legislação eleitoral é muito restritiva em termos de comunicação dos candidatos, como a proibição de entrevistas antes do período eleitoral. Isso não ajuda a disseminar fake news?
Gonet Estamos diante de um caso de conflito entre princípios que são centrais para o Direito Eleitoral, como o princípio da igualdade de oportunidades dos candidatos, princípio da liberdade de expressão e liberdade de informação. Sem informação e sem liberdade para expor a informação, como é que o eleitor vai poder tomar uma decisão consciente?

Por outro lado, há distorções no processo de difusão de ideias, pois existem alguns candidatos que têm acesso mais facilitado aos meios de comunicação, às redes sociais, e eles acabam tendo uma exposição maior para um público que pode ficar com uma visão unidimensional da realidade. Se apenas alguns conseguem chegar ao público, o público também não vai estar bem informado. Encontrar essa sintonia fina é um desafio constante na hora de interpretar e aplicar a legislação.

Não podemos imaginar que o eleitor é infantil. O paternalismo com relação ao eleitor é um erro. O ponto de partida nessa discussão é considerar que o eleitor é alguém que não vai ser enganado como uma criança pode ser. Temos que partir do pressuposto de que o eleitor é alguém que tem capacidade de reflexão, que é isso o que define o adulto autônomo.

ConJur — Qual sua visão sobre a proposta de restrição da publicação de pesquisa até a antevéspera das eleições?
Gonet A pesquisa eleitoral é importante porque o cidadão vai verificar se o seu candidato tem chances ou não de ser eleito, que opções ele tem de viabilidade. Para isso, é preciso que a pesquisa seja confiável. Deve-se ter uma abertura completa de como essas pesquisas são feitas, deve-se indicar da forma mais clara possível a realidade das possibilidades de equívoco. A própria exposição das histórias de erros nas pesquisas eleitorais não podem ser furtadas do conhecimento do eleitor.

Se ele tem a consciência de que a pesquisa eleitoral não é um algoritmo, se a pesquisa eleitoral valesse as eleições, para que a gente ia votar? Bastava a pesquisa. Se ele tem consciência de que a pesquisa eleitoral é uma aproximação que muitas vezes erra fragorosamente nas suas previsões, por que impedir que ele tenha esse dado a mais para tomar a sua decisão?

ConJur O Ministério Público faz fiscalização nas redes sociais?
Gonet  O acompanhamento das redes sociais é uma necessidade, e elas próprias estão imbuídas desse espírito de que têm que ter um mínimo de governança para evitar que o eleitor fique mistificado por dados que não são próprios. O grande problema das redes sociais está nos algoritmos. As redes sociais têm interesses econômicos, os algoritmos fazem com que você receba informações que são colhidas por essas redes sociais a partir das preferências que você revela quando você atua dentro dessas redes. O problema é que no plano eleitoral isso tem sido apontado como um fator para que a pessoa acredite que vive em uma bolha em que todo mundo pensa da mesma forma. E, eventualmente, com discursos que são agressivos a quem pensa de modo diferente. Dá uma impressão de que todo mundo é igual a você e quem não é igual a você está errado. Esses mecanismos que as redes sociais propiciam merecem um cuidado especial. O TSE tem feito reuniões com representantes dessas redes sociais e percebo que eles têm uma preocupação de direcionar o usuário para informações confiáveis.

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