Embargos Culturais

Monteiro Lobato no banco dos réus

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

24 de outubro de 2021, 8h00

Os embargos culturais desta semana enfrentam um recorrente problema historiográfico. Refiro-me às armadilhas quando julgamos pessoas e seus atos em contextos distintos dos quais essas pessoas viveram e esses atos foram praticados. Experiências humanas perdem a contextualização, reduzem-se a fragmentos, perdendo suas identidades, em processo de desintegração caótico e irradiador, a exemplo do que ocorre com as próprias coisas e objetos. Não há texto sem contexto, e também tudo decorre de um pretexto. Perdão pelo lugar comum.

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No entanto, porque inconscientemente consideramos o passado como um modelo para o presente, com alguma injustiça colocamos em cena personagens e mentalidades, como se fossem peças de uma mosaico opaco e indefinido, identificadores de uma galeria de tipos históricos. Uma representação histórica talvez contenha menos do que se representa, em favor daquele que constrói a representação, qualificando-se a natureza lacunar do esforço de compreensão do passado. Há um juízo moral na história, e desse juízo moral não se consegue escapar. A história é muito mais o presente do que o passado. O passado é fixado por perguntas que o presente levanta. Cada tempo tem sua história.

É nesse contexto substancialmente perturbador que se pretende inserir debate a respeito de fragmento da obra do escritor José Bento Monteiro Lobato, quando se imputou conteúdo racista em excertos de literatura produzida para o público infantil, destinatário de obra que transcendeu no tempo e que hoje ainda é apreciada, pelo que são inegáveis os efeitos que suscita.

Lobato nasceu em Taubaté, São Paulo, em 18 de abril de 1882. Registrado como José Renato Monteiro Lobato, mais tarde mudou o nome para José Bento Monteiro Lobato, ao que consta para valer-se das iniciais JBML e usar uma bengala deixada pelo pai, cujo nome era José Bento. Pressionado pelo avô, o Visconde de Tremembé, seguiu para São Paulo onde bacharelou-se.

O desinteresse de Monteiro Lobato pelo curso de Direito era total. Parece que apreciava apenas um professor, Pedro Lessa, que lecionava Filosofia do Direito. Durante os anos de faculdade, Monteiro Lobato aprofundou amizades com as quais o interesse comum era a Literatura. Concluído o curso de Direito, retornou a Taubaté; foi festivamente recebido como Bacharel. Nomeado promotor, mudou-se para Areias, no interior paulista. Casou-se em 1908 e no ano seguinte herdou a fazenda do avô. Deixou o Ministério Público e tornou-se fazendeiro.

Em meados da década de 1910 começou a publicar contos, crônicas, um pouco de crítica. Após vender a fazenda mudou-se para São Paulo, fundou uma editora em 1918. Faliu sete anos depois e mudou-se para o Rio de Janeiro. Na então capital da República colaborou na imprensa com certo destaque. Em 1926 seguiu para Nova Iorque e lá morou até 1931. Foi adido comercial brasileiro. Impressionado com o crescimento econômico dos Estados Unidos, dedicou-se a fazer proselitismo em torno da exploração do petróleo e do ferro. Em virtude de intransigente luta em prol de soberania nos direitos de exploração do subsolo foi preso, em 1941, por três meses. Seguiu para a Argentina em 1946, lá vivendo um ano. Ao retornar ao Brasil era aclamado autor de livros infantis. Morreu em 4 de julho de 1948, derrubado por um espasmo vascular.

O curso jurídico foi uma imposição do avô, de quem herdou a fazenda. Depois de rápida passagem por Taubaté, terra do avô, foi designado promotor em Areias. À época, virada do século, o Ministério Público não tinha o perfil que tem na contemporaneidade. Não gostava do júri. Detestava acusar os pobres réus. Afastava-se do tabelião. Não tinha vínculo ideológico com o Juiz. Não lia autores de Direito. Jamais escreveu artigo jurídico. Lobato deixou Areias e a vida de promotor, para a qual não se sentia talhado.

Carregado de desilusão, de pessimismo, e de ceticismo, Lobato lutou por superação desse vazio, o que suscitou uma literatura crítica. É o caso do sublime conto Júri na Roça, e de tantas outras peças literárias absolutamente irônicas e mordazes. Por exemplo, Lobato foi um crítico agudo do modelo tributário. Em Ideias de Jeca Tatu ao descrever a chegada da família real portuguesa no Brasil, Lobato chama a atenção para o desembarque de um personagem: “O Fisco um canzarrão tremendo de dentuça arreganhada é conduzido no açamo por vários meirinhos.”   

Lobato viveu num contexto muito diferente do nosso contexto atual. Seu primeiro livro para crianças, Reinações de Narizinho, foi lançado em 1920, ano marcado pelo antagonismo entre os tenentes rebeldes e o Presidente Epitácio Pessoa, ponto de partida para uma década absolutamente difícil, e que se desdobrou no movimento conduzido a partir do Rio Grande do Sul por Getúlio Vargas. Lobato combateu Vargas, especialmente por causa da resistência deste último em reconhecer a existência do petróleo brasileiro, posição que alterou substancialmente na década de 1950.

A obra infantil de Monteiro Lobato também alcançou um grande número de adaptações, que fizeram muito sucesso, a exemplo de Dom Quixote das Crianças, Os Doze Trabalhos de Hércules, Fábulas, Aventuras de Hans Staden, Peter Pan, História do Mundo para as Crianças, O Minotauro. Também criou um universo infantil absolutamente contagiante para muitas gerações, a exemplo das estórias que lemos em Viagem ao Céu, O Saci, O Picapau Amarelo, A Reforma da Natureza, A Chave do Tamanho, A Reforma da Natureza, Memórias da Emília, Caçadas de Pedrinho.

Este último, Caçadas de Pedrinho, cujo conteúdo também é questionado, originou-se de um livro escrito ainda em 1924, A Caçada da Onça. A versão final é de 1933. Nesse livro os personagens mirins caçam onças-pintadas, porcos do mato, rinocerontes. Acusarmos Monteiro Lobato por incitação ao crime ambiental é incriminação que desconsidera o delito historiográfico de julgarmos as pessoas fora dos contextos e ambientes nos quais viveram. No entanto, porque há também gravíssimas imprecações de fundo racista, a questão pode suscitar uma outra abordagem, necessária.

A discussão relativa ao racismo em Lobato coloca-nos, entre tantos outros problemas, uma questão historiográfica de difícil resolução. Não se pode isolar Lobato do contexto no qual viveu, ambiente de herança histórica, maldita, e que percebia a herança escravocrata dentro de uma naturalidade que hoje não conseguimos compreender, e que sistematicamente devemos denunciar. Colocar Lobato no banco dos réus, nesse sentido, pode de algum modo ser atitude presunçosa de nosso tempo, que detém algum benefício de retrospecto. Não se faria justiça à imensa colaboração crítica desse grande escritor, no contexto de nossa história literária.

Por outro lado, há um elemento perverso de recepção de textos, por intermédio do qual não nos libertamos de nosso tempo e de nossas instâncias e categorias de pensamento. Não se pode dissimular que há um conteúdo ofensivo em fragmentos da obra questionada, e que se deve mitigar a dor e a humilhação dos atingidos, porque efetivamente existentes. Para muitos, a exposição a esses conteúdos ofensivos pode resultar em humilhações e constrangimentos, que não se pode simplesmente desprezar. O problema é gravíssimo.

O que fazer? A solução média, a meu ver, pode não contemplar o banimento ou a censura pura e simples da obra. Penso que podemos tentar construir mecanismos de esclarecimento, com a necessária mediação das leituras dos textos do autor questionado, instruídas também por notas explicativas circunstanciais. Pode-se cogitar de um espaço de consenso e de discussão, que leve em conta a dor dos atingidos, e o legado também indiscutivelmente positivo do escritor questionado, construindo-se uma agenda compreensiva que possa de igual modo nos orientar para o enfrentamento de outros problemas, também muito graves, a exemplo da questão do ataque às estátuas.

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