Opinião

O compliance e seus desdobramentos normativos

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23 de outubro de 2021, 14h25

O compliance, tema associado à ideia de governança corporativa, vem ganhando paulatino espaço na estrutura normativa brasileira, regulando um cenário de relações simbióticas que se estabelecem entre a esfera pública e a privada.

Em uma perspectiva pública, a retórica normativa sempre estabeleceu que princípios basilares estruturantes da Administração Pública deveriam nortear as ações dos seus agentes, vetores esses que, como os da moralidade e impessoalidade, dão a pedra de toque de uma exigência ética associada ao ideário da governança.

A esfera privada, de seu turno, ainda que se oriente primacialmente para o lucro, não o pode perseguir a qualquer preço, estando também limitada por standarts e preceitos normativos que tolhem liberdade absoluta de seus agentes.

É nesse cenário que o tema compliance e governança, tanto na perspectiva pública como privada, tem tomado a pauta das discussões jurídicas hodiernas, já que coloca a ética como preceito fundante nas relações jurídicas multifatoriais possíveis.

Assim é que, inicialmente contemplado na Lei Anticorrupção, para o fim de potencialmente atenuar eventuais reprimendas por práticas corruptivas por parte de pessoas jurídicas privadas, o tema compliance foi se espraiando em outros diplomas.

Nesse contexto, o Decreto regulamentador n° 8.420/2015, sinteticamente, o conceituou como um programa de integridade que estabelece um conjunto de mecanismos voltados ao cumprimento de leis e normas por uma pessoa jurídica, lançando também os parâmetros obrigatórios para a estruturação do instrumento.

Calha ver que para que um programa de compliance implique em eventuais benefícios legais aos seus aderentes, imprescindível que seja efetivo e real, denotando um autêntico compromisso empresarial com vetores indicativos de responsabilidade social empresarial., donde resulta que programas meramente nominais ou formais, orientados unicamente para a dissimulação da existência de uma cultura corporativa inexistente, poderão implicar, ao contrário do intentado, em eventual agravamento das sanções potencialmente cabíveis, já que se trataria de uma prática empresarial em dissonância com a boa-fé objetiva que lhe deveria notar [1].

Noutra perspectiva, o fato é que o artigo 7º, VIII, da Lei nº 12.846/13 ou mesmo o Decreto Federal nº 8.420/2015 não dimensionam o efetivo impacto que a adoção de um programa de compliance irá ocasionar na dosimetria sancionatória em caso de prática de eventuais atos lesivos, de modo que caberá às autoridades responsáveis pelo julgamento aferir o seu grau e a extensão para a sua escorreita aplicabilidade.

De qualquer sorte, a avaliação da adequação do programa de integridade tem seus parâmetro estabelecidos no Decreto Federal nº 8.420/2015, destacando-se os seguintes: 1) comprometimento e apoio da alta direção da pessoa jurídica ao programa; 2) universalidade na aplicação de padrões de conduta, código de ética, políticas e procedimentos de integridade; 3) possível extensão dos padrões de conduta, código de ética e políticas de integridade estendidas, a terceiros, tais como, fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários e associados; 4) treinamentos e análise periódicas sobre o programa de integridade e sua adequação; 5) registros e controles internos que assegurem a confiabilidade de relatórios e demonstrações financeiros da pessoa jurídica; 6) procedimentos específicos preventivos da ocorrência de fraudes em licitações, contratos e quaisquer outras interações com o setor público, ainda que intermediada por terceiros; 7) independência, estrutura e autoridade da instância interna responsável pela aplicação do programa de integridade e fiscalização de seu cumprimento; 8) canais de denúncia de irregularidades, abertos e amplamente divulgados a funcionários e terceiros, bem como a existência de mecanismos destinados à proteção de denunciantes de boa-fé; 9) medidas disciplinares em caso de violação do programa de integridade, conjugada com procedimentos que assegurem a pronta interrupção de irregularidades e a tempestiva remediação dos danos gerados; 10) diligências apropriadas para contratação e, conforme o caso, supervisão, de terceiros que mantenham relação com a pessoa jurídica; 11) verificação, durante os processos de fusões, aquisições e reestruturações societárias, do cometimento de irregularidades ou ilícitos ou da existência de vulnerabilidades nas pessoas jurídicas envolvidas; e 12) transparência da pessoa jurídica quanto a doações para candidatos e partidos políticos [2].

No tocante a microempresas e empresas de pequeno porte se reduzem as formalidades para a análise da adequação do compliance, dispensando-se, especificamente: 1) a extensão de padrões de conduta, código de ética e políticas de integridade a terceiros; 2) análise periódica de riscos para adaptações necessárias ao programa de integridade; 3) independência, estrutura e autoridade da instância interna responsável pela aplicação do programa de integridade e fiscalização de seu cumprimento; 4) canais de denúncia de irregularidades, abertos e amplamente divulgados a funcionários e terceiros e existência mecanismos destinados à proteção de denunciantes de boa-fé; 5) diligências apropriadas para contratação e, conforme o caso, supervisão, de terceiros; 6) verificação, durante os processos de fusões, aquisições e reestruturações societárias, do cometimento de irregularidades ou ilícitos ou da existência de vulnerabilidades nas pessoas jurídicas envolvidas; e 7) o monitoramento contínuo do programa de integridade visando seu aperfeiçoamento na prevenção, detecção e combate à ocorrência dos atos lesivos.        

Em complemento a essa tendência, a nova Lei federal n° 14.133, de 1º de abril deste ano, que deu nova roupagem jurídica para o tema das licitações e contratos administrativos, consolidou os programas de compliance e integridade no âmbito das contratações públicas no Brasil, o que se nos afigura um notável avanço.

Na nova Lei de Licitações, o tema compliance espraia seus efeitos no tocante à obrigatoriedade da existência de tais programas pelas pessoas jurídicas que potencialmente celebrem contratos de grande vulto com o poder público, além de ser estabelecido como critério de desempate no julgamento de propostas e, bem assim, como atenuante em sanções administrativa, além de requisito para reabilitação de contratado perante à Administração Pública acaso tenha sofrido sanção administrativa.

Em relação à sua obrigatoriedade em contratações públicas de grande vulto, o artigo 25, §4º, da Lei federal n° 14.133/2021 estabeleceu que o programa de integridade deverá ser implantando pelo licitante vencedor, no prazo de seis meses, contado da celebração do contrato, conforme regulamento que disporá sobre as medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo seu descumprimento.

Já o artigo 60 da Lei federal n° 14.133/2021 introduziu o compliance como um critério de desempate entre duas ou mais propostas para declarar o licitante vencedor, disposição essa adquire inegável caráter de fomento para a adoção de tais programas.

No mais, a nova Lei Geral de Licitações Públicas e Contratos Administrativos, tal qual a Lei Anticorrupção, ainda prevê, em seu artigo 156, §1º, V, que na aplicação das sanções administrativas serão consideradas a implantação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade, conforme normas e orientações dos órgãos de controle. Tal dispositivo, por óbvio, tem o propósito de implicar na atenuação das potenciais sanções acaso a pessoa jurídica a ser sancionada tenha implementado um autêntico programa de integridade.

Em arremate, a nova Lei Geral de Licitações Públicas também previu que a implantação/aperfeiçoamento de programas de integridade e compliance servirá como requisito à reabilitação do interessado para contratar novamente com o ente público. Nesse prisma, o artigo 163, parágrafo único, da Lei Federal n° 14.133/2021, estabeleceu que "a sanção pelas infrações previstas nos incisos VIII e XII do caput do artigo 155 desta lei exigirá, como condição de reabilitação do licitante ou contratado, a implantação ou aperfeiçoamento de programa de integridade pelo responsável".

Inegável que, sem embargo dos potenciais benefícios legais obtidos pela adoção de tais compromissos de integridade, a efetiva adoção de tais mecanismos pode vir a impactar a imagem reputacional da empresa, ativo imaterial que tem também nítidos desdobramentos econômicos.

Com a adoção de mecanismos de compliance em suas atividades, portanto, as empresas e instituições promovem a boa gestão da própria imagem, ligando-a a responsabilidade social corporativa, apartando-se de possíveis prejuízos morais e materiais decorrentes da associação com escândalos de corrupção.

A gestão da imagem e o compliance surgem, dessa feita, como importante ferramenta de comunicação, impulsionando a imagem corporativa e valorizando a organização tanto perante o público interno, quanto externo. Esse pronunciado efeito midiático evidentemente agrega valor imaterial à pessoa jurídica, já que uma boa imagem empresarial é capaz de a um só tempo atrair novos investidores e consumidores.

Corolário disso é que compliance e governança corporativa se apresentam como conceitos associados pelos quais a organização sistêmica da pessoa jurídica alinha interesses dos proprietários, conselho de administração, diretoria e órgãos de controle em torno de uma base principiológica que se orienta teleologicamente para agregar valor social às atividades econômicas da empresa. Derivam daí, como valores fundamentais, transparência, integridade, equidade, bem como responsabilidade e comprometimento dos gestores e da alta administração com a ética enquanto vetor fundamental dos negócios [3].

Lado outro, como dantes assinalado, ainda que o conceito de compliance e governança estejam de certa forma relacionados às relações das pessoas jurídicas com o poder público, o fato é que sua estrutura fundante não deve apenas se circunscrever apenas à esfera privada, sendo o ideário de governança em tudo assimilável pelo poder público, como se nota mesmo das próprias disposições constitucionais que organizam o poder público.

Desse modo, a base principiológica administrativa, a necessidade de concursos públicos e licitações para a contratação de agentes, bens e serviços, além de normas sobre responsabilidade fiscal e mesmo disposições punitivas, formam um conjunto normativo que tem a governança pública como pano de fundo.

Nesse diapasão é que a Instrução Normativa Conjunta do MP/CGU nº 1 (Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e a Controladoria-Geral da União) consigna que os órgãos e entidades do Poder Executivo federal deverão adotar medidas para a sistematização de práticas relacionadas à gestão de riscos, controles internos e governança, o que em boa parte se faz pelo direito público em geral.

De qualquer modo, veja-se que o Estatuto das Estatais (Lei nº 13.303/16) é expresso ao adotar tal nomenclatura e dispor sobre regras de governança corporativa, transparência, gestão de riscos, controle interno, composição da administração e proteção de acionistas.

O mesmo diploma ainda faz referência direta ao compliance ao dispor que um segmento especificamente destinado a esse fim se reportará ao conselho de administração em situações de suspeita de irregularidades da alta direção e omissão na tomada das medidas necessárias (artigo 9º, §4º, da Lei nº 13.303/16).

Em suma, ainda que o compliance e a governança sejam temas que sempre permearam a ordem jurídica, na presente quadra temos visto uma mudança de mentalidade que indica a premente necessidade da adoção de tais mecanismos para diminuição de conflitos de interesses e elevação da cultura da integridade.


[1] MENDES, Francisco Schertel; CARVALHO, Vinicius Marques de. Compliance: concorrência e combate à corrupção. São Paulo: Trevisan Editora, 2017, p.160.

[2] artigo42 do Decreto nº 8.420/2015.

[3] Cf. O nosso Lei Anticorrupção, impactos sistêmicos e transversais, Leme (SP): JHMizunho, 2019, 1ª edição, p.161/168.

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