Opinião

A Lei 14.195/21 e a tutela coletiva dos investidores no mercado de capitais

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23 de outubro de 2021, 7h13

A Lei 14.195/21 operou uma mudança dramática no instituto da tutela coletiva dos investidores no mercado de valores mobiliários. Com a alteração do artigo 1º da Lei 7.913/89, que reconhecia a legitimidade do Ministério Público para propor a ação civil pública voltada a prevenir e reparar violações a direitos oriundos das relações de investimento, também a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), outrora incumbida apenas de provocar aquele legitimado ao ajuizamento, ficou autorizada a mover, por sua própria iniciativa, as medidas judiciais dessa natureza que reputar cabíveis.

Em seu atual formato, de redação dada pelo artigo 6º da Lei 14.195/21, o caput do artigo 1º da Lei 7.913/89 dispõe que "sem prejuízo da ação de indenização do prejudicado, o Ministério Público ou a Comissão de Valores Mobiliários, pelo respectivo órgão de representação judicial, adotará as medidas judiciais necessárias para evitar prejuízos ou para obter ressarcimento de danos causados aos titulares de valores mobiliários e aos investidores do mercado (…)". De imediato, constata-se que a nova formulação do dispositivo o aproxima da lei estrangeira que inspirou a sua elaboração — o Securities Act de 1933, dos Estados Unidos —, cuja Section 20(b) também atribui à sua Securities and Exchange Commission (SEC) autoridade equiparada à CVM no Direito brasileiro, a legitimidade para adotar medidas judiciais objetivando indenização aos investidores vítimas de danos coletivos [1].

Além de a previsão de legitimidade ativa à CVM para a postulação coletiva em juízo apresentar à autarquia desafios inerentes à magnitude e complexidade dessa atribuição, a nova redação do artigo 1º, caput, da Lei nº 7.913/89 inaugura um novo — e certamente polêmico — capítulo na relevante discussão sobre a legitimação ativa dos entes autorizados pela lei genérica a propor a ação civil pública a postular, também, a tutela coletiva dos investidores no mercado de valores mobiliários.

Em síntese, há décadas a doutrina discute se a extensão da legitimidade ativa para postular a tutela coletiva dos investidores deve-se aferir apenas com base no teor expresso do artigo 1º da Lei nº 7.913/89, contexto em que seria restrita ao Ministério Público [2], e, após a sua alteração pela Lei nº 14.195/21, à CVM; ou se, alternativamente, seria possível uma interpretação sistemática da lei específica com outras normas genéricas regentes da ação civil pública, hipótese que possibilitaria aos legitimados extraordinários integrantes do rol do artigo 5º da Lei nº 7.347/85 adotar as medidas previstas na Lei nº 7.913/89 [3] [4].

Longe de proporcionar ao debate uma resposta definitiva, a reformulação do artigo 1º da Lei nº 7.913/89 abre espaço para um aprofundamento substancial dos argumentos trazidos por ambos os lados da doutrina. Afinal, se a extensão do grupo de legitimados ativos à tutela coletiva dos investidores tem como premissa fundamental o papel atribuído àquele dispositivo — se encerrando um sistema de normas específico e autossuficiente ou uma norma passível de complementação —, então a nova redação atribuída pela Lei 14.195/21 poderá ser aproveitada para a defesa de ambas as posições doutrinárias.

De um lado, é possível, e mesmo provável, que os defensores da interpretação do artigo 1º da Lei 7.913/89 como uma norma específica, autossuficiente e impassível de complementação pelos dispositivos da lei genérica vejam na inclusão da CVM (e apenas da CVM) como legitimada extraordinária nos termos daquele dispositivo uma reafirmação de que apenas as pessoas ali mencionadas seriam autorizadas a mover a ação civil pública em substituição processual de investidores lesados ou sob risco de lesão. Ora, se o legislador ordinário teve a oportunidade de incluir os entes legitimados à tutela coletiva na forma do artigo 5º da Lei nº 7.347/85, mas optou por estender seu escopo unicamente à CVM, por que insistir na complementação de norma específica mediante aplicação da lei genérica?

O silêncio do novo artigo 1º da Lei nº 7.913/89 sobre a legitimidade ad causam, por exemplo, das associações para mover ação civil pública em prol de classe de investidores não importa necessariamente colocar uma pá de cal sobre os argumentos que sustentam essa posição. Muito ao contrário: partindo do pressuposto de que o dispositivo em questão não exaure a legitimidade extraordinária à tutela coletiva no mercado de capitais, mas apenas complementa o que dispõe a esse respeito a lei genérica, é perfeitamente possível argumentar que a sua reformulação pela Lei nº 14.195/21 não abole, mas, sim, reforça a necessidade de uma interpretação sistemática da Lei nº 7.913/89 com as normas genéricas previstas na Lei nº 7.347/85 e no Título III do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Há alguns elementos das Leis 7.913/89 e 7.347/85 que corroboram a possibilidade de interpretar sistematicamente a norma regente da legitimidade ativa para a tutela coletiva dos investidores. Primeiramente, o artigo 3º da Lei nº 7.913/89, inalterado pela Lei nº 14.195/21, prevê a aplicação, no que couber, das normas contidas na Lei nº 7.347/85. Esta, a seu turno, contém em seu artigo 1º, IV — incluído pela Lei nº 8.078 de 1990, após a entrada em vigor da Lei nº 7.913/89 —, hipótese expressa de cabimento de ação civil pública "de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados (…) a qualquer outro interesse difuso ou coletivo", aí incluídos, logicamente, aqueles oriundos das relações jurídicas no mercado de valores mobiliários.

Além de os dispositivos de lei acima ressaltados indicarem a possibilidade de uma interpretação sistemática das Leis 7.913/89 e 7.347/85, há um motivo adicional para se considerar o papel do artigo 1º daquela como complementar, e não exaustivo da disciplina da legitimidade ativa à tutela coletiva dos investidores: caso inexistisse essa norma, tanto a legitimação do Ministério Público como da CVM para propor ação civil pública em prol de classe de investidores restariam inviabilizadas ou gravemente restringidas.

Com relação à CVM, não fosse pela nova redação do artigo 1º da Lei nº 7.913/89, não haveria previsão legal para a sua legitimação extraordinária em qualquer outro dispositivo, restando impossível a sua atuação como substituta processual dos investidores por força do artigo 18 do CPC. No caso do Ministério Público, a restrição da sua capacidade de postular a tutela coletiva dos investidores decorreria da possível inexistência, em alguns casos, de relevante interesse social, requisito aplicado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal para legitimar a atuação de órgãos ministeriais em lides sobre direitos individuais homogêneos de natureza disponível [5] — o que, imagina-se, ocorrerá com frequência no âmbito do mercado de capitais.

Nesse contexto, parece ganhar força a interpretação do artigo 1º da Lei nº 7.913/89 não como previsão exaustiva de legitimação à tutela coletiva dos investidores, mas como autorização expressa para entes que, não fosse esse dispositivo, encontrariam obstáculos ao exercício dessa função.

A toda evidência, a discussão é altamente complexa e demandará esforços redobrados dos estudiosos, magistrados e demais autoridades na busca pela interpretação mais adequada do artigo 1º da Lei nº 7.913/89 à luz dos princípios cogentes do Direito brasileiro e das necessidades objetivas de um mercado de capitais em fase de expansão, amadurecimento e disseminação.

A tarefa torna-se ainda mais sensível considerando a multiplicação dos investidores de pequeno porte no mercado de valores mobiliários — justamente os que mais se beneficiarão de uma interpretação do artigo 1º da Lei nº 7.913/89 em harmonia com os valores constitucionais, e a consequente promoção de um sistema de tutela coletiva adequado e eficiente; e, simultaneamente, os que tenderão a ser mais prejudicados com o eventual descasamento da norma ordinária com a constitucional e a ausência de um tal mecanismo de resguardo dos seus direitos e interesses.


[1] "Com efeito, o artigo 20 (b) do Securities Act de 1932 legitima a Securities and Exchange Commission — SEC — (órgão regulador do mercado de capitais nos EUA) a tomar as medidas judiciais para impedir a prática de determinados atos lesivos aos investidores (mediante a "injunction"), assim como para reparar os prejuízos causados nos investidores, obrigando os que praticam determinados atos ilícitos a depositarem os lucros de tal forma obtidos ("disgorgement of profits")." (In: EIZIRIK, Nelson. Aspectos Modernos do Direito Societário. 1ª edição. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1992, p. 158)

[2] "Quanto à legitimidade das associações para ações de tutela de investidores de fundos, ela deve ser excluída do âmbito da Lei 7.913, de 7 de dezembro de 1989, que só trata da legitimação do Ministério Público, com ressalva da ação dos próprios prejudicados […]" (In: BERMUDES, Sergio. A legitimidade processual do Ministério Público e das associações na tutela do investidor de fundos. Revista Trimestral de Direito Civil. (v. 27, jul/set 2006), p. 123)

[3] "Artigo 5º – Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: I – o Ministério Público; II – a Defensoria Pública; III – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; IV – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; V – a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico".

[4] "Isso porque a doutrina entende que a legitimação mais ampla da Lei nº 7.347/85 aplica-se à Lei nº 7.913/89, quer porque aquela se aplica a todos os direitos e interesses difusos e coletivos, quer porque o próprio artigo 3º da Lei nº 7.913/89 expressamente se refere à aplicação, no que couber, da lei genérica: "À ação de que trata esta Lei aplica-se, no que couber, o disposto na Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985"." (In: GRINOVER, Ada Pellegrini. A Tutela Coletiva dos Investidores no Mercado de Valores Mobiliários: Questões Processuais. In: YARSHELL, Flávio Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. (coords.). Processo Societário. 1ª edição. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 46)

[5] "(…) Também não se pode estabelecer sinonímia entre interesse social e interesse coletivo de particulares, ainda que decorrentes de lesão coletiva de direitos homogêneos. Direitos individuais disponíveis, ainda que homogêneos, estão, em princípio, excluídos do âmbito da tutela pelo Ministério Público (CF, artigo 127). 5. No entanto, há certos interesses individuais que, quando visualizados em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, têm a força de transcender a esfera de interesses puramente particulares, passando a representar, mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, verdadeiros interesses da comunidade. (…) Em casos tais, a tutela jurisdicional desses direitos se reveste de interesse social qualificado, o que legitima a propositura da ação pelo Ministério Público com base no artigo 127 da Constituição Federal. Mesmo nessa hipótese, todavia, a legitimação ativa do Ministério Público se limita à ação civil coletiva destinada a obter sentença genérica sobre o núcleo de homogeneidade dos direitos individuais homogêneos. (…) 8. Recurso extraordinário a que se dá provimento." (RE 631111, Relator(a): TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 07/08/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014, grifo do autor)

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