Questão de gênero

Mediação penal aplicada à violência de gênero

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22 de outubro de 2021, 8h00

A prática cotidiana do trabalho com a violência doméstica e familiar contra as mulheres nas delegacia de polícia nos leva a crer que nem todos os conflitos familiares que nos são apresentados podem (ou devem) ser solucionados no âmbito do Direito Penal. Por mais que se tenha notado uma expansão de tipos penais relacionados à violência contra as mulheres (v.g. perseguição, violência psicológica, violência política), ainda é certo que há hipóteses em que não se configuram fatos típicos ou, mesmo que se configurem, não há interesse da comunicante na persecução penal, recusando-se ela a representar criminalmente, o que afasta a legitimidade da atuação do sistema de persecução penal (embora não impeça a concessão de medidas protetivas, nem tampouco o dever de atuação estatal).

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A raiz da violência de gênero é social, é estrutural e arraigada na forma como pessoas do gênero masculino e do gênero feminino se relacionam intimamente. Além disso, ainda que o casal se separe, os vínculos preexistentes podem subsistir, especialmente em se considerando a existência de filhos e patrimônio em comum. As relações perduram e nem mesmo punições exemplares garantem que não haverá reincidência do comportamento violento (seja com essa mesma parceira, seja com a próxima companheira).

Veja que não se está cogitando que pessoas agressoras fiquem impunes e não sejam responsabilizadas por seus atos. O que se pretende é discutir até que ponto o processo penal tradicional seria eficaz para garantir a paz social nestes casos. Seria cabível alguma atuação não punitivista do Estado?

Uma hipótese a se cogitar é a mediação penal. A mediação em matéria penal é um mecanismo alternativo ou supletivo ao processo criminal regulado pela Lei nº 13.140/15. Nela temos a atividade técnica exercida por terceiro imparcial que auxilia na identificação e solução da controvérsia.

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A ideia central da mediação é a criação de um ambiente em que se enfatize o diálogo entre os envolvidos e que se possa chegar a uma solução apta a refazer os elos rompidos pela prática do crime. Busca-se um entendimento entre as partes até mesmo como forma de prevenir eventuais futuras agressões.

Há grande resistência à aplicação da mediação no âmbito da violência doméstica e familiar contra as mulheres. Isso se deve ao fato de que há entendimento de que a mulher está em posição de vulnerabilidade e desigualdade na relação familiar. A negociação só pode ocorrer entre iguais. Além disso, acredita-se que a mediação não extinguiria a violência doméstica.

Não se pode fechar os olhos ao fato de que não necessariamente haverá a separação de agressor e vítima a partir do momento em que é registrado um boletim de ocorrência. Pelo contrário. Muitas mulheres ainda procuram as delegacias especializadas buscando uma solução para um conflito familiar, alegando não terem interesse em deixar o relacionamento, mas apenas que este deixe de ser abusivo. O traço comum entre as vítimas vulneráveis (idosos, crianças, mulheres) é o desejo de cessação da violência, não o desejo de rompimento do vínculo familiar.

Diante de casos dessa natureza, a intervenção estatal meramente punitivista poderia até mesmo gerar conflitos mais graves no seio familiar, dificultando a manutenção sadia das relações familiares subjacentes, que poderiam se restaurar após tratamento de outras áreas do conhecimento, tais como a Psicologia, a Sociologia e a Criminologia.

Perceba-se que não se está defendendo ou propondo que o Estado intervenha para fomentar a manutenção do relacionamento conjugal abusivo ou violento. O que está se cogitando é de uma forma de intervenção estatal para além do Direito Penal, que trabalhe vítima e pessoa agressora com vistas a estabelecer a possibilidade de diálogo e busca de solução que atenda à concepção de justiça de ambos.

Como as relações perduram, a mediação seria importante para evitar que novos conflitos se estabeleçam, que novos episódios de violência eclodam.

Negar às mulheres o acesso à mediação, por considerá-las frágeis, é um raciocínio que acaba por inferiorizá-la. O excesso de proteção pode desencadear a ausência de proteção, pois, a pretexto de proteger, acabar-se-ia por discriminar a mulher e até mesmo retirar-lhe o livre arbítrio. Seria como dizer que ela não tem capacidade para tomar decisões por conta própria.

Na mediação penal é possível que se discutam questões de gênero, questões sociais e até mesmo a relevância da paternidade participativa.

Não vislumbramos incompatibilidade entre a mediação em matéria penal e a Lei nº 11.340/06. Ao afastar a incidência da Lei nº 9.099/95 aos crimes que se processam sob a égide da Lei Maria da Penha, excluindo a aplicação de institutos despenalizadores (tais como suspensão condicional do processo, transação penal e conciliação), a Lei nº 11.340/06 não exclui outras formas de solução de conflitos. Cremos que, ao proibir a aplicação de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária ou substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa, não está o diploma legal proibindo também a justiça restaurativa, até porque a mediação penal tem previsão legal.

No sentido do afirmado, confira-se o Enunciado nº 23 do Fonavid: "A mediação pode funcionar como instrumento de gestão de conflitos familiares subjacentes aos procedimentos e processos que envolvam violência doméstica".

Vale salientar que no cotidiano das delegacias especializadas inúmeros são os casos de mulheres que nos procuram a fim noticiar que seus ex-companheiros, agora pais com guarda compartilhada dos filhos ou com direito de visitação, não têm cumprido as condições estabelecidas nos acordos ou decisões judiciais. Situações dessa natureza certamente encontram melhor solução na mediação, e não na seara da Justiça Criminal ou no campo das medidas protetivas de urgência, que não têm essa destinação, mas que, por vezes, são manejadas no intuito de compelir o pai a respeitar as condições estabelecidas. Utilizar-se das medidas protetivas e do Direito Penal para apaziguar tais lides acaba por banalizar tão importante instituto e por desrespeitar o princípio da intervenção mínima e da ultima ratio próprios do Direito Penal.

Assim, conclui-se que a aplicação da mediação aos casos que envolvam violência doméstica e familiar não apenas é possível, como também é desejável. Isso, claro, sem afastar a possibilidade de apreciação pelo Poder Judiciário quando necessário e também como forma de se adequar o Direito Penal a seu princípio da intervenção mínima e como forma de se satisfazer o anseio social das vítimas, que por vezes não têm interesse na simples punição do agressor.

Temos que a mediação seria uma alternativa ao Direito Penal, nos casos em que a própria vítima manifesta esse desejo, o desejo de uma solução para seu conflito mas não uma solução de continuidade para seu relacionamento. Por fim, vale pontuar que a mediação não pode ser palco para mais violência. Caso se vislumbre essa possibilidade, a mediação deve ser rechaçada.

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