Opinião

Direito e literatura em Tobias Barreto: uma breve reflexão

Autor

  • Lucas Hendricus Andrade Van den Boomen

    é advogado e consultor previdenciário bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais pós-graduado em Direito Previdenciário e Prática Previdenciária pela Faculdade Legale membro do grupo de estudos "Teoria Crítica e Constitucionalismo" da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro da Comissão de Direito Previdenciário da OAB-MG — Subseção Contagem.

22 de outubro de 2021, 6h02

Tobias Barreto de Meneses (Vila de Campos do Rio Real, 7 de junho de 1839 — Recife, 26 de junho de 1889), foi um intelectual profícuo que viveu no Brasil Império durante o século 19. Maiores detalhes sobre a sua biografia fugiriam ao objetivo deste texto. Todavia, nos interessam as suas facetas de jurista e poeta, entre as tantas outras que Tobias teve ao longo de sua vida relativamente curta. Devido à sua relevância tanto para o Direito quanto para a literatura do Brasil, o estudioso sergipano é o patrono da cadeira nº 38 da Academia Brasileira de Letras e, até os dias atuais, a Faculdade de Direito do Recife é comumente chamada de "Casa de Tobias".

Tobias Barreto possui a peculiaridade de ser estudado nas faculdades de Direito e, concomitantemente, nas faculdades de Letras e nas aulas de Língua Portuguesa em colégios por todo o país. Isso se deve ao fato de Tobias — com a sua brilhante inquietude — ter encabeçado dois importantes movimentos; um eminentemente jurídico e filosófico, a chamada "Escola do Recife"; e um literário, o "condoreirismo".

A "Escola do Recife" foi um movimento intelectual que surgiu no início da década de 1860 na Faculdade de Direito da capital pernambucana. No seio da efervescência dos debates acadêmicos propiciados pelo movimento, Sylvio Romero foi o grande nome na área da crítica, Capistrano de Abreu, na área da História, e o próprio Tobias Barreto nas áreas de Filosofia e Direito. Segundo Martins-Costa (2013, p. 8356), "este último, conquanto mais ensaísta que filósofo, foi o líder, o eixo em torno do qual tudo se movimentava, a energia de onde fluíam as leituras, os autores que vinham fazer a cabeça da estudantada" [1].

"Naqueles subversivos anos recifenses" (Martins-Costa, 2013, p. 8356), Tobias, um germanista nato, foi o responsável por introduzir as ideias de autores alemães como Rudolf von Ihering e Herman Post entre a jovem intelectualidade do Recife [2]. "É reconhecido ao seu germanismo ter preservado o norte e o nordeste do estreito positivismo (comtiano) que por tanto tempo dominou outras regiões e escolas" (Martins-Costa, 2013, p. 8352). Também é importante lembrar que no mesmo período a Escola Histórica do Direito de Savigny — igualmente originária da Alemanha  exercia grande influência nos países de tradição jurídica romano-germânica.

Em seus escritos sobre temas de dogmática jurídica, o proeminente estudioso sergipano combatia com fervor o jusnaturalismo dominante, oriundo da influência da Igreja Católica e do tomismo. Segundo João Maurício Adeodato (2003, p. 320) [3], "no direito criminal, Tobias entendia o crime como um mal hereditariamente transmitido no seio da sociedade, nocivo ao processo adaptativo que caracterizaria a evolução do direito. No direito autoral, expressão cunhada por ele e campo em que foi desbravador, Tobias pregava não ser este apenas um direito real, mas também um direito pessoal, consistindo numa continuação da personalidade criadora" [4].

Já no campo da literatura, Tobias Barreto é considerado o fundador do movimento literário conhecido como "condoreirismo" [5], integrante da terceira geração da poesia romântica brasileira e fortemente influenciado pelo escritor francês Victor Hugo, autor de "Os Miseráveis". Castro Alves (1847-1871), por sua vez, é considerado o maior expoente dessa corrente. Segundo Cereja e Magalhães (2013, p. 223-224), os poetas da escola condoreira eram "(…) comprometidos com a causa abolicionista e republicana, e desenvolveram a poesia social. Seus poemas, geralmente em tom grandiloquente, próximo da oratória, tinham como finalidade convencer o leitor-ouvinte e conquistá-lo para a causa defendida. O centro de preocupação da linguagem desloca-se do eu (o emissor) para o assunto (no caso, a abolição e a República), o que representa uma mudança profunda, considerando-se que o Romantismo é por natureza egocêntrico. As décadas de 60 e 70 do século XIX representam um período de transição na poesia brasileira. Ao mesmo tempo que muitos dos procedimentos da primeira e da segunda gerações se mantiveram, surgiram novidades de forma e de conteúdo, dando origem à terceira geração da poesia romântica, mais voltada para os problemas sociais e para uma nova forma de tratar o tema amoroso. O nome condoreirismo dado a essa corrente associa-se ao condor ou a outras aves como a águia, o falcão e o albatroz, tomadas como símbolo dessa geração de poetas com preocupações sociais. Identificando-se com o condor — ave de voo alto e solitário e capaz de enxergar a grande distância —, os poetas condoreiros supunham-se também dotados dessa capacidade e, por isso, obrigados ao compromisso, como poetas-gênios iluminados por Deus, de orientar os homens comuns para os caminhos da justiça e da liberdade" [6].

Após apresentar perfunctoriamente a sua trajetória, podemos afirmar que no intelecto de Tobias nasceu a avidez de se estudar a fundo a letra fria do Direito alemão e, ao mesmo tempo, a capacidade de transformar temas relacionados à causa abolicionista e republicana em poesia. Convenhamos que essa não é uma relação direta e que a mesma proporciona diversas reflexões. Nesse sentido, Trindade e Bernsts (2017, p. 225-226) afirmam que "grande parcela da comunidade científica, (…) vê essas abordagens e articulações (entre Direito e Literatura) com certa estranheza, associando-as, frequentemente, a uma prática acadêmica diletantista, modista e, de certo modo, supérflua" [7].

Discordando da posição esboçada acima, acreditamos que a convergência entre Direito e literatura pode, de fato, ajudar a explicar esses respectivos fenômenos da criatividade humana. Alguns clássicos podem até mesmo nos ajudar a expandir essa digressão ao produzir certos questionamentos como: em qual lugar do caminho a "pedra" drummondiana se encontra com o Judiciário claustrofóbico de Kafka? Seria no empecilho, no entrave, no óbice do acesso a justiça finalmente superado após anos de um processo judicial moroso? Certamente havia uma pedra, burocrática e sufocante, no caminho do pobre Josef K.

Voltando a Tobias, apesar deste último não ter tratado em suas obras do Direito na literatura ou do Direito como literatura, o seu exemplo certamente ajuda a refletir acerca dos possíveis (des)encontros entre literatos e operadores do Direito. Em outras palavras, há quem veja beleza nas estrofes e versos e há quem veja beleza nos artigos e incisos. Uma coisa não exclui a outra. De qualquer modo, ainda hoje o legado de Tobias Barreto influencia juristas, poetas e àquelas raras (e valiosas) pessoas que possuem o dom de serem ambos.


[1] MARTINS-COSTA, Judith. Clóvis Bevilaqua e a Escola do Recife. Revista do Instituto do Direito Brasileiro. Lisboa, ano 2, n. 8, p. 8349-8368, 2013. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/ridb/2013/08/2013_08_08349_08368.pdf. Acesso em: 19 out. 2021.

[2] Entre os discípulos de Tobias na Escola do Recife esteve Clóvis Beviláqua, o autor do Código Civil de 1916. A codificação civilista, que deu fim a hegemonia das antiquíssimas ordenações portuguesas, foi baseada no Código Civil Alemão, o BGB (Bürgerliches Gesetzbuch).

[3] Sobre a "Escola do Recife" recomenda-se a leitura do excelente artigo do Prof. João Maurício Adeodato intitulado "O Positivismo Culturalista da Escola do Recife" (Novos Estudos Jurídicos – Volume 8 – Nº 2 – p.303-326, maio/ago. 2003).

[4] ADEODATO, João Maurício. O Positivismo Culturalista da Escola do Recife. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí, v. 8, n. 2, p. 303-326, mai./ago. 2003. Disponível em: https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/337. Acesso em: 19 out. 2021.

[5] As obras de poesia escritas por Tobias são cronologicamente: "Glosa" (1864), "Amar" (1866), "O Gênio da Humanidade" (1866), "A Escravidão" (1868) e "Que Mimo" (1874).

[6] CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura brasileira: em diálogo com outras literaturas e outras linguagens. 5. ed. reform., São Paulo: Atual, 2013.

[7] TRINDADE, André Karam; BERNSTS, Luísa Giuliani. O estudo do direito e literatura no Brasil: surgimento, evolução e expansão. ANAMORPHOSIS — Revista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 225-257, jun. 2017. Disponível em: http://rdl.org.br/seer/index.php/anamps/article/view/326. Acesso em: 19 out. 2021.

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