Limite Penal

CNJ pode dificultar formação de juízes na tradição racionalista da prova

Autores

  • Rachel Herdy

    é professora da Universidad Adolfo Ibáñez (UAI) no Chile e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

22 de outubro de 2021, 13h52

"Talvez você conheça a velha piada sobre os soldados passando uma mensagem na linha — do primeiro ao segundo, 'mande reforços, nós vamos avançar'; do penúltimo homem para o último, 'mande três ou quatro centavos, vamos dançar'. Bem, a história do pragmatismo é assim — só que pior"
(Susan Haack, 2006)

Spacca
No último dia 24 de setembro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) alterou a Resolução nº 75/2009, que dispõe sobre concursos públicos para a magistratura no país. A alteração foi proposta pelo presidente do CNJ, ministro Luiz Fux, com o objetivo de introduzir "uma formação humanística mais ampla". Concretamente, foram acrescentados novos itens ao Anexo XI da referida resolução, que trata de "Noções Gerais de Direito e Formação Humanística". Ao lado dos itens já previstos (e.g., "Sociologia do Direito", "Psicologia Judiciária", "Filosofia do Direito"), foram adicionados os itens "Direito Digital", "Pragmatismo, Análise Econômica do Direito e Economia Comportamental" e "Direito da Antidiscriminação".

Em termos gerais, as inclusões acima são positivas. Afinal de contas, os impactos das novas tecnologias na vida jurídica são cada vez mais sentidos e preocupantes. Além disso, muitas pesquisas relevantes para a compreensão dos processos de tomada de decisão têm sido produzidas em áreas das ciências humanas marcadamente interdisciplinares, como é o caso da Psicologia Cognitiva e da Neurociência [1]. Para os futuros magistrados, é no mínimo interessante saber das pesquisas empíricas que indicam o papel das intuições, vieses e formas de raciocínio motivado nas investigações e decisões judiciais. Também é positiva a inclusão de um ponto específico sobre questões discriminatórias, o qual foi introduzido por sugestão da conselheira Flávia Pessoa. Não se pode mais admitir que magistrados ignorem discussões sobre inclusão, minorias, questões raciais, feminismo, gênero etc.

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Contudo, há também motivos para apreensão. Compartilhamos da preocupação já manifestada aqui no ConJur (aqui e aqui) de que a inclusão de temas complexos nos concursos públicos possa resultar na simplificação de discussões sofisticadas. No artigo desta semana, queremos focar na maneira como o CNJ optou por institucionalizar uma determinada versão da filosofia do pragmatismo. O texto aprovado avançou na especificação daquilo que julgou ser os "pilares" ou "alicerces" de uma tradição filosófica histórica e internamente controvertida. E mais: o primeiro desses pilares — o antifundacionalismo — é especialmente problemático. Se suas implicações epistemológicas forem levadas a sério, poderá dificultar a promoção de uma "cultura processual" que reconheça o papel que a verdade [2], fundamental na tradição racionalista da prova, deve assumir no processo.

Vejamos as palavras de Fux em seu voto como relator:

"(O) pensamento pragmático pode se tornar um paradigma jurisdicional contemporâneo, sendo seus pilares, isto é, o antifundacionalismo, o contextualismo e consequencialismo, alicerces também da atividade judicante".

Poderíamos começar por criticar a própria ênfase que é dada ao ensino do pragmatismo em detrimento de outras escolas filosóficas que com ele competem. Não se contesta o papel que as consequências práticas das decisões judiciais passaram a assumir com a introdução e posterior regulamentação do artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). Contudo, o estudo do pragmatismo não é algo novo para a área da Filosofia do Direito [3], de modo que o seu conteúdo poderia muito bem ter sido pensado como parte da própria disciplina já prevista na Resolução nº 75/2009. Pragmatismo, análise econômica do Direito, realismo jurídico, teoria crítica do Direito, teoria crítica racial, teoria feminista do Direito, jusnaturalismo, positivismo jurídico inclusivo e exclusivo, teoria do Direito como integridade — são abordagens teóricas que fazem parte de um bem-estruturado curso em Filosofia do Direito.

Mas o problema que gostaríamos de destacar é a atitude ousada do CNJ de determinar os fundamentos de uma escola filosófica cujos membros (fundadores e contemporâneos) vivem em pé de guerra. O pragmatismo, à semelhança de Dona Flor, personagem do popular romance de Jorge Amado, "casou-se" com dois maridos, tendo originado duas estirpes. De um lado, tem-se o tronco filosófico que descende de Charles Peirce, em que o pragmatismo identifica-se com uma ontologia realista e com valores epistêmicos fortes, como as noções de verdade, realidade e objetividade; de outro, o tronco filosófico que descende de William James, com um número maior de herdeiros, em que o pragmatismo identifica-se com uma ontologia nominalista, tendo sido um convite a teorizações relativistas e desconstrucionistas dos valores epistêmicos. Enquanto Susan Haack é representante da primeira estirpe [4], Richard Rorty — que propôs o abandono da epistemologia — foi o mais influente representante da segunda estirpe [5].

Como nos conta Haack, a história do significado do próprio conceito de pragmatismo tem sido "confusa" e "perturbadora". Confusa, porque o pragmatismo tem sido invocado por projetos filosóficos antagônicos; e perturbadora, porque as pretensões realistas de Peirce transformaram-se em propostas como a de Rorty, que nega a existência de uma realidade externa ou qualquer constrangimento ao conhecimento que não seja conversacional. No limite, a vertente antirrealista do "pragmatismo vulgar" — a expressão é de Haack — fornece um bom quadro teórico para discursos cínicos de negação da ciência e de afirmação de uma pós-verdade.

Para além de toda essa controvérsia filosófica, existe também outra polêmica, a respeito das relações entre os pragmatismos filosófico e jurídico. Por exemplo, o "pragmatismo cotidiano" de Richard Posner — um influente teórico do direito contemporâneo — é desconectado do pragmatismo filosófico. Nas palavras de Posner, o gap entre a filosofia acadêmica e a prática judicial "pode levar a pensar que os juízes devam ser educados em filosofia — com ênfase em pragmatismo! Duvido que isso seja uma boa ideia (…)" [6].

E mais: existe também uma discussão entre os próprios teóricos do pragmatismo jurídico a respeito do que significa ser um "juiz pragmatista" — independentemente das confusões sobre alicerces e coisas do gênero. Em artigo recente, Fernando Leal desfaz a caricatura do juiz pragmatista como um tomador de decisão adepto do ativismo e que necessariamente rejeita uma postura formalista. Para ele, as considerações práticas que o artigo 20 da LINDB impõe ao tomador de decisão podem ser pensadas em termos sistêmicos, e isso pode levar o juiz pragmatista a posturas interpretativas de autocontenção ou deferência judicial.

Mas um segundo (e talvez mais preocupante) problema diz respeito à ideia de antifundacionalismo propriamente. Com efeito, não é possível saber ao certo a literatura que Fux tinha em mente quando afirmou que o pragmatismo está alicerçado no antifundacionalismo. Provavelmente, ele retirou essa ideia do livro de Thamy Pogrebinschi, "Pragmatismo: Teoria Social e Política" [7]. Esta, contudo, pode não ser a escolha bibliográfica de um candidato à magistratura. Um aspirante à magistratura que pesquisar no Google os termos "antifundacionalismo" e "pragmatismo" será naturalmente levado à leitura da obra de Richard Rorty, "Philosophy and the Mirror of Nature". Ele enfrentará a mesma dificuldade semântica. Assim como pragmatismo, antifundacionalismo é uma palavra sujeita a equivocações. O sentido que Pogrebinschi trabalha em seu livro é diferente dos muitos sentidos empregados por Rorty; e ambos, por sua vez, também não condizem inteiramente com o sentido em que o conceito é consistentemente empregado nos manuais de Epistemologia [8].

Rorty, por exemplo, descreve o fundacionalismo como "o desejo de encontrar fundações às quais alguém pode se prender, estruturas das quais não se pode desviar, objetos que se impõem, representações que não podem ser contestadas". Mas, ao contrário de Pogrebinschi, afirma: "A aquisição da verdade diminui em importância" [9]. Se vamos aos compêndios de Epistemologia, deparamo-nos com capítulos dedicados à discussão sobre uma variedade de versões de fundacionalismo e coerentismo. Basicamente, e sob pena de simplificação, eles discordam sobre o critério de justificação epistêmica (isto é, sobre o quê nos justifica crer que algo é verdadeiro): para os primeiros, existem crenças básicas que em última instância justificam nosso sistema de crenças de forma experiencial; para os segundos, a justificação epistêmica é sempre inferencial e holística, de modo que uma crença é justificada quando ela aumenta a coerência interna de um sistema de crenças [10]. Enquanto a metáfora de um edifício com fundações é usada para elucidar o fundacionalismo, a imagem de um barco à deriva que deve ser consertado sem poder ancorar ilustra bem o coerentismo.

Diante dessa polissemia, podemos oferecer aqui um sentido largo de antifundacionalismo, proposto por Haack [11]. Esse sentido pode ser detectado nos escritos pragmatistas de Rorty e, também, nos manuais de Epistemologia Contemporânea. O antifundacionalismo pode ser assim definido como uma posição epistemológica que afirma a ausência de uma ancoragem objetiva para os critérios de justificação epistêmica. Essa ideia fica clara quando Rorty afirma que a justificação epistêmica (de nossas crenças sobre os fatos) é exclusivamente uma questão de "prática social" ou "conversacional", sem qualquer ligação com a ideia de mundo real.

Não é difícil vislumbrar por que razão o pragmatismo antifundacionalista é problemático para a formação de magistrados comprometidos com a tradição racionalista da prova. Se não há fundações na qual possamos ancorar nossas justificações, a prova então deve ser encarada como mero instrumento retórico? Nesse caso, o objetivo da prova no processo é apenas a persuasão (ou o apelo às emoções subjetivas) de jurados e juízes? Se não existem âncoras, faz sentido discutir critérios de valoração racional das provas ou a determinação de standards probatórios? Para um pragmatista antifundacionalista, a justificação epistêmica é uma questão de construção da mente humana sem acoplamento ao mundo real. Isso implica que as razões que justificam a determinação dos fatos em um processo dependem exclusivamente do que o magistrado pensa a respeito delas, e não do quão boas objetivamente elas são. Esse quadro está em completa desarmonia com os discursos sobre a prova na tradição racionalista, como explica William Twining:

"A epistemologia é cognitivista, em vez de cética; uma teoria correspondencialista da verdade é geralmente preferida a uma teoria coerentista da verdade; o modo de tomada de decisão é visto como sendo racional, em contraste com modos irracionais (…); o modo característico de raciocínio é a indução; a busca pela verdade como instrumento da justiça sob o estado de direito é um valor social de alta prioridade, embora não necessariamente prevalecente" [12].

Na verdade, o antifundacionalismo compromete não só a tradição racionalista da prova, mas o próprio espírito do pragmatismo. Não faz qualquer sentido supor que o pragmatismo jurídico — que, na forma do artigo 20 da LINDB, direciona a atenção do intérprete para as consequências de suas decisões no mundo real — não possua amarras, âncoras ou fundações. Fundacionalismo, neste sentido, não é dogmatismo; e é perfeitamente compatível com a eventual falibilidade de nossas representações do mundo real. Aliás, as representações falham e são corrigidas justamente porque supomos um constrangimento externo às nossas crenças.

O pragmatismo jurídico é uma teoria normativa da decisão judicial cuja eficácia dependerá de uma determinação dos fatos que corresponda ao mundo real. Temos de supor que o mundo empírico, externo ao processo judicial, constrange os juízos; e que esse mundo é constituído de tal maneira, independentemente de como nós achamos que ele é ou gostaríamos que ele fosse. Não é fiel ao espírito do pragmatismo a ideia de que um magistrado possa tomar uma decisão em função das consequências práticas que dela decorrerão e, ao mesmo tempo, assumir como premissa a ideia de que tais consequências não foram projetadas com base em evidências sólidas. Consequências ou efeitos práticos estão, por definição, ancorados na realidade. 

Se a resolução do CNJ for cumprida à risca, há chance de que nossos juízes sejam ensinados a ser pragmatistas antifundacionalistas. No que se refere à matéria probatória, a consequência pode ser o reforço da ideia de que a prova é retórica, mera persuasão. E isso, como argumentamos, esvazia os esforços daqueles que defendem a ideia de que a prova deve ser compreendida como a ponte entre o processo e a realidade dos fatos; e que, portanto, aquele que deixa de olhar para a realidade dos fatos através das provas e opta por confiar em suas convicções pessoais, erra. A falta de reconhecimento do conceito de verdade como correspondência à realidade que está presente na postura de um tomador de decisão antifundacionalista pode torná-lo cúmplice dos erros judiciários. Logo, para salvar a resolução do CNJ, só faz sentido ensinar antifundacionalismo para os juízes se for para ensinar "o que eles não devem ser".

Aguardemos.


[1] V. lista de referências indicadas no texto de Ricardo Lins Horta, aqui no Conjur. V. ainda trabalho recente, com base em experimentos realizados no Brasil, de Noel Struchiner, Guilherme de Almeida e Ivar Hannikainen, "Legal Decision-Making and the Abstract/Concrete Paradox".

[2] Esta expressão é de Perfecto Andrés Ibáñez .

[3] Para ficar apenas com a literatura disponível em língua portuguesa, v. texto de Fernando Leal e Diego Werneck Arguelhes, "Pragmatismo como [meta]teoria normativa da decisão judicial: caracterização, estratégias e implicações", publicado em uma coletânea em 2009; e a tradução do artigo de Susan Haack, "O universo pluralista do Direito: em direção a um pragmatismo jurídico neo-clássico", publicada em 2008 da Revista Direito, Estado e Sociedade.

[4] Para uma revisão biográfica e bibliográfica, v. Herdy, R. "As distinções de Susan Haack".

[5] V. Rorty, R. Philosophy and the Mirror of Nature. New Jersey: Princeton U Press, 1979.

[6] Posner, R. Law, Pragmatism, and Democracy. Cambridge: Harvard U. Press, 2003, p. 13.

[7] Thamy Pogrebinschi, Pragmatismo: Teoria Social e Política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005.

[8] Ver, por todos: O'Brien, D. An Introduction to the Theory of Knowledge. Cambridge: Polity Press, 2006.

[9] Op. cit., p. 365.

[10] Não temos espaço aqui para desenvolver a posição intermediária de Susan Haack. V. a explicação de Gonzalez Lagier, D. "Qué es el "fundherentismo" y qué puede aportar a la teoría de la prueba en el Derecho".

[12] Twining, W. The Rationalist Tradition of Evidence Scholarship. Rethinking Evidence. Cambridge: Cambridge U. Press, 2006, p. 78.

Autores

  • Brave

    é professora de Teoria do Direito na UFRJ, doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

  • Brave

    é professora de direito probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

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