Opinião

A exigência de vacina em concursos e os princípios da legalidade e da eficiência

Autor

  • Laércio José Loureiro dos Santos

    é mestre em Direito pela PUC-SP procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª ed. Dialética 2023 — no prelo) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (coord.: Marcelo Figueiredo Ed. Juspodivm 2023).

22 de outubro de 2021, 17h05

Num renascimento às avessas que caminha rumo às trevas da Idade Média, temas expressamente resolvidos pela racionalidade elementar renascem como tiririca que insiste em brotar no jardim da ignorância.

O uso da vacina remonta ao século 18 (no combate à varíola), a Terra é reconhecida como redonda, no mínimo, desde Galileu Galilei (julgado pela inquisição em 1643) e o fato de termos que relembrar tamanhas obviedades mostra o grau de ignorância institucionalizada e a importância da atuação estatal no sentido das luzes, iluminando as anacrônicas trevas medievais que invadem nosso mundo.

Instituições públicas passam a ter a necessidade de exigir a comprovação de vacinação tal como adultos que exigem orelhas bem lavadas das crianças.

O despropósito do tema é a necessidade que instituições públicas tenham de exigir a obviedade ululante que o bom senso rasteiro já imporia ao cidadão.

No atual contexto de pandemia de ignorância institucionalizada, porém, a exigência se faz necessária para a própria manutenção dos serviços oferecidos pelas instituições, senão pela higiene básica para a convivência social.

Nesse diapasão é que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo passou a exigir, desde 27 de setembro, que as pessoas que acessem as dependências físicas do Poder Judiciário estadual comprovem que tem civilidade elementar do comprovante de vacinação.

A questão faz surgir o debate sobre os limites da liberdade individual e o suposto direito à recusa às regras sanitárias.

O fato é que a imbecilidade só pode ser considerada um direito até o limite da saúde alheia.

Ainda que não exista hierarquia formal entre liberdade e vida, é evidente que esta precede aquela, conforme se depreende de outras colidências de direitos que acabam por fazer prevalecer a vida.

Por exemplo, na colidência entre a liberdade do pai que não paga a pensão alimentícia e a vida do filho ameaçada pela negligência do pai, só pode haver conclusão no sentido de que o pai inadimplente deve ser preso como forma de valorizar a vida da criança em detrimento da liberdade do pai.

Outro exemplo conhecido dos operadores do Direito é a hipótese de recusa a receber transfusão de sangue por testemunhas de Jeová, colocando o médico em situação ofensiva à sua própria religião e à sua liberdade profissional. Os tribunais entendem que o médico deve preservar a vida do paciente em detrimento da liberdade religiosa, que não pode transformá-lo num homicida apenas para respeitar a religião alheia.

O fato é que a liberdade tem limites. Aliás, qualquer direito tem limites, sob pena de vivermos ditaduras individuais que transformariam a sociedade numa guerra diária de todos contra todos, conforme descrição de Thomas Hobbes na obra "O Leviatã".

Os tribunais trabalhistas também têm se posicionado no sentido de que a recusa em tomar vacina configura justa causa para a demissão do empregado.

Assim noticiou a prestigiada revista eletrônica Consultor Jurídico em 22 de julho deste ano:

"Quando a empresa divulga informações e elabora programa de conscientização sobre a vacinação contra Covid-19 aos seus colaboradores, o interesse particular do empregado não pode prevalecer sobre o interesse coletivo, pois, ao deixar de tomar a vacina, o empregado coloca em risco a saúde dos seus colegas e clientes".

E prossegue a respeitada revista:

"Em primeira instância, a juíza da 2ª Vara do Trabalho de São Caetano do Sul (SP) julgou improcedente o pedido da autora, pois a necessidade de proteção da saúde de todos os trabalhadores e pacientes do hospital deve se sobrepor ao direito individual de se abster da imunização. A autora recorreu ao TRT-2.
(…)
Por fim, considerou que, como a funcionária não apresentou nenhum motivo para a recusa de se vacinar, a demissão por justa causa não foi abusiva ou descabida, mas sim legítima e regular".

Assim, a opinião pessoal merece ser respeitada desde que não conflite com o interesse superior da coletividade. Quem busca a liberdade ampla e irrestrita deve tornar-se um aborígene residindo bem longe dos demais cidadãos e exercendo a plenitude insana de seu arbítrio.

De longa data a jurisprudência já caminha nesse sentido. É o caso da exigência de cinto de segurança, que o STF já decidiu como constitucional.

A advogada Mirella Franco, que atuou no caso acima referido noticiado pela ConJur, completa com clareza solar:

"Diante do entendimento do ministro Luís Roberto Barroso, não são legítimas as escolhas individuais que atentem contra os direitos de terceiros. O ministro relatou ainda, que o estado pode, em situações excepcionais, proteger as pessoas, mesmo contra sua vontade — como, por exemplo, ao obrigar o uso de cinto de segurança. Ou seja, ainda que a funcionária recorra a Justiça, o amparo ao coletivo em tempos de pandemia é muito grande".

Por conta de todo o exposto é que defendemos a legalidade e constitucionalidade da exigência de comprovante de vacinação para a posse em concurso público como medida de sobrevivência e responsabilidade social. Talvez a exigência devesse ser feita para a participação no concurso, diante da pluralidade de pessoas na sala onde a prova é aplicada.

Um servidor que trata diariamente com a população não tem o direito de se transformar numa bomba pandêmica de difusão da doença, tampouco pode servir de paradigma do comportamento irracional.

O artigo 268 do Código Penal tipifica a conduta de desrespeitar medida sanitária que vise a evitar propagação de doença.

A exigência de vacina é apenas mais uma exigência profilática no combate à pandemia do coronavírus. A pandemia da ignorância não tem profilaxia que não seja a exigência do comprovante de vacina, medida já adotada pelo TJ-SP.

A exigência da vacina como condição para a posse de aprovado em concurso público é a materialização dos princípios da legalidade e da eficiência. Exigência básica tão lícita quanto exigir o asseio pessoal, a urbanidade no relacionamento interpessoal ou a abstenção de subtrair bens do patrimônio público.

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