Opinião

O IRDR e algumas questões ainda controvertidas

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22 de outubro de 2021, 19h53

O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) foi apontado e é hoje reconhecido como uma das grandes inovações do Código de Processo Civil (CPC) que concorrem para desafogar o Judiciário.

Grosso modo, como o próprio nome indica, trata-se de procedimento incidental autônomo, por meio do qual questão jurídica controvertida é levada à apreciação do tribunal para que seja firmada tese objetiva a ser aplicada a todos os processos (atuais e futuros) que a envolverem, até o momento que haja revisão ou superação.

É possível afirmar que, em primeiro plano, são dois os requisitos para o cabimento do incidente, quais sejam: 1) a repetição de processos envolvendo a mesma questão de direito (material ou processual); e 2) o risco de ofensa à segurança e à isonomia, sendo certo que este segundo requisito baliza o primeiro, na medida em que o CPC não estabelece número mínimo de processos envolvendo a mesma questão de direito para que o IRDR seja instaurado.

Ao lado desses requisitos (positivos, por assim dizer), há um outro (negativo, no sentido de não poder estar presente, sob pena de o incidente ser inadmitido), qual seja: os tribunais superiores não podem ter afetado recurso para definição de tese sobre questão de direito material ou processual repetitiva.

E recentemente, por ocasião do julgamento do Agravo em Recurso Especial nº 1.470.017/SP, o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu mais um requisito, o de que deve haver uma causa recursal ou de competência originária pendente de julgamento no tribunal perante o qual se pretende instaurar o IRDR, sob pena de inadmissibilidade do incidente. O STJ entendeu que a admissão de IRDR, a partir de uma causa com o mérito já julgado, poderia redundar em prejuízos ao enfrentamento adequado dos argumentos suscitados à formação do contraditório e até mesmo a eventuais audiências públicas a serem realizadas por ocasião do incidente.

A controvérsia acerca desse último requisito parece ter origem em, ao menos, dois motivos preponderantes.

O primeiro deles é que, na versão do CPC inicialmente aprovada pelo Senado, o IRDR poderia ser instaurado logo em primeiro grau, quando houvesse potencial de repetição de causas. Posteriormente, o cabimento do IRDR passou a ser vinculado a pendência de causa de competência do tribunal, com instauração restrita ao relator, afastando-se a possibilidade da sua iniciativa pelo juiz de primeiro grau. Porém, quando da votação e aprovação final do texto do CPC pelo Senado, o juiz de primeiro grau voltou a ser um dos legitimados para o IRDR, suprimindo-se a obrigatoriedade de pendência de causa no tribunal. Não obstante a legitimidade conferida ao juiz de primeiro grau, não foi repristinada a redação inicial que permitia a instauração do IRDR a partir do potencial de multiplicação de demandas, exigindo-se a efetiva repetição como requisito.

O segundo decorre da redação do parágrafo único do artigo 978 do CPC. Ao prever que "o órgão incumbido de julgar o incidente e de fixar a tese jurídica julgará igualmente o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária de onde se originou o incidente", tal dispositivo insinua que o processo que originar o IRDR deverá tramitar no tribunal.

Como não poderia deixar de ser, essa controvérsia repercutiu na doutrina. O Enunciado nº 344 do Fórum de Processualistas Civis dispõe que "a instauração do incidente pressupõe a existência de processo pendente no respectivo tribunal". Em sentido diametralmente oposto, o Enunciado nº 22 da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados estabelece que "a instauração do IRDR não pressupõe a existência de processo pendente no respectivo tribunal".

Atualmente, parece prevalecer o entendimento de que a pendência de processo no respectivo tribunal também é um requisito para cabimento do IRDR. Outra questão controvertida e que também restou decidida recentemente pelo STJ diz respeito à sua competência para processar e julgar IRDR.

Não há dúvida de que o IRDR pode ser instaurado perante Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais — na redação aprovada na Câmara dos Deputados, o artigo 978 continha um parágrafo que estabelecia que esse incidente apenas poderia ser instaurado perante os Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais. Contudo, esse dispositivo foi suprimido da versão final. Já em relação à sua instauração perante os tribunais superiores, não há vedação pelo CPC.

Apesar dessa supressão, o STF entendeu não ter competência para julgar IRDR por ocasião do julgamento da Petição nº 8.245/AM. E, basicamente, os fundamentos para embasar a inadmissibilidade foram que sua competência é determinada por hipóteses legislativas taxativas e o CPC possui previsão de incidente de resolução de recursos extraordinários repetitivos.

Por sua vez, o STJ, quando do julgamento do agravo interno na Petição nº 11.838/MS, entendeu pelo cabimento do IRDR nos limites de sua competência originária e recursal ordinária e desde que preenchidos os requisitos do artigo 976 do CPC. A partir da leitura do acórdão, infere-se que o STJ afastou o cabimento de IRDR no âmbito de sua competência recursal extraordinária (CF, artigo 105, III), valendo destacar que o STF não fez essa diferenciação, mas reconheceu a possibilidade quando a questão jurídica suscitada no IRDR for oriunda de processos de sua competência originária ou recursal ordinária.

E, em relação a esse julgamento no STJ, também é de se observar que, em um primeiro momento, o entendimento caminhou no mesmo sentido do STF (inadmissibilidade do IRDR no STJ). O voto da ministra Laurita Vaz na Petição nº 11.838/MS reputou que o IRDR seria incabível no STJ porque se trataria de instrumento de celeridade processual e de uniformização de demandas de massa de competência dos tribunais de justiça e tribunais regionais federais.

Com a interposição de agravo contra essa decisão, houve julgamento pela Corte Especial. A ministra manteve o entendimento quanto ao não cabimento do IRDR, ressaltando que a competência do STJ estaria limitada a conferir suspensão dos processos individuais e coletivos em todo território nacional que tratem da mesma questão jurídica repetitiva e examinar recurso especial manejado contra acórdão que julgar o mérito do IRDR.

Inaugurando a divergência, o ministro Napoleão Maia Nunes proferiu voto favorável à instauração do IRDR perante o STJ, desde que não haja prévia afetação de repetitivo, entendendo que o incidente seria mais um instrumento de celeridade processual.

Já em seu voto-vista vencedor, o ministro João Otávio de Noronha consignou que o STJ possui competência para julgar IRDR, pois a corte, assim como os TJs e os TRFs, pode se deparar com diversos processos discutindo uma mesma questão de direito. Contudo, essa competência não seria ampla, limitando-se aos processos de sua competência originária e ordinária recursal, observados também os requisitos do artigo 976 do CPC.

Também nesse voto-vista foi pontuado que o microssistema para julgamento de demandas repetitivas previsto no CPC deve ser aplicável ao STJ quando este examina recursos especiais (recurso especial repetitivo), mas igualmente quando exerce sua competência originária e recursal ordinária.

A partir dessa limitação de competência, tem-se que não é possível instaurar IRDR no STJ se a questão de direito repetitiva se verificar em sede de recurso especial.

Entretanto, parece que a interpretação mais se harmoniza com o intuito de o IRDR caminhar no sentido de não haver limitação. O julgamento de IRDR pelo STJ, no âmbito da sua competência recursal extraordinária, não parece causar nenhum prejuízo de ordem material ou processual. Pelo contrário, e como ressaltado no voto do ministro Maia Nunes, o IRDR seria apenas mais um instrumento de celeridade processual e uma forma de abreviar a realização de julgamentos. Além disso, a ampliação das hipóteses de competência do STJ para julgar o IRDR serviria à materialização de sua função de uniformizar questões de direito.

Nesse sentido, percebe-se que o próprio requisito negativo para cabimento do IRDR — não afetação da questão em sede de recursos repetitivos — apenas reforça a ideia de que o STJ tem competência para julgar o IRDR. Isso porque, satisfeitos os requisitos para cabimento de IRDR perante o STJ decorrente de questão de direito oriunda de recurso especial, rigorosamente seria hipótese de recurso especial repetitivo.

Aliás, as finalidades dos dois instrumentos processuais (IRDR e recursos repetitivos) coincidem, uma vez que ambos visam a conferir celeridade à solução de questões jurídicas, bem como promover tratamento isonômico às partes processuais e segurança jurídica.

Enfim, a ampliação da competência do STJ para aceitar IRDR em sede de recurso especial significaria uma extensão das possibilidades processuais dos jurisdicionados, com vistas à resolução de uma questão jurídica recorrente na corte, não havendo nenhum prejuízo de ordem material ou processual em se expandir a competência.

Espera-se, num futuro não muito distante, que o STJ e o STF revejam suas decisões e passem a admitir IRDR oriundo de questão de direito identificada no âmbito de suas respectivas competências.

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