Defesa da Concorrência

Quem é dominante aos olhos da autoridade antitruste brasileira?

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22 de outubro de 2021, 10h10

Condutas anticompetitivas unilaterais de abuso de posição dominante sempre foram alvo relevante das políticas de enforcement antitruste no Brasil, e geraram grandes casos. Mais até que em algumas jurisdições bem estabelecidas, como a americana. Contudo, após grandes ondas de ênfase ao controle de atos de concentração e ao combate a cartéis,i mais recentemente a autoridade antitruste brasileira declarou que daria maior ênfase às práticas unilaterais.

Isso é visível nas estatísticas. A base de dados do “Cade em Números”, que mapeia todas as decisões da Superintendência-Geral e Tribunal do Cade, sinaliza que houve realmente um perceptível aumento do número de decisões tendo por objeto condutas unilaterais nos últimos anos: no período entre 2015 e 2018, os dados apontam que houve 36 decisões, número que saltou para 93 desde 2019 até o momento.

Esse aumento traz ainda mais relevância para os vários debates interessantes e essenciais envolvendo a análise de práticas dessa natureza.ii E considerando que condutas unilaterais atraem uma avaliação essencialmente baseada na capacidade de dominação da firma infratora e nos efetivos ou potenciais efeitos anticompetitivos de suas condutas, uma questão central é como a autoridade antitruste baliza a mensuração e prova dessa dominação e desses efeitos. Vejamos adiante o que o Cade tem feito em casos desse tipo, no que diz respeito à avaliação de dominância.

Posição dominante e ‘regra da razão’
O art. 36 da Lei de Defesa da Concorrência caracteriza os ilícitos concorrenciais pelos efeitos anticompetitivos que são capazes de produzir. Isso significa que, em regra, infrações concorrenciais somente são confirmadas em um caso concreto após avaliação dos efeitos (ainda que potenciais) de certa prática comercial sobre o mercado. Assim, excetuadas as condutas sobre as quais há presunção forte de prejuízo à concorrência, em que se aplica a chamada regra de ilicitude per se, nos demais casos a autoridade antitruste aplica a chamada ‘regra da razão’ – isto é, realiza (ou deve realizar) um exame detido e completo de eventuais efeitos anticompetitivos e eficiências decorrentes da prática, para então decidir se constitui uma violação concorrencial ou não.

É nesse contexto que, para diferenciar uma prática legítima de uma conduta anticompetitiva, o Cade, em linha com standards antitruste internacionais, tem explícita ou implicitamente empregado um teste de três etapas, que podem ser definidos de maneira geral como: (i) a identificação de posição dominante da empresa investigada; (ii) a definição dos efeitos anticompetitivos causados pela conduta e (iii) a avaliação da justificação econômica e eficiências da prática comercial.

Procuramos apurar aqui, em particular, como o primeiro desses elementos — a identificação de posição dominante — vem sendo aplicado na prática pelo Cade em tempos recentes, especialmente após a intensificação do processamento de investigações de condutas unilaterais. Para tanto, analisamos julgados relevantes do Tribunal do CADE de 2019 até o presente momento, verificando como o colegiado teceu essa avaliação.iii

Como vimos acima, a primeira condição para avaliar se há conduta unilateral anticompetitiva é determinar se a empresa investigada tem capacidade de unilateralmente influenciar o mercado de modo determinante. Ou seja, de alterar variáveis como oferta e preço sem que os concorrentes consigam adequadamente responder e restabelecer a dinâmica competitiva.iv Condutas clássicas de dominação envolvem, por exemplo, ser capaz de controlar a oferta de um insumo essencial aos concorrentes, a fim de prejudica-los.

A Lei de Defesa da Concorrência, no art. 36, § 2º, estabelece um patamar de 20% de market share para presumir a priori uma posição dominante. Embora esse limite seja relativamente baixo, como inclusive já alertado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)v, sabe-se que tampouco ele deve ser tomado como uma medida estanque para presumir um problema concorrencial, sendo, ao menos em tese, normalmente tomado como uma rede de segurança a partir da qual uma análise mais detida pode ser instaurada.

Até porque, na realidade, ter maior ou menor participação de mercado não é por si só um ateste de poder de mercado. Ser dominante implica ser capaz de unilateralmente controlar variáveis competitivas. Em alguns mercados, isso pode ser possível com um market share relativamente não significativo, enquanto em outros, mesmo uma participação extremamente elevada não possibilita à firma esse poder.

Esse tema foi objeto de estudo publicado este ano pelo Departamento de Estudos Econômicos do Cade, que buscava responder ponderações da OCDE sobre a análise de poder de mercado nas avaliações antitruste da autoridade brasileira. No Documento de Trabalho (nº 001/2021)vi, o Departamento de Estudos Econômicos (DEE) apresenta extensivamente diversos métodos sofisticados de análise para aferir a existência de dominância em um mercado relevante, para além da análise de market shares, indicando suas aplicabilidades e limitações.vii

Não obstante, é certo que a aferição de percentuais de participação de mercado continua sendo o método mais simples, e favorito das autoridades antitruste, para buscar sentir a presença de uma posição dominante potencial, ao menos de forma inicial. Não por outra razão, uma análise adequada de condutas de abuso de posição dominante deve ir além da observação estanque de market shares, e deve de fato procurar efeitos anticompetitivos — a prova efetiva da dominância e do seu exercício abusivo.

Descrição dos julgados recentes do CADE no que diz respeito à avaliação de posição dominante
Não é surpresa que na maioria dos casos de conduta unilateral julgados pelo Tribunal nos últimos três anos, a apuração de participação de mercado foi realmente um fator relevante para a análise, embora variáveis como a existência de efeitos de rede e o nível de integração vertical da cadeia tenham sido avaliados para auxiliar a conclusão sobre a existência de poder de mercado.

Notou-se também que, em regra, aquelas empresas cujas participações excederam 20% foram consideradas detentoras de poder econômico e, correspondentemente, aquelas cujas participações foram inferiores, não. Ou seja, a sinalização do percentual previsto no art. 36 da Lei, embora pouco aderente a uma real avaliação de poder de mercado, foi um fator relevante. Mas não foi o único.

Nos casos em que o Google foi investigadoviii, a consideração de uma alegada participação de mais de 90% no mercado de buscas online foi um elemento central para formar o convencimento do Tribunal sobre a presença de posição dominante. Não obstante, outros fatores qualitativos foram considerados. No caso Google Shoppingix, particularmente, o voto vencedor do Conselheiro Relator Mauricio Bandeira Maia contextualizou de maneira mais elaborada o market share do Google, considerando a dinâmica de mercado de dois lados entre buscas online e publicidade online. O relator argumentou que a suposta alta participação do Google em buscas também potencializaria seu poder de mercado perante os anunciantes, devido a efeitos de rede indiretos. Ainda, destacou que o fato dos anúncios do Google Shopping supostamente gerarem mais pedidos do que anúncios em outros canais digitais, como redes sociais, constituiria um diferencial competitivo que consolidaria o poder de mercado da empresa.

Já no conjunto de casos em que o Tribunal decidiu sobre a prática de contratos de exclusividade entre instituições bancárias e órgãos públicos na oferta de crédito consignadox, a ausência de poder de mercado foi um fator importante para o arquivamento dos processos. Nesses casos, o Tribunal primeiro avaliou que o mercado não apresentava indícios de dominância por qualquer player específico, uma vez que apresentava taxas de crescimento que estavam sendo apropriadas de maneira proporcional pelos players — um fator não diretamente relacionado à avaliação de market shares, e sim à capacidade de apropriação de demanda por múltiplos concorrentes, de fato um aspecto não condizente com posições dominantes. Depois, talvez para sedimentar a sua conclusão, identificou que o market share de cada um dos representados era inferior ao patamar de 20%, concluindo assim pela ausência de poder de mercado.

No contexto do processo administrativo referente a prática de exclusividade por parte da PST Eletrônica no mercado aftermarket de alarmes automotivos, houve instrução específica realizada pela SG/Cade para estimar a participação de mercado da representada. O Tribunal então verificou que a participação da PST Eletrônica no mercado relevante teria sido consideravelmente superior ao referencial de 20% ao longo do período de 2010 a 2018 (por volta de 67%). O Conselheiro Relator Luiz Hoffmann, em seu voto vencedor, entendeu que os market shares da representada "falam por si só", tendo este sido o fundamento central para constatar a posição dominante.

Há algumas ocasiões, no entanto, em que a análise de participação de mercado foi, ao contrário, dispensada (ou presumida). Nos casos envolvendo a cobrança de tarifas por operadores portuáriosxi, o Cade já tem um entendimento consolidado de que o poder de mercado deriva da relação de interdependência que existe entre recintos alfandegados e operadores portuários, e também da presunção de uma posição de monopólio (ou dominante) de operadores portuários, por razões de infraestrutura.

Ainda, houve ao menos uma situação particular em que a própria natureza da conduta justificou a dispensa da análise de poder de mercado. Foi o caso do julgado em processo administrativo instaurado em face da Genzymexii, para investigar conduta de sham litigation, no qual o Cade entendeu que mesmo com quase nenhum poder de mercado, uma empresa que logre ter sucesso em uma ação judicial que lhe conceda de pronto uma patente com monopólio, conseguiria de um momento para outro passar de 0% para 100% de market share. Trata-se talvez do reconhecimento mais evidente pela autoridade de que por vezes a observação de participações de mercado efetivamente não é capaz de atestar uma dominância ou a potencialidade de efeitos anticompetitivos.

Conclusão
Pela observação dos julgados, talvez a revelação mais evidente seja uma grande heterogeneidade na forma como o Cade vem mensurando e avaliando a existência ou não de posição dominante no julgamento de condutas unilaterais. Contudo, nota-se que o market share das empresas investigadas, considerado à luz do patamar de 20% estabelecido pela Lei de Defesa da Concorrência, ainda é uma presunção amplamente utilizada como um elemento central na análise de poder de mercado pelo CADE.

Em alguns julgados, a observação de níveis de market shares em si continua sendo um fator significativo da aferição de dominância, por vezes quase isolado. Em outro extremo, algumas avaliações prescindiram por completo da observação de participações de mercado, presumindo capacidade de dominação a partir da natureza do mercado ou da conduta envolvida. No meio, existem avaliações que conjugaram análises de market shares com fatores qualitativos individuais de cada mercado objeto de investigação, novamente sem grande uniformidade.

Por um lado, a análise de condutas anticompetitivas unilaterais de fato é marcada pela necessidade de uma avaliação caso a caso, que efetivamente demanda, constantemente, análises sob medida. É um traço necessário da rule of reason. Por outro lado, será interessante observar se a multiplicidade e constância de julgamentos de casos dessa natureza pelo Cade será capaz de produzir um método mais homogêneo e uniforme, que talvez trouxesse mais previsibilidade aos administrados e à própria autoridade no que diz respeito ao processamento e avaliação de condutas de abuso de posição dominante.

Também será importante observar se as mensagens passadas pela OCDE, e de certa forma trabalhadas pelo Departamento de Estudos Econômicos do Cade, gerará ou não alguma tendência de maior incorporação de métodos econômicos de avaliação de poder de mercado, hoje majoritariamente distantes da prática na maior parte dos casos julgados.

Fato é que, para além das dificuldades e desafios habituais nessa seara, novos estão em vista. Por exemplo, a avaliação de poder de mercado nos segmentos digitais, que trazem novas discussões à mesa, desde o surgimento dos dados como fator de análise (ao lado dos tradicionais fatores preço e oferta), passando pela potencialidade disciplinadora de pequenas empresas, até a relativização da aparente posição de poder de grandes agentes em face de revoluções tecnológicas.


i Ver, por exemplo, artigo de Amanda Athayde, disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/as-tres-ondas-do-antitruste-no-brasil-01112017

ii Vide, por exemplo, temas de artigos no recente lançamento pelo IBRAC (Instituto Brasileiro de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional) do livro ‘Concorrência: um olhar contemporâneo sobre condutas unilaterais’.

iii Os casos analisados foram os seguintes: Processo Administrativo n° 08012.010483/2011-94 (Representados: Google Inc. e Google Brasil Internet Ltda.); Processo Administrativo n° 08700.005418/2017-84 (Representado: Tecon Suape S.A.); Processo Administrativo n° 08700.005694/2013-19 (Representados: Google Inc. e Google Brasil Internet Ltda.); Processo Administrativo n° 08700.005755/2015-18 (Representado: Itaú Unibanco S.A.); Processo Administrativo n° 08700.005759/2015-98 (Representado: Caixa Econômica Federal); Processo Administrativo n° 08700.005761/2015-67 (Representado: Banco Santander Brasil S.A.); Processo Administrativo n° 08700.005766/2015-90 (Representado: Banco Bradesco S.A.); 08700.005770/2015-58 (Representado: Banco do Estado do Rio Grande do Sul – Banrisul); Processo Administrativo n° 08700.005781/2015-38 (Representado: Banco de Brasília – BRB); Processo Administrativo n° 08700.009082/2013-03 (Representados: Google Inc. e Google Brasil Internet Ltda.); Processo Administrativo n° 08012.005009/2010-60 (Representados: PST Eletrônica S.A.); Processo Administrativo n° 08012.007147/2009-40 (Representados: Genzyme do Brasil Ltda. e Genzyme Corporation); e Processo Administrativo n° 08700.005499/2015-51 (Representado: Tecon Suape S.A.). Agradecimentos a Beatriz Duval, Evelyn Rodrigues e Leticia Guariglia pela ajuda no levantamento..

iv Em uma concepção mais técnica, “poder de mercado é definido como a habilidade de uma firma aumentar preços acima do seu custo marginal”, nas palavras de Massimo Motta (MOTTA, Massimo. Competition policy: theory and practice. New York: Cambridge University Press, 2004, p. 115, tradução livre). Conforme o mesmo autor, “quanto” poder de mercado deve ser considerado suficiente para atrair atenção antitruste é a grande questão, e de difícil resolução.

v Revisão por Pares da OCDE sobre Legislação e Política de Concorrência: Brasil 2019. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/revisoes-por-pares-da-ocde-sobre-legislacao-e-politica-de-concorrencia-brasil-2019-web.pdf

vi The problematic binary approach to the concept of dominance. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/documentos-de-trabalho/2021/Documento-de-Trabalho_The-problematic-binary-approach-to-the-concept-of-dominance.pdf

vii Para uma boa explicação sobre métodos de mensuração de poder de mercado e dominância, ver também: MOTTA, Massimo. Competition policy: theory and practice. New York: Cambridge University Press, 2004, p. 115 e ss.

viii Processo Administrativo n° 08012.010483/2011-94 (Representados: Google Inc. e Google Brasil Internet Ltda.), Processo Administrativo n° 08700.005694/2013-19 (Representados: Google Inc. e Google Brasil Internet Ltda.), Processo Administrativo n° 08700.009082/2013-03 (Representados: Google Inc. e Google Brasil Internet Ltda.)

ix Processo Administrativo n° 08012.010483/2011-94 (Representados: Google Inc. e Google Brasil Internet Ltda.)

x Processo Administrativo n° 08700.005755/2015-18 (Representado: Itaú Unibanco S.A.); Processo Administrativo n° 08700.005759/2015-98 (Representado: Caixa Econômica Federal); Processo Administrativo n° 08700.005761/2015-67 (Representado: Banco Santander Brasil S.A.); Processo Administrativo n° 08700.005766/2015-90 (Representado: Banco Bradesco S.A.); 08700.005770/2015-58 (Representado: Banco do Estado do Rio Grande do Sul – Banrisul); Processo Administrativo n° 08700.005781/2015-38 (Representado: Banco de Brasília – BRB)

xi Processo Administrativo n° 08700.005418/2017-84 (Representado: Tecon Suape S.A.) e n° 08700.005499/2015-51 (Representado: Tecon Suape S.A.).

xii Processo Administrativo n° 08012.007147/2009-40 (Representados: Genzyme do Brasil Ltda. e Genzyme Corporation)

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