Opinião

O lançamento do crédito tributário e o crime do artigo 1º da Lei 8.137/90

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21 de outubro de 2021, 6h35

A Súmula Vinculante 24, editada pelo Supremo Tribunal Federal, embora tenha afirmado de uma vez por todas a indispensabilidade do lançamento do crédito tributário para a deflagração de ação penal referente ao crime material previsto pelo artigo 1º da Lei 8.137/90, não foi capaz de pôr fim à discussão quanto ao enquadramento sistemático de tal ato administrativo. Em meio aos debates de aprovação da referida súmula, o voto do então ministro Cezar Peluso não deixa dúvidas sobre os contornos do debate [1]: 

"A despeito disso, queria, com o devido respeito, dizer o seguinte: a jurisprudência não tem dúvida sobre essa conclusão. O que há é divergência quanto a fundamentos e, por isso, o caso é de fundamentos concorrentes: temos postura de quem admite condição de procedibilidade, fundamento de quem admite inexistência de elemento normativo do tipo e outros argumentos (…). Objeto da súmula é a conclusão da Corte de que não há possibilidade de exercício da ação penal antes da apuração da existência certa do crédito tributário" (grifo do autor).

Persiste, portanto, o questionamento sobre a razão pela qual a não constituição do crédito tributário através do ato administrativo de lançamento impediria a propositura de ação penal por crime material contra a ordem tributária. Nesse sentido, a literatura penal oferece alguns possíveis esclarecimentos atribuídos à relação estabelecida entre o lançamento tributário e o exercício do direito punitivo, dignos de maior atenção.

Com certa frequência, parte da literatura compreende o lançamento do crédito tributário enquanto condição objetiva de punibilidade. Conforme ensina Claus Roxin [2], as condições objetivas de punibilidade significam circunstâncias alheias à tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, que condicionam a punibilidade do injusto. Ao tratar do tema, Juarez Cirino dos Santos explica que a presença das categorias gerais de tipo de injusto (tipicidade e antijuridicidade) e culpabilidade autorizam [3], em regra, o exercício do direito punitivo; excepcionalmente, a punibilidade pode depender de outros pressupostos ou circunstâncias chamadas de condições objetivas de punibilidade.

Feita essa breve exposição, não parece correto reconhecer no ato administrativo de lançamento uma verdadeira condição objetiva de punibilidade, circunstância absolutamente alheia à estrutura do fato punível, pela seguinte razão: a supressão ou redução de tributo, previsto no caput do artigo 1º da Lei 8.137/90, só podem ser aferidos caso reste definida a existência efetiva do crédito tributário e o quantum devido ao fisco, ambos demonstrados mediante o lançamento tributário.

Posto de outra forma, a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado, na forma de redução ou supressão de tributo, há de ser atestada por meio da confirmação da existência e da liquidez do crédito fiscal através do ato administrativo de lançamento [4]. À medida em que a constituição do crédito tributário está comprometida com a demonstração da ofensividade da conduta, não há outra conclusão se não reconhecê-la como parte integrante da tipicidade material do injusto, ao invés de uma condição objetiva de punibilidade.

Para encerrar quaisquer dúvidas sobre a inviabilidade da presente tese, Douglas Fischer evidencia a relação de contradição estabelecida entre o lançamento tributário e o instituto da condição objetiva de punibilidade [5]:

"(…) Se houver o reconhecimento de que é com a decisão administrativa que há definição da supressão ou redução de tributo (elementar objetiva do tipo), porque se trata de crime material (de resultado), impossível falar de hipótese que se amolde à condição objetiva de punibilidade. Uma exclui a outra".

Rejeitado esse primeiro enquadramento, passa-se à análise de uma segunda proposta teórica: a ato administrativo que constitui o crédito tributário pode ser qualificado enquanto uma condição de procedibilidade, um requisito específico para o exercício da ação penal?

Antes de proceder efetivamente à análise da hipótese proposta, há de se destacar que a delimitação da tipicidade material por meio do lançamento tributário é um fenômeno que se opera em meio ao direito penal material, na configuração do injusto em si, enquanto a condição de procedibilidade significa um requisito ao processamento do delito, localizado em esfera eminentemente processual.

Dito isso, o ato administrativo de lançamento, ao desenhar a tipicidade material do injusto com base na determinação da existência e liquidez do crédito tributário, incide sobre a própria constituição do delito, o que, por sua vez, repercute num elemento de viabilidade da ação penal: a justa causa. Conforme lição de Gustavo Henrique Badaró [6], "a justa causa significa a existência de um suporte probatório mínimo, tendo por objeto a existência material de um crime e a autoria delitiva".

A constituição da justa causa (essa, sim, verdadeira condição de procedibilidade da ação penal) depende da configuração do injusto por meio do lançamento tributário, indispensável à demonstração da tipicidade material da conduta. O lançamento apenas influi no preenchimento da condição de procedibilidade (justa causa) ao passo em que se mostra determinante para consubstanciar o delito, mas não pode ser com esta confundido; embora indiretamente relacionado, o ato administrativo de lançamento não pode ser qualificado como uma condição de procedibilidade.

O mais coerente enquadramento do lançamento do crédito tributário nos casos de crime material contra a ordem tributária é, coincidentemente, aquele extraído do próprio enunciado da Súmula Vinculante 24, o qual prevê: "Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo".

A expressão "não se tipifica", empregada no enunciado da referida súmula, deixa claro que o crime material do artigo 1º da Lei 8.137/90 somente se configura ante a constituição definitiva do crédito tributário, isto é, o lançamento, ato administrativo responsável pela delimitação da tipicidade material da conduta; é com o lançamento tributário que se atesta a efetiva supressão ou redução de tributo mediante a demonstração da existência e liquidez do crédito tributário.

Nesse sentido, deve o lançamento tributário ser compreendido como o ato administrativo pelo qual se opera a declaração do efetivo dano perpetrado ao bem jurídico tutelado pelo crime previsto no artigo 1º da Lei 8.137/90, nas modalidades supressão ou redução de tributos, com base na demonstração da existência e liquidez do crédito tributário que ampara a tipicidade material da conduta.


[1] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 24. Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I ao IV, da Lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do crédito tributário. In: Debates de aprovação.

[2] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Traducción de la 2.ª edición alemana por Diego-Manuel Luzón Pena et al. Barcelona/Madrid: Civitas, 1997. t.1, p. 81

[3] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 7. ed. Florianópolis, SC: Empório do Direito, 2017, p. 339.

[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Econômico. Volumes 1 e 2. São Paulo: Saraiva, 2016. Livro digital.

[5] FISCHER, Douglas. Os equívocos técnico, dogmático, sistemático e lógico da Súmula Vinculante nº 24 do STF. 14 de dezembro de 2020. Disponível em: <https://temasjuridicospdf.com/os-equivocos-tecnico-dogmatico-sistematico-e-logico-da-sumula-vinculante-no-24-do-stf>. Acesso em 18 de outubro de 2021.

[6] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 9. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, p. 210.

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