Seguros Contemporâneos

A busca pela efetividade do seguro-garantia em contratações públicas (parte 1)

Autor

  • Roque de Holanda Melo

    é pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) professor da Escola de Negócios e Seguros e do curso de pós-graduação em Direito dos Seguros da Universidade Positivo membro consultor da Comissão de Direito Securitário da OAB-PR presidente da Comissão de Crédito e Garantia da Fenseg e vice-presidente da Junto Seguros S/A.

21 de outubro de 2021, 8h00

Em busca do modelo ideal
Inicialmente, cumpre-nos, ainda que brevemente, diferenciar para fins meramente didáticos, as particularidades e diferenças entre as expressões "eficiência", "eficácia" e "efetividade".

Nesse sentido, pode-se definir eficácia como a qualidade daquilo que alcança os resultados planejados, característica do que produz os efeitos esperados, do que é eficaz ou, simplesmente, que faz o que lhe é esperado.

Fazendo uma aplicação evidentemente simplista e direta nas relações securitárias, mais especificamente no seguro-garantia envolvendo contratações públicas, eficaz é o seguro-garantia que, ao fim e ao cabo, uma vez ocorrendo o sinistro, promove a indenização dos prejuízos causados na exata medida dos prejuízos suportados pelo segurado, bem como realiza o pagamento das penalidades/multas aplicadas, até o limite máximo da importância segurada prevista na apólice.

Portanto, espera-se de um seguro-garantia eficaz nada a mais, nem menos, daquilo que a modalidade de seguro efetivamente se propõe em caso de sinistro, ou seja, proteger o segurado contra riscos futuros e incertos, de modo a promover a justa e correta reparação dos prejuízos eventualmente suportados por este caso sobrevenha o sinistro.

Por outro lado, eficiência, ainda se atendo ao mesmo exemplo, está mais relacionada à forma com que a indenização irá se operar. Espera-se que um seguro-garantia eficiente alcance/entregue o resultado proposto da melhor forma possível, ou seja, com menor desperdício, promovendo maior economia para o erário, e dentro do menor tempo.

Por fim, efetiva seria a forma de indenização por intermédio da qual se obtém o efeito esperado (eficácia), da melhor forma possível (eficiência).

Portanto, e de maneira lógica, sobrevém a constatação de que para o Estado não basta apenas que o seguro garantia seja eficiente ou eficaz, sendo crucial que esta modalidade de seguro seja especialmente efetiva, ou seja, tenha a capacidade de produzir o efeito esperado (eficácia), da melhor forma possível (eficiência).

A efetividade esperada
Conforme observamos, fácil depreender que o esperado é que a indenização ocorra, em tempo e modo, em sobrevindo o sinistro. Porém, qual seria a forma mais eficiente de indenização para o Estado?

A resposta é simples: aquela que atenda ao anseio mais elementar do agente público, ou seja, a retomada e conclusão de uma obra sinistrada por parte de empresa contratada pelo agente garantidor, sem a necessidade de um novo e moroso processo de licitação, bem como aportes adicionais por parte do Estado, salvo o quanto previsto no orçamento original.

Ocorre que de todas as formas de garantia previstas atualmente, sobretudo aquelas constantes na atual Lei de Licitações, nº 14.133/2021 (artigo 96, § 1º), a única forma de garantia que permite ao agente público contar com a possibilidade de retomada e conclusão da obra por empresa contratada diretamente pelo agente garantidor é o seguro-garantia.

Exatamente por isso, a nova lei outorgou protagonismo a essa modalidade de seguro, posto ser a única forma de garantia que poderá auxiliar o Estado na conclusão das obras inacabadas no Brasil. Portanto, por um lado a nova lei evidencia e reconhece a importância do seguro-garantia dentro da nova lei de licitações, e por outro impõe grande responsabilidade para os diferentes atores que atuam com o produto seguro-garantia no mercado brasileiro (seguradores, resseguradores, tomadores, corretores de seguro e segurados).

Isso se diz, considerando que todos os atores citados possuem papel fundamental e responsabilidades intrínsecas no tocante à criação de um ambiente favorável e que, de fato, possibilitará o atingimento do primordial anseio do Estado no sentido de contar com uma forma de garantia efetiva e que possa acabar ou ao menos reduzir substancialmente o número de obas inacabadas no Brasil, de modo a contribuir para o desenvolvimento do país.

A responsabilidade elementar do Estado
Não obstante a louvável iniciativa, que evidencia o objetivo do legislador em garantir o interesse maior do Estado na busca pela melhor e mais efetiva dentre as formas de garantias previstas em lei, o fato é que a mera previsão legal não é suficiente para materializar esse tão almejado anseio. Impondo-se, à toda vista, o oferecimento de condições que, de fato, permitam ao mercado segurador se valer da prerrogativa de contratar uma empresa, terceira, para assumir e concluir a obra inacabada, nos termos previstos na lei.

Nesse sentido, definitivamente, é preciso ficar claro que o ônus que se pretende impor ao mercado segurador, mais especificamente no tocante à priorização pela retomada e conclusão da obra por parte do agente garantidor, deve ser acompanhado por requisitos mínimos com vistas a possibilitar que a retomada e conclusão das obras realmente ocorra.

Tais requisitos, importante destacar, permeiam toda a cadeia de contratação, impondo-se, como já destacado, a participação ativa de todos os players que atuam direta ou indiretamente durante o processo de concorrência, assinatura do contrato e emissão das respectivas apólices de seguro garantia afetas a cada contratação.

Ainda que não tenhamos a intenção de esgotar o tema, especialmente no tocante à individualização das responsabilidades correlatas existentes durante o processo de contratação pública, impende destacar alguns desses requisitos primordiais a começar pela escolha do correto percentual de garantia que possa, de fato, oferecer condições para a retomada e conclusão das obras por parte do agente garantidor.

A propósito, a experiência internacional já demonstrou que percentuais abaixo de 30% não oferecem condições para retomada e conclusão da maioria das obras. Portanto, caso o ente público insista em exigir percentuais inferiores a 30% do valor do contrato, conforme prerrogativa conferida pela lei, precisa estar ciente de que está assumindo a responsabilidade, em nome do Estado, de não oferecer condições mínimas para que a retomada e conclusão da obra se opere.

Ou seja, na hipótese de fixação de percentual de garantia inferior a 30% sobre o valor do contrato, estar-se-á falando de um seguro garantia que não obstante continue sendo eficaz, pois respeitadas as demais condições previstas na apólice e legislação em vigor, poderá ensejar o pagamento da indenização devida, conforme limites máximos previstos na respectiva apólice, não atingirá o anseio do Estado em termos de efetividade, posto que, não havendo valor de garantia suficiente para fazer frente ao sobrecusto com a nova contratação, impossibilitada estará a seguradora de promover a retomada e conclusão da obra.

Dito de outra forma, antes de exigir que o modelo recém-alterado funcione na prática, cabe ao Estado fazer a sua parte, iniciando pela correta escolha dos percentuais de garantia para cada contratação, sob pena de ele próprio (Estado) inviabilizar a efetividade do seguro-garantia e, por consequência, o atingimento do principal anseio do Estado nas contratações públicas.

O protagonismo esperado do mercado segurador
Por sua vez, o Estado espera que o mercado segurador igualmente faça a sua parte, no sentido de promover os necessários ajustes, não apenas no tocante à análise de riscos, mas também e especialmente quanto ao acompanhamento e monitoramento da obra com o fim de mitigar riscos, auxiliar as partes (contratante e contratado) a superar eventuais percalços no curso do contrato, bem como estar preparado para a assunção do contrato, por intermédio de empresa terceira contratada, em caso de consumação definitiva de sinistro.

Para que isso seja possível, não basta apenas e tão somente boa vontade, mas serão necessários investimentos adicionais e uma reestruturação no tocante à análise de riscos, até porque as seguradoras serão chamadas a assinar, na qualidade de intervenientes anuentes, os contratos firmados entre as empresas contratadas e o órgão público.

Essa nova sistemática também imporá a revisão completa dos instrumentos afetos à contratação, a exemplo dos clausulados da apólice, o contrato de contragarantia firmado com o tomador da apólice, bem como o takeover agreement (contrato de retomada da obra) a ser firmado entre a seguradora e a empresa contratada para retomar a obra. Tal revisão será fundamental para o fim de proporcionar harmonia entre os instrumentos contratuais, assim como melhor delimitar as responsabilidades contratuais, ante a ausência de precisão e clareza do texto legal, de modo a evitar a assunção de responsabilidades do tomador inequivocamente não cobertas pela apólice, a exemplo dos débitos tributários, responsabilidade perante terceiros, e assim sucessivamente.

Para o mercado segurador, portanto, a nova Lei de Licitações representa uma virada de página, que exigirá um reposicionamento e reestruturação das seguradoras que pretenderem operar essa modalidade de risco com cláusula de retomada, visto que apesar de, alternativamente, ser conferida a possiblidade de retomada e conclusão da obra ou o pagamento da importância segurada, é notório que o Estado não tem qualquer interesse em receber a indenização em dinheiro, preferindo que a seguradora assuma a responsabilidade pela conclusão e entrega definitiva da obra.

Portanto, o mercado terá a responsabilidade de fazer a sua parte para que, havendo a convergência de outros fatores, sobretudo relacionado ao papel dos demais atores que atuam no ambiente de contratação pública, de fato haja condições para se operar a retomada e conclusão da obra por parte do agente garantidor e que esta seja, sempre, a primeira opção/alternativa a ser perseguida.

A necessária mudança de postura das contratadas
Ao longo dos últimos anos, alguns fatores extrínsecos à contratação de seguro-garantia acabaram por consolidar um modus operandi nada saudável no tocante à análise de riscos inerente aos contratos garantidos. 

A abundância de capacidade de resseguro para as seguradoras e o crescente número de seguradoras de garantia operando no mercado Brasileiro acabou facilitando, e muito, o acesso dos tomadores ao seguro-garantia. A ponto de as construtoras, quando instadas a apresentarem as apólices de seguros para garantir os contratos, fazerem cotações ao mercado de seguros com vista à obtenção do menor preço para suas garantias e sem se preocuparem em apresentar informações mínimas sobre os riscos que seriam assumidos, bem como poucas informações financeiras sobre as empresas tomadoras, quando estas últimas eram apresentadas.

Essa prática, que perdurou por longos anos, deverá ser revista, eis que o mercado segurador necessitará fazer análises muito mais profundas do risco a ser garantido, bem como da capacidade econômica da empresa e, quando aplicável, da estrutura de financiamento dos projetos a serem garantidos.

Tal fato exigirá, necessariamente, que as empresas que pretendam apresentar garantias junto aos órgãos públicos, sobretudo com cláusula de retomada, passem a atuar com antecedência, mantendo suas informações atualizadas juntos às seguradoras ou seguradora com quem pretenda operar. Tal procedimento permitirá não apenas uma análise mais criteriosa, mas também permitirá que as seguradoras, além de subscrever os respectivos riscos, possam atuar como consultoras das empresas interessadas no processo de licitação.

Aliás, para aqueles que procuram buscar paradigmas nos modelos internacionais, nem sempre aplicáveis à realidade brasileira, diga-se de passagem, importante conhecerem um pouco mais da relação existente entre os tomadores e as seguradoras no mercado americano. Trata-se de uma relação de muita proximidade e parceria, em que os tomadores (empresas que contratam as apólices de seguro) escolhem as seguradoras que farão as emissões de todos, ou a maioria, dos riscos de seu portifólio. E, para tanto, tais empresas abrem para a seguradora todas as informações necessárias e afetas não somente ao risco que se pretende garantir, assim como demais informações que possibilitem ao agente garantidor o acompanhamento da saúde financeira da empresa.

As vantagens decorrentes desse modelo de relação incluem não apenas uma melhor precificação, mas também a possibilidade de a seguradora focar sua atenção na análise do risco a ser efetivamente subscrito, posto que já dispõe, de antemão, de todas as informações necessárias à avaliação financeira de seu cliente.

O fato é que o mercado brasileiro está muito distante dessa realidade, embora o modelo atual tenda a não mais existir. Assim, certamente sairão na frente aquelas empresas que, proativamente, resolverem se antecipar e encontrarem parceiros de negócio, criando juntos novos modelos de compartilhamento de informações e análises de riscos que não apenas facilite o processo, mas crie uma sinergia maior entre a empresa tomadora e a respectiva seguradora.

A relevante atuação dos corretores de seguro
Não há como falar em seguro, de maneira indistinta, sem tratar também a figura do corretor de seguros, que, semelhantemente ao que ocorre com as demais modalidades de seguro, ajudou a construir a história do seguro garantia no Brasil.

O papel do corretor, que sempre foi de fundamental importância, ganha especial relevância dentro desse novo cenário, eis que caberá a esse profissional atuar como verdadeiro consultor em busca não apenas do melhor preço, mas, acima de tudo, das melhores condições de negócio para seu cliente.

Nesse sentido, será fundamental possuir um conhecimento cada vez mais completo sobre os riscos a serem subscritos, o contrato a ser firmado, bem como o diferencial que cada empresa de seguro poderá proporcionar, de modo a agregar valor para seu cliente.

Esse profissional tende a ser cada vez mais valorizado e terá um papel de ainda mais protagonismo no âmbito das contratações públicas, pois terá a importante missão de conduzir os tomadores e as seguradoras a terem um nível de relacionamento cada vez mais próximo, bem como auxiliar os tomadores a apresentarem aos segurados garantias emitidas por seguradoras que, de fato, tenham condições de honrar com as obrigações que lhe serão impostas caso sobrevenha um sinistro.

Aliás, contar com um profissional experiente e que conheça o mercado segurador e as características de cada seguradora poderá fazer a diferença entre apresentar uma garantia para meramente cumprir um requisito legal ou oferecer uma garantia que, de fato, possa atender aos anseios do Estado no tocante à efetividade da garantia apresentada.

Continua na Parte 2

* Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.

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  • é pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), professor da Escola de Negócios e Seguros e do curso de pós-graduação em Direito dos Seguros da Universidade Positivo, membro consultor da Comissão de Direito Securitário da OAB-PR, presidente da Comissão de Crédito e Garantia da Fenseg e vice-presidente da Junto Seguros S/A.

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