Opinião

O que é isto, a 'Justiça Desportiva'?

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21 de outubro de 2021, 19h10

A pergunta que inaugura este texto tem inspiração na hermenêutica filosófica de Gadamer e na crítica hermenêutica do Direito, de Lenio Streck [1]. Em "Verdade e Método", Gadamer nos mostra a importância de formular as perguntas antes de pensar nas respostas. É nesse paradigma filosófico que pretendemos debater a justiça desportiva; o mote desta exposição é a proposta de reforma do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), que está em debate.

A Justiça Desportiva tem base constitucional e é resultado da inserção, na Constituição de 1988, da autonomia e liberdade de organização do esporte em seu artigo 217, fruto de longa construção doutrinária que manteve a legítima preocupação de evitar o mau uso político do esporte [2].

Não é o caso, como o nome pode sugerir, de órgão do Poder Judiciário. Trata-se de entidade privada, cuja atribuição está limitada ao processo e julgamento das infrações disciplinares e às competições desportivas, disciplinada nos artigos 49 a 55 da Lei n° 9.615/98.

Ocorre que a autonomia da Justiça Desportiva e a própria competência para regulamentação que o esporte hauriu da Carta da República possui limites no próprio texto constitucional. Isso significa que o esporte frui sua autonomia nos moldes e nos limites da Constituição. A obviedade traz consigo a paráfrase a Darcy Ribeiro, tantas vezes lembrado por Lenio Streck: "Ainda precisamos dessa classe de pessoas, os cientistas, para desvelar as obviedades do óbvio".

A partir da obviedade demonstrada, por que, então, precisamos descobrir o véu que oculta a natureza, os limites e os procedimentos de atuação da Justiça Desportiva?

Porque o artigo 283 do atual CBJD, norma que é, estabelece que o Direito Processual Desportivo não se confunde com qualquer outra área do Direito, verbis:

"Artigo 283  Os casos omissos e as lacunas deste código serão resolvidos com a adoção dos princípios gerais de direito, dos princípios que regem este código e das normas internacionais aceitas em cada modalidade, vedadas, na definição e qualificação de infrações, as decisões por analogia e a aplicação subsidiária de legislação não desportiva" (redação dada pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

Até aqui não há problema. A questão exsurge na medida em que a Justiça Desportiva possui notória capacidade sancionatória. O Direito Desportivo prevê sanções em suas normas e essas punições são aplicadas após o resultado de um processo disciplinado pelo CBJD.

Eis que nasce a complexidade. Sanções são, por definição, restrições a direitos impostas em razão do descumprimento de previsões normativas. Deixamos de lado, neste momento, a separação entre sanções morais e sanções jurídicas para focarmos somente nas segundas.

Uma vez aceitas essas premissas, a sanção somente pode ser aplicada a partir de um processo em que sejam garantidos o contraditório e a ampla defesa, isto é, o mínimo necessário para afirmar a observância da cláusula do due process of law.

A classificação específica do Direito Desportivo, como se percebe tanto na Constituição como no artigo 283 do CBJD, não afasta a obrigatoriedade de observância dos princípios constitucionais pela Justiça Desportiva — e nem poderia.

Sequer o argumento de que se trata de uma entidade privada, e não um integrante do Poder Judiciário, pode ser levantado em razão da extensão dos direitos fundamentais às entidades privadas tendo como marco o Recurso Extraordinário 201.819/RJ [3], relatado pelo ministro Gilmar Mendes em 2005, que refletiu a teoria da horizontalidade dos direitos fundamentais:

"Os princípios constitucionais como limites à autonomia privada das associações. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados".

Por outro lado, as peculiaridades de que se reveste a Justiça Desportiva não permitem que sofra influxos de outros ramos do Direito e, especialmente, da teoria geral do processo — e aqui fazemos coro com Aury Lopes Júnior para [4], em contextos diferentes e focos diversos, repelir a aplicação de uma teoria geral e única para funções tão distintas do processo.

A ilustrar somente uma hipótese abstrata, em torneios que são disputados em questão de poucos dias a instrução processual completa pode tornar uma decisão inócua e prejudicar a lisura da competição, que é o tema mais caro à Justiça Desportiva.

Isso significa que a Justiça Desportiva precisará encontrar uma teoria processual própria e fluida a ponto de se adaptar a competições mais curtas e mais longas, que em qualquer caso faça o melhor uso possível das tecnologias disponíveis, contemple os princípios constitucionais e mantenha a sua funcionalidade.

Compatibilizar princípios processuais de matriz constitucional à especificidade do Direito Desportivo e às suas necessidades é o desafio que a revisão do código impõe a todos dedicados ao tema e àqueles que contribuem para a construção da Justiça Desportiva e do desporto no Brasil.


[1] STRECK, Lenio L. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

[2] MELLO FILHO, Ávaro; SANTORO, Luiz Felipe. Direito do Futebol: marcos jurídicos e linhas mestras. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p.53. ss.

[3] RE 201.819/RJ, rel. p/ o ac. min. Gilmar Mendes, j. 11-10-2005, 2ª T, DJ de 27-10-2006.

[4] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 16 ed. São Paulo: Saraiva jur, 2019.p.36

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