Garantias do Consumo

Proposta de regulamentação do CDC por decreto presidencial — mínimo existencial

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21 de outubro de 2021, 8h00

Atendendo a ato da presidência do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon), o grupo de especialistas nomeado pela trintenária agremiação debruçou-se sobre as mais variadas possibilidades jurídicas que permitissem a adequada regulamentação do ‘mínimo existencial’ versado diretamente na Lei 14.181/21 [1].

É dever gizar que o grupo de especialistas, no enfrentamento dessa tarefa, se valeu de redobrado "cuidado" para o árduo desafio a que foi designado. O risco é tamanho, tendo em vista a possibilidade de restrição indevida de mandamento fundamental. Se de um lado o é tema de tamanha indeterminação semântica, ao mesmo tempo, é elementar e primordial no trato da dignidade humana [2].

Certos eixos indispensáveis pela especialidade do conteúdo desenvolvido foram guindados como pressupostos metodológicos: 1) trato da matéria com o necessário rigor e perspectiva da mais alta reverência; 2) advertência de que o mínimo existencial projeta alicerce básico para a vida digna, não podendo ser mitigado por decreto, dada a magnitude da matéria; 3) ampla cautela para não quebrar a legítima expectativa da população de consumidores quanto ao conteúdo mais adequado à regulamentação.

Também enquanto deliberava propor meios menos invasivos ao mínimo existencial, o grupo de especialistas pode constatar sérias "atecnias" jurídicas que, inclusive sugerindo patamares tarifários, estavam guindadas por argumentos inadequados capazes de ferir de morte a ratio legis da Lei 14.181/21.

Não é aceitável que leis atualizadoras de microssistemas vocacionados à concretude de direitos básicos sejam, por meio de atos administrativos e de hierarquia secundária, reduzidas a pó, tornadas inefetivas e jogadas no faz-de-conta de que "legislamos, mas não aplicamos". Esse desvio hermenêutico não pertence ao Código de Defesa do Consumidor e nem mesmo ao próprio Direito do Consumidor.

A Lei 14.181/21 é facilmente constatada como de "ordem pública" porque se alicerça em valores fundamentais da sociedade, impondo limites (indisponibilidade de direitos e mitigação da esfera de autonomia privada), vínculos (imperatividade e prevalência da norma) e efeitos (nulidade e sanções).

Basta observar que o texto legal contém: a) vedação à renúncia de direitos (CDC, artigo 54-C, inciso V), ; b) introdução de novos princípios normativos (CDC, artigo 4º, IX e X); c) inserção de recentes "direitos básicos" (CDC, artigo 6º, XI, XII e XIII); d) acréscimos de hipóteses de nulidade nos contratos de consumo (CDC, artigo 51, incisos XVII e XVIII); e) fixação de sanções pela prática de crédito não responsável (CDC, artigo 54-D, parágrafo único); f) expansão dos deveres fundamentais de proteção do Estado, especialmente através do SNDC (CDC, artigo 104-C).

Outra referência à ordem pública está fixada justamente no mínimo existencial, cuja finalidade precípua é prevenir a exclusão social, exigindo a adoção de políticas que visem à proteção da pessoa natural em situação de superendividamento. O mínimo existencial está distribuído em dimensões alternativas e coordenadas, a saber: na correlação dos direitos básicos de crédito responsável e prevenção ao superendividamento (CDC, artigo 6º, incisos XI e XII); no conceito de superendividamento e proteção à existência digna (CDC, artigo 54-A, §1º); no tratamento ao superendividado (CDC, artigo 104-A e artigo 104-C, §1º).

Comedir leis vinculadas à "ordem pública", como no caso a Lei 14.181/21, é atividade espinhosa, extremamente jurídica, inclusiva, protetiva e promocional, onde o conteúdo econômico é muito mais caracterizado pela essencialidade.

Justamente por tais motivos foi desiderato concentrado do grupo de especialistas conceder ao mínimo existencial único e cabível tratamento hermenêutico: conceito indeterminado de eficácia direta e imediata recebido pela Lei 14.181/21.

Como há necessidade de regulamentação, o grupo de especialistas também enfrentou a tarefa, levando em consideração todas as dimensões do mínimo existencial, sem tarifações e de forma extensiva. Segue abaixo nossa proposição:

Preambularmente
A propósito da regulamentação do mínimo existencial, o grupo de especialistas do Brasilcon manifesta que o tema merece as seguintes considerações:

A regulamentação do mínimo existencial exige o necessário cuidado, rigor e perspectiva da mais alta reverência, tendo em vista a origem derivada do assento constitucional; o conteúdo do mínimo existencial, tendo sido recebido pelo Direito Privado na Lei 14.181/21, é garantido por conceito indeterminado de eficácia direta e imediata.

O mínimo existencial projeta, por si só, alicerce básico para a vida digna, não podendo ser limitado por decreto, sob pena de ilegalidade e inconstitucionalidade.

O mínimo existencial, adotado pela Lei 14.181/21 (em seis dispositivos), tem três finalidades normativas diversas: 1) na concessão do crédito; 2) na definição de superendividamento; e 3) na repactuação das dívidas, condições que exigem regulamentação não extensiva.

A Lei 14.181/21 foi conquista da sociedade civil na prevenção e tratamento ao superendividamento; igualmente trouxe a positivação e garantia ao crédito responsável e a preservação do mínimo existencial; tem como finalidade precípua o combate à exclusão social e exige a instituição de políticas nacionais de relações de consumo que visem a proteção da pessoa natural em situação de superendividamento.

A Lei 14.181/21 é de "ordem pública"  assim como o Código de Defesa do Consumidor —, considerando a indisponibilidade de direitos, a limitação da autonomia privada, a imperatividade da norma; a projeção de nulidade absoluta; a garantia da prática de crédito responsável e a implementação de deveres fundamentais de proteção do Estado.

Sendo assim, nos manifestamos por uma regulamentação que não inviabilize a efetividade da Lei 14.181/21 ou restrinja os novos direitos básicos dos consumidores, propondo:

"Minuta de decreto regulamentador
Artigo 1°. Considera-se mínimo existencial, para efeito do disposto nos arts. 6º, XII, 54-A, 104-A e 104-C, §1º da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), como legislação especial das relações de consumo, a parcela da remuneração periódica recebida a qualquer título pelo consumidor, necessária ao custeio das despesas que assegurem sua subsistência digna e acesso a bens essenciais, assim como das pessoas que dele dependam.
§1º Na definição do valor do mínimo existencial do superendividamento, serão consideradas, dentre outras, as despesas relativas à locação do imóvel em que resida o consumidor e aos serviços essenciais de água e energia elétrica, telefone ou Internet, alimentação própria, educação formal, medicamentos, saúde e higiene, assim como as decorrentes de obrigações de caráter alimentar de que seja devedor, e as de natureza tributária.
§2º Sem prejuízo do disposto no parágrafo anterior, serão considerados para cálculo do mínimo existencial do superendividamento:
I- as obrigações do consumidor relativas ao financiamento imobiliários para aquisição do imóvel em que mantenha sua única residência familiar;
II- o número de pessoas que, comprovadamente, dependam da renda do consumidor para subsistência;
III – eventuais diagnoses existentes no núcleo familiar que dependam de tratamento contínuo e ininterrupto, inclusive com utilização de energia elétrica.
§3º De acordo com as circunstâncias do caso, e da situação concreta do consumidor, poderão ser considerados para o cálculo do mínimo existencial do superendividamento as obrigações relativas a contratos de crédito com garantia real, de financiamento imobiliário e de crédito rural, ainda que excluídos do processo de repactuação, nos termos do artigo 104-A, § 1º da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990.
§4º Na prevenção e no tratamento do superendividamento ao aplicar as diretrizes dos parágrafos anteriores serão levadas em consideração as condições específicas do consumidor e seu núcleo familiar dependente, em especial a idade, presença de pessoas com doenças crônicas ou portadores de deficiências ou incapacidades, casos em que o plano de saúde pode ser incluído no cálculo do mínimo existencial do consumidor.
§ 5º. O mínimo existencial, para efeitos desse decreto, não é compreendido como direito prestacional nas relações de políticas públicas estatais, senão como direito-garantia nas relações entre particulares sob a proteção e vigilância do Estado.
Artigo 2°. Considera-se mínimo existencial, para efeito do disposto no artigo 6º, XI da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), aquele que preserve a dignidade da pessoa humana, sendo que na concessão do crédito consignado e similares, a soma das parcelas reservadas para pagamento de dívidas não poderá ser superior àquela definida em legislação especial como margem consignável, a qual deverá ser consultada pelo fornecedor previamente à contratação, conforme o disposto no §1° do Artigo 54-G, da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor).
§1º Se na contratação do crédito, o fornecedor considerar a renda do núcleo familiar, isso não o libera de considerar o mínimo existencial individual e, na eventual repactuação das dívidas, deverá de boa-fé integrar os familiares que foram considerados para a concessão do crédito.
§2º Sem prejuízo do disposto no Artigo 49 da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), como forma de preservar o mínimo existencial na concessão de crédito, os órgãos públicos do SNDC, em especial no caso de cartões de crédito consignados, na hipótese de violação dos deveres previstos nesta Lei, poderão:
1) Requerer ao fornecedor do crédito ou intermediário informações se o consumidor pôde, para evitar o superendividamento, fazer uso do direito de arrependimento presente na auto-regulamentação bancária;
2) Celebrar acordos com as instituições bancárias, financeiras e de crédito, conforme as circunstâncias, de reabertura destes prazos de arrependimento dos consumidores prejudicados, em especial se idosos, de forma a permitir o uso do direito de arrependimento dos créditos e cartões por consignação.
Artigo 3°. Na aplicação da definição legal de superendividamento do Artigo 54-A §1° da Lei 8.078,1990, a exigência de comprometimento do mínimo existencial do consumidor será interpretada de forma extensiva e individual, de acordo com a faixa de renda do consumidor e o disposto no Artigo 1° deste regulamento, para estabelecer apenas o seu estado de superendividamento, sem repercussão na repactuação futura.
§1°. O cálculo do mínimo existencial, que faz parte da definição legal de superendividamento, deve acontecer caso a caso e de acordo com a capacidade de pagamento e o resto reservado para viver daquele consumidor, e não poderá ser utilizado para prestações sociais, bolsa-Brasil, bolsa-família ou BPC ou outras prestações similares, que continuam regidas pela legislação especial.
§2°. Os deveres, direitos e vedações previstos nos Artigos 54-B, 54-B, 54-C, 54-D,54-F e 54-G da Lei 8.078,1990 são de aplicação imediata pelos órgãos públicos e não necessitam o comprometimento do mínimo existencial, visando prevenir o superendividamento dos todos os consumidores através de práticas de crédito responsável.
Artigo 4°. Ao consumidor, na sistemática dos Artigos 104-A,104-B e 104-C da Lei 8.078,1990, caberá informar a sua renda mensal e seus gastos mensais mencionados no Artigo 1°, sendo a capacidade de pagamento do conjunto de suas dívidas calculada caso a caso, descontadas as obrigações tributárias, previdenciárias e de alimentos, conforme o caso.
§1°. Nas conciliações para-judiciais e pré-judiciais (tratamento extrajudicial do superendividamento), previstas nos Artigo 104-A e 104-C da Lei 8.078,1990, o cálculo do mínimo existencial do superendividamento, a ser preservado durante o pagamento do plano de repactuação, com duração máxima de 5 anos, deverá levar em conta a situação individual do consumidor e focar nos gastos necessários à sobrevivência e a vida digna (resto reservado para viver), de acordo com a faixa de renda, a vida pregressa do consumidor, o acesso contínuo a bens essenciais e ao limite do sacrifício, de forma a não colocar em perigo a possibilidade de sucesso e a sustentabilidade do plano de pagamento ajustado em conciliação com os credores.
§2°. Em caso falta de êxito na conciliação referida no parágrafo primeiro deste artigo com qualquer credor, os órgãos públicos aconselharão os consumidores, conforme o caso e os prazos de prescrição das dívidas, a requer a abertura do processo por superendividamento para a revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes, previsto no Artigo 104-B da Lei 8.078,1990, e, em qualquer caso, facilitarão cópias do plano de pagamento conciliado com os demais credores, se existirem, e expedirão ofícios ao INSS e demais órgãos pagadores sobre a suspensão dos pagamentos e débitos em conta, que puderem prejudicar e colocar em risco a preservação do mínimo existencial ou do plano de pagamento pactuado.
Artigo 5°. O administrador mencionado no artigo 104-B § 3º da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor) poderá ser financiado pelo Fundo dos Bens Difusos (MJ) ou outros fundos públicos específicos.

§1°. O administrador poderá ser considerado como auxiliar do juízo, para os fins do artigo 95, § 3º do CPC, considerando-se a gratuidade de justiça no processo por superendividamento para a revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes.
§2°. O administrador mencionado no caput poderá ter atuação viabilizada através de convênios com Instituições de Ensino Superior ou com os órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, sempre sob supervisão do juiz do processo por superendividamento para a revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes, conforme o artigo 104-B da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor).
Artigo 6°. As atividades de educação financeira mencionadas no Artigo 4°, XI e Artigo 54-A da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor) poderão ser fomentadas por multas ou determinadas nas decisões em processo administrativo ou em sentença do processo por superendividamento e revisão e integração dos contratos dos Artigos 104-B e 104-C da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor) para entidades específicas, de defesa do consumidor, educacionais ou beneméritas, para fundos estaduais, se existentes, para Fundações de Apoio às Pesquisas ou revertidas ao Fundo dos Bens Difusos (MJ)".

* Texto de autoria do grupo de especialistas do Brasilcon para regulamentação do tema "mínimo existencial", composto pelos professores Claudia Lima Marques, Clarissa Costa de Lima, Káren Rick Danilevicz Bertoncello, Rosângela Lunardelli Cavallazzi, Amélia Rocha, Adalberto Pasqualotto, Bruno Miragem, Roberto Pfeiffer, André Perin Schmidt Neto e Leonardo de Medeiros Garcia.


[1] Introduziu recentemente no sistema jurídico a disciplina sobre o crédito responsável, prevenção e tratamento ao superendividamento, exprimindo, todavia, a necessidade de "regulamentação" dessa "garantia". Artigo 54-A: "Sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação".

[2] SARMENTO, Daniel. O mínimo existencial. In: Revista de Direito da Cidade, vol. 08, nº 4. p. 1644- 1689. https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/view/26034, com acesso em 19-10-2021.

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