Opinião

Reflexões sobre o PL 533/19 e a necessária mudança da cultura de judicialização

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20 de outubro de 2021, 11h02

Um consumidor que teve um problema com uma empresa fornecedora e sofreu alguma lesão precisa provar que tentou resolver o assunto amigavelmente para que possa ajuizar uma ação? Algumas decisões judiciais têm entendido que sim, e há também projeto de lei nesse sentido. Parte da advocacia, contudo, vem criticando essas iniciativas por entender que trazem obstáculos à defesa do consumidor em juízo, além de violar a própria garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição.

Receio, contudo, que a resistência esteja mais ligada a aspectos culturais da nossa prática judicial do que, efetivamente, ao sentido e alcance da garantia de acesso à justiça.

Em discussão, o Projeto de Lei nº 533/19 pretende deixar expresso no artigo 17, do Código de Processo Civil que "em caso de direitos patrimoniais disponíveis, para haver interesse processual é necessário ficar evidenciada a resistência do réu em satisfazer a pretensão do autor". Um parágrafo adicional prevê que, em caso de relações de consumo, a resistência mencionada "poderá ser demonstrada pela comprovação de tentativa extrajudicial de satisfação da pretensão do autor diretamente com o réu, ou junto aos órgãos integrantes da administração pública ou do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, presencialmente ou pelos meios eletrônicos disponíveis".

O projeto, portanto, especifica a pretensão resistida como componente necessário do interesse processual e, para as relações de consumo, deixa claro que não é necessário apresentar prova de uma resposta negativa da empresa, bastando a demonstração de que houve tentativa por parte do consumidor. Não há exigência, de forma específica, para a tentativa de solução, nem de prazo que o consumidor deva conceder. O envio de um e-mail, carta, notificação, reclamação no SAC ou em plataformas públicas já existentes é suficiente.

Mesmo quanto ao consumidor hipervulnerável, que não tem acesso a meios básicos como telefone e internet ou ao conhecimento para procurar a empresa, para ele ajuizar uma ação, ainda precisaria de um advogado, a quem caberá instruir ou assistir o cliente nessa tentativa prévia de solução.

Com relação à garantia constitucional de que a lei não poderá afastar lesão ou ameaça de lesão da apreciação do poder judiciário, trata-se de falsa questão. Já está bem consolidado, e seria impossível ao Judiciário operar de qualquer outra maneira, que o direito de acesso à Justiça não se confunde com um direito incondicionado a um julgamento de mérito.

Trata-se do mecanismo de promessas e limitações, em que à promessa da tutela jurisdicional correspondem certas limitações para garantia de um resultado justo e útil para as partes e que incluem, legitimamente, os chamados pressupostos processuais. O direito de demandar ao Judiciário é garantido, mas não implica por si só o direito a um julgamento de mérito, que é construído gradualmente ao longo do processo. Para que esse direito seja exercido, exige-se partes capazes, representação por advogado, legitimidade, interesse processual, recolhimento de custas, regularidade da petição inicial, regularidade do desenvolvimento do processo, entre outros.

Assim, a redação atual do artigo 17 do CPC não traz nenhuma novidade ao dispor que "para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade". Tampouco causa espanto o sentido prático dessa exigência, que consta do artigo 485, inciso VI, segundo o qual o juiz "não resolverá o mérito" (isto é, o juiz está autorizado a não julgar o mérito) quando "verificar ausência de legitimidade ou de interesse processual", o que pode fazer, inclusive, de ofício, sem provocação da parte (CPC, artigo 485, 3º) e, portanto, sem nem precisar determinar a citação do réu.

É conveniente lembrar que vem de Carnelutti o conceito de lide como um "conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida", sem o qual não há interesse processual porque a ação nada mais é do que o "direito de obter uma sentença sobre a lide". Declarada a pretensão do autor, pode o réu aderir a essa pretensão e evitar a imposição de uma decisão judicial. Por isso, é justamente no interesse processual que reside o problema da exigência de prévia tentativa de solução do conflito como uma condição da ação.

Não se trata aqui de impor ao consumidor uma tentativa de conciliação que deveria ser opcional, pois não há nenhuma exigência de que ele faça concessões sobre sua pretensão, ou de que haja propostas de acordo. Trata-se apenas da exigência de que seja levada ao conhecimento do fornecedor a existência da pretensão — declaração de vontade —, possibilitando a sua satisfação espontânea.

O direito de ação é autônomo e, por isso, não basta que tenha havido lesão ao direito material para que haja o interesse processual. É necessário demonstrar que há uma pretensão resistida, e a jurisprudência não aponta para nenhuma inconstitucionalidade nessa exigência.

Em repercussão geral, o STF fixou o entendimento de que, nas ações previdenciárias, é necessário demonstrar "prévio requerimento administrativo, a fim de caracterizar o interesse de agir, condição para o ajuizamento da demanda" (RE 631.240/MG). O STJ é pacífico também no entendimento de que o habeas data exige demonstração de que houve negativa de atendimento ao pedido de informações. O órgão igualmente decidiu que "não tendo sido requerida administrativamente a repetição do indébito tributário, o entendimento firmado pela corte regional está em consonância com a jurisprudência do STJ no sentido de que, inexistindo pretensão resistida, não há interesse de agir".

Ora, a inafastabilidade da jurisdição é a mesma, quer se trate de pretensão previdenciária, tributária ou consumerista. Se a exigência de prévio requerimento administrativo é condição constitucionalmente legítima para ações previdenciárias, não há como sustentar que possa haver inconstitucionalidade no caso de exigência similar para ações consumeristas. A questão não está no campo da constitucionalidade, mas da gestão legislativa daquele mecanismo de promessas e limitações, que caracteriza o acesso à justiça.

Com 77 milhões de processos em andamento no Brasil, não é caro nem difícil ajuizar uma ação, fazer com que o réu seja chamado a se defender e obter uma sentença. Em regra, juízes não exigem que o autor demonstre, de partida, que tem "um caso sólido" contra o réu e mínimas provas daquilo que alega. Ajuizar uma ação é praticamente certeza de se obter a citação do réu e um processo. Com uma declaração de pobreza, é possível fazer isso gastando quase nada e sem maiores riscos porque, mesmo perdendo, não são devidos honorários ao advogado da parte contrária.

Essa situação não decorre, contudo, das normas processuais, e, sim, da práxis do Judiciário. O artigo 485, §3º, permite ao juiz conhecer de ofício a falta de legitimidade ou interesse processual, ou seja, o juiz nem sequer precisaria, ou deveria, citar o réu se já puder verificar que o autor não possui esses dois elementos. Nossa práxis judiciária, contudo, faz o contrário e, com frequência, relega a apreciação das condições da ação para o próprio momento da sentença, abrindo mão da oportunidade de ser mais eficiente e célere, do ponto de vista do réu e do próprio funcionamento do Judiciário.

É ingênuo ver nessa judicialização excessiva uma faceta da ampliação do acesso à Justiça. Os movimentos de acesso buscaram remover barreiras decorrentes do custo do litígio, da vulnerabilidade de partes, que não conhecem seus direitos ou não possuem condições técnicas para sua defesa, e dos óbices processuais para defesa de interesses despersonalizados (difusos e coletivos).

A excessiva judicialização de conflitos no Brasil não tem a ver com a facilitação do acesso à Justiça de interesses que não encontravam via adequada, mas com uma precarização geral na efetivação de direitos garantidos apenas simbolicamente. Não é uma suscetibilidade exacerbada que leva o consumidor ao Judiciário, nem são inventados os conflitos levados a juízo, o que há é a violação massiva e cotidiana de direitos.

O próprio poder público, maior litigante do país, usa o Judiciário para protelar a entrega de direitos garantidos constitucionalmente: restituição de impostos, benefícios previdenciários, acesso a saúde, educação e vários outros, que deveriam ser garantidos espontaneamente, são judicializados. Os particulares, do mesmo modo, fazem uso do Judiciário para protelar cumprimento de obrigações.

A ampla judicialização vem a calhar porque delimita e amortiza a conflituosidade, protelando sua resolução no tempo e oferecendo, até pelo volume com que lida, resultados pouco significativos para cada consumidor. Por quase qualquer motivo, qualquer um pode conseguir uma indenização por danos morais, mas dificilmente em valores substanciais. Por aqui, más empresas contratam advogados a granel, fazem mutirões de audiências e gerenciam esse custo, que acaba compartilhado com o próprio Judiciário, mas ninguém vai a falência por serviços precários ou por causar, sistematicamente, danos ao consumidor.

Apenas uma visão ingênua reconheceria nessa cultura de judicialização uma vantagem para os consumidores. Ações de consumidores fazem parte da vida dos grandes litigantes e são integradas nos custos operacionais das empresas. O Judiciário — e, portanto, a sociedade —, sem se dar conta, absorve relevante parte desse custo, fazendo o papel de um serviço de atendimento ao consumidor que fica insatisfeito com a demora e com os resultados.

De outro lado, empresas que se dedicam a uma solução efetiva dos conflitos — que são inevitáveis — possuem plataformas online com percentuais elevadíssimos de satisfação e resolução das reclamações. A própria plataforma governamental consumidor.gov tem índices de 80% das reclamações atendidas em até sete dias.

Nesse cenário, condicionar a ação do consumidor à prévia tentativa de resolução extrajudicial do conflito seria alternativa verdadeiramente disruptiva, apta a quebrar a cultura judicante, sem colocar em risco a tutela jurisdicional e que continuará disponível para os casos em que a pretensão do consumidor não for satisfeita.

Trata-se, ao fim e ao cabo, de repassar ao próprio mercado a tarefa de resolver os conflitos que ele mesmo cria, com os mecanismos que a própria lógica de mercado poderá desenvolver. Mas isso demanda uma mudança da cultura judicante e um controle rigoroso dos mecanismos de abertura e fechamento do acesso aos tribunais. Nesse sentido, a proposta se complementa com a percepção de que a implementação desse sistema legitimaria uma postura muito mais severa do Judiciário contra empresas que não se dediquem a internalizar os custos para garantir uma justa, célere e extrajudicial solução dos inevitáveis conflitos.

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