A Lei do Superendividamento e o conceito de mínimo existencial
20 de outubro de 2021, 15h22
Em 1º de julho deste ano, foi publicada a Lei nº 14.181/2021, que incluiu dispositivos no Código de Defesa do Consumidor (CDC) e no Estatuto do Idoso na busca de aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento.
Em uma sociedade tão voltada para o consumo, onde há excesso de ofertas de crédito e produtos, consumidores acabam adquirindo e gastando mais do que podem. Por conta do reconhecimento da vulnerabilidade dos consumidores e do direito fundamental de proteção estabelecido pelo artigo 170, V, da CF a Lei do Superendividamento possui o papel de reintegrá-los na sociedade e protegê-los de dívidas adquiridas por conta do assédio ao crédito.
A referida lei, então, cria políticas e ações para prevenir o superendividamento, bem como meios próprios para reintegrar um consumidor superendividado ao mercado por meio da negociação em bloco de suas dívidas. Ademais, por meio de seu artigo 1º, a lei altera o artigo 6º do CDC para incluir no inciso XII o direito básico do consumidor "à preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito".
Segundo Claudia Lima Marques, Clarissa Costa de Lima e Karen Bertoncello, a referência ao mínimo existencial no procedimento de conciliação global visa a garantir que o acordo celebrado não prejudique a subsistência do devedor, reforçando a dimensão social e de combate à exclusão do CDC [1].
Mas o que seria o ''mínimo existencial''? A sua concretização deverá ser estabelecida caso a caso? Haverá a determinação de um percentual fixo para regrar o conceito? Há necessidade de uma regulamentação específica para tanto?
Questionamentos como esses não são novidade. Em verdade, a fixação de um conceito de mínimo existencial para os casos de superendividamento constitui uma das questões mais delicadas dentro do tema [2], e vem ocupando a doutrina ao menos desde a fase dos projetos de legislação que deram origem à Lei 14.181/2021.
Haja vista o elevado grau de abertura e indeterminação do mínimo existencial, possivelmente estaríamos diante de um conceito jurídico indeterminado, ou seja, "um conceito cujo conteúdo e extensão são em larga medida incertos" [3]. O intuito desse tipo de previsão é, justamente, manter seu caráter casuístico e maleável para que possa abarcar situações infindáveis que não poderiam ser previstas uma a uma em lei. Segundo a dogmática, a função dos conceitos indeterminados justamente permanecer aberta às mudanças das valorações. Assim, a valoração que o conceito exige seria, normalmente, uma questão de conhecimento, de forma que "o órgão aplicador do Direito tem de 'averiguar' quais são as concepções efetivamente vigentes" [4].
Em 17 de agosto, a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) organizaram a I Jornada CDEA sobre Superendividamento e Proteção do Consumidor UFRGS-UFRJ [5], ocasião em foram aprovados enunciados abordando o conceito de mínimo existencial, que serão aprofundados a seguir.
Enunciado 4: "A menção ao mínimo existencial, constante da Lei 14.181/2021, deve abranger a teoria do patrimônio mínimo, com todas as suas aplicações doutrinárias e jurisprudenciais", de autoria do professor doutor Flávio Tartuce.
Sobre o patrimônio mínimo, Ivan e Renata Pompeu entendem que:
"Este patrimônio essencial corresponde àquela parcela de bens imprescindíveis ao sustento do indivíduo e dos sujeitos sobre sua 'guarda', vale dizer, sua família. Trata-se de um patrimônio mínimo indispensável a uma vida digna, em relação ao qual não pode ser desapossado. Esta tese fundamenta-se no princípio constitucional da dignidade e de uma hermenêutica crítica e construtiva da codificação civil moderna. A noção de patrimônio mínimo, portanto, diz respeito à posse de bens materiais que garantam a existência da pessoa humana com um mínimo de dignidade" [6].
Enunciado 5: "A falta de regulamentação do mínimo existencial, que tem origem constitucional, não impede o reconhecimento do superendividamento da pessoa natural e a sua determinação no caso concreto", de autoria da professora doutora Ana Carolina Zancher.
Veja-se que este enunciado trata justamente da falta de regulamentação do mínimo existencial, e que isso não impede o reconhecimento do superendividamento. Como já dito, ainda não se sabe como se dará essa regulamentação, embora já existam doutrinas que conceituam o mínimo existencial, como é o caso do entendimento de Juliana Maia Daniel [7], que assim afirma:
"A definição de um mínimo existencial que existe a priori, isto é, os direitos que comporiam esses mínimos seriam pré-estabelecidos, contra os quais nem a administração pública, nem o legislador poderiam se opor [8]. Funcionaria, assim, como um 'limite aos limites', ou, na maior parte das vezes, como um limite ao limite da reserva do possível: se o Poder Público não pode ser obrigado a atender toda e qualquer demanda relativa aos direitos sociais ante a escassez dos recursos, por outro não pode negar, em hipótese alguma, a atenção ao núcleo mínimo desses direitos sociais, sob pena de negar efetividade à Constituição.
Trata-se, portanto, de um conceito 'em abstrato', que não sofre a interferência da situação concreta que será posta à análise do julgador. Vale dizer, a desatenção a qualquer das prestações integrantes do mínimo existencial geraria imediatamente um direito subjetivo ao indivíduo para pleiteá-lo judicialmente. E, o julgador, neste caso, estaria obrigado a garantir essas prestações integrantes do mínimo existencial".
Enunciado 6: "Considera-se mínimo existencial, aos efeitos do disposto da Lei 14.181/21, os rendimentos mínimos destinados aos gastos com a subsistência digna do superendividado e de sua família, que lhe permitam prover necessidades vitais e despesas cotidianas, em especial com alimentação, habitação, vestuário, saúde e higiene", de autoria da professora doutora Ana Carolina Zancher e do professor doutor André Perin Schmidt.
Esse enunciado traz um conceito amplo e subjetivo de mínimo existencial. Rendimentos mínimos referentes à subsistência digna do superendividado e sua família. Mas o que se enquadrará em subsistência digna? O que será considerado como necessidade vital? Por exemplo, o enunciado menciona o vestuário como necessidade vital, mas qual é o limite? Como quantificar esse limite? São perguntas que ainda seguem sem respostas, por conta da ausência de regulamentação específica.
Enunciado 7: "A noção do mínimo existencial tem origem constitucional no princípio da dignidade da pessoa humana e é autoaplicável na concessão de crédito e na repactuação das dívidas, visando a prevenção e o tratamento do superendividamento do consumidor pessoa natural, por força da Lei 14.181, 2021, cabendo a regulamentação prevista na Lei, sob o limite da proibição de retrocesso, esclarecer o mínimo existencial de consumo deve ter relação com ‘o menor valor mensal não tributável a título de imposto de renda’ ou ser feito por faixas de renda, como na França, com um valor fixo ‘vital’ de um salário mínimo ou de 2/3 do salário mínimo, em todos os casos", de autoria da professora doutora Claudia Lima Marques, do professor doutor Fernando Rodrigues Martins, da professora doutora Sophia Martini Vial e da professora doutora Clarissa Costa de Lima.
Referido enunciado busca quantificar o mínimo existencial de consumo ao "menor valor mensal não tributável a título de imposto de renda"' e sugere a fixação por faixas de renda, como, por exemplo, dois terços de um salário mínimo.
Destarte, os enunciados acima confirmam a inexistência de um conceito claro e objetivo acerca do mínimo existencial e, assim, o direito do consumidor à preservação desse mínimo existencial acabará por ficar, enquanto não houver regulamentação específica, a critério dos julgadores.
É evidente, contudo, a noção abrangente desse conceito, que se relaciona com o princípio da dignidade da pessoa humana e com as condições mínimas de existência, sem ser, entretanto, um valor ou princípio. Nesse sentido, Alexandre Petry Torres bem entende:
"Apesar de ser impregnado por valores e princípios jurídicos, o mínimo existencial não é um valor nem um princípio, mas o conteúdo essencial dos direitos fundamentais. O mínimo existencial é regra, uma vez que se aplica por subsunção, constituindo direitos definitivos e não se sujeitando a ponderação" [9] [10].
Entre outras mudanças que traz a Lei do Superendividamento, a menção ao direito do mínimo existencial chama atenção justamente pela necessidade de regulamentação do tema, que provavelmente ocorrerá por meio de um decreto específico.
Enquanto isso, os Procons correram à frente e instituíram definições próprias para o mínimo existencial, como foi o caso da Portaria do Procon do Maranhão, nº 184/2021, que definiu, em seu artigo 5º, §3º, que:
"O cálculo do mínimo existencial deverá levar em conta a situação familiar, de moradia, de alimentação e vestuário mínimo do consumidor, podendo de forma geral ser considerado, nas faixas entre 1 a 5 salários mínimos, a necessidade de manutenção de cerca de 60% a 65% da remuneração mensal do consumidor para as despesas de sobrevivência, podendo aumentar nas faixas superiores de 5 a 10 salários mínimos até 50% da remuneração mensal" [11].
Há de se aguardar, contudo, a regulamentação acerca do conceito de mínimo existencial, para que se identifique se será autorizada a fixação do conceito de forma autônoma e independente pelos Procons dos estados. Caso contrário, a medida poderá ser considerada inconstitucional, já que refiro órgão não teria competência para tanto.
A Lei do Superendividamento entrou em vigor em julho deste ano. Deve-se acompanhar, assim, como se dará a aplicação da referida lei, bem como a aplicação do conceito do mínimo existencial nela disposto.
[1] MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz. Exceção dilatória para os consumidores frente à força maior da Pandemia de COVID-19: Pela urgente aprovação do PL 3.515/2015 de atualização do CDC e por uma moratória aos consumidores. Revista de Direito do Consumidor, v. 129, p. 47-71, maio /jun. 2020.
[2] A exemplo da tese de Karen Bertoncello (BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz. Superendividamento do consumidor: mínimo existencial: casos concretos. São Paulo: Revista dos Tribunais).
[3] ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico, 6. ed., Trad. de J. Baptista Machado, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988. p. 208.
[4] ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico, 6. ed., Trad. de J. Baptista Machado, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988. p. 240.
[5] CRÉDITO RESPONSÁVEL: Jornada da UFRGS e UFRJ aprova enunciados sobre a Lei do Superendividamento. Revista Consultor Jurídico, ago. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-26/jornada-aprova-enunciados-lei-superendividamento. Acesso em: 18 nov. 2021.
[6] POMPEU, Ivan Guimarães; POMPEU, Renata Guimaraes. A teoria do patrimônio mínimo versus o superendividamento: análise jurídico-econômica sobre o acesso a bens e a serviços. Revista Jurídica da Faculdade Uma de Contagem, v. 2, n. 2. 2015.
[7] DANIEL, Juliana Maia. O Mínimo Existencial no Controle Jurisdicional de Políticas Públicas. (Dissertação de Mestrado em Direito). São Paulo: USP, 2013.
[8] Segundo Daniel Sarmento, haveria um conteúdo mínimo de direitos fundamentais, um “núcleo essencial [que] traduz o ´limite dos limites’ ao demarcar um reduto inexpugnável, protegido de qualquer espécie de restrição” (SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 111).
[9] TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 84
[10] PETRY. Alexandre Torres. Mínimo Existencial e sua Relação com o Direito do Consumidor. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, v. 19, 17 mar. 2014.
[11] PORTARIA PROCON Nº 184 DE 29/07/2021. Legisweb, ago 2021. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=418335. Acesso em: 18 out. 2021.
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