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Cide-royalties não pode incidir sobre remessas de direitos autorais

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

20 de outubro de 2021, 14h06

Nos tempos recentes, a tecnologia tem fomentado uma economia disruptiva e sem fronteiras. Isso facilita o acesso a conteúdos, cria novas oportunidades, mas também gera entraves para concorrência de segmentos fortemente regulados. Esse é o caso da televisão brasileira, assim como de outros setores com idênticos problemas. O problema se agrava, porém, quando os danos à concorrência são estimulados pela tributação, em favor de quem nada produz para a economia brasileira ou paga aqui qualquer tributo.

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Um desses casos curiosos de indução favorável aos concorrentes estrangeiros que aqui não pagam nenhum imposto pode ser visto na pretensão de autoridades da Secretaria da Receita Federal (RFB) de exigir, com duplicidade, a Cide-royalties e a Condecine-remessas sobre a remuneração, nas hipóteses dos direitos de transmissão das obras cinematográficas.

A carga tributária sobre a veiculação, no país, de obras cinematográficas estrangeiras, considerando a incidência de IRRF e Condecine, é de 26%. Com a exigência cumulativa da Cide-royalties, essa carga tributária alcança o patamar de 36%. Isso sem considerar os demais tributos incidentes (ISS, PIS/Cofins etc.).

O setor de audiovisual no Brasil, conforme dados da Ancinee das associações do setor, gera cerca de 335 mil empregos diretos e indiretos, possui representação de 0,46% no PIB, superando, por exemplo, a participação da indústria farmacêutica, além de gerar, em média, R$ 20,8 bilhões de valor adicionado à economia. Em 2015, as empresas nacionais distribuíram 616 filmes, com uma renda de R$ 557,2 milhões.

Ora, é de todo evidente que a superposição da cobrança de Cide-royalties com a Condecine, ambas sobre as remessas de pagamentos por direitos autorais para a veiculação de obras cinematográficas estrangeiras no país, não encontra amparo na Constituição. Finda por servir como discriminação das empresas brasileiras em favor de empresas estrangeiras, em afronta ao artigo 150, II, da CF.

Por força da MP nº 2.228-1/2001 e da Lei nº 10.454/2002, quando a empresa de audiovisual brasileira remete capital ao exterior, para remunerar a veiculação de tais obras no país, está sujeita ao recolhimento da Condecine-remessas. A cobrança de Cide-royalties, por sua vez, não comporta nenhuma referibilidade com a incidência sobre os direitos autorais de produções cinematográficas.

A Lei nº 10.168/2000, instituidora da Cide-royalties, subordina sua incidência ao campo da propriedade industrial, como fica evidente pelas situações previstas, na norma, como sujeitas à tributação da contribuição, a saber: 1) transferência de tecnologia, definida na lei como a "exploração de patentes ou de uso de marcas e os de fornecimento de tecnologia e prestação de assistência técnica"; 2) serviços técnicos e de assistência administrativa e semelhantes; ou 3) pagamento de royalties a qualquer título. Todas essas situações referem-se ao campo da propriedade industrial.

Para a propriedade industrial (criações industriais), a Lei nº 9.279/1996 prevê o seu controle pelo INPI, com sua remuneração feita por royalties e sua tributação, quando vinculada a situações de transferência de tecnologia, regulada pela Lei nº 10.168/2000 (Cide-royalties). As produções artísticas, claramente, refogem ao âmbito material da referida Cide-royalties.

A separação entre o direito autoral e a propriedade industrial é manifesta. Os direitos autorais, nos termos do artigo 18 da Lei nº 9.610/1998, independem de registro, nascem junto com a criação da obra pelo autor.

Deveras, para o direito autoral (criações artísticas), especificamente relacionado às obras audiovisuais e cinematográficas, toda a matéria subordina-se ao regime regulatório da Ancine, com a tributação de sua remuneração, inclusive das remessas para o exterior, por meio da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine).

No caso da propriedade industrial, diferentemente, o INPI assume o encargo de não apenas gerenciar os direitos relativos às produções dessa natureza, mas de ser a instituição competente para o registro destas, sem o qual não haverá proteção legal. Trata-se, pois, de dois ambientes completamente diversos. Daí não se poder confundir, inclusive, os tipos de verbas que remuneram um e outro.

O artigo 149 da Constituição, ao demarcar os motivos constitucionais possíveis, para fins de instituição válida de Cide, ocupou-se em limitar as materialidades de suas hipóteses de incidência, que ficarão sempre a depender da "atuação (da União) nas respectivas áreas". Logo, a Cide-royalties, como sabido, guarda relação direta com a prescrição do artigo 218 da CF, segundo a qual: "O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação". Já a Condecine, por sua vez, ancora-se no artigo 215 e no artigo 216-A, ambos da CF.

Os distintos subsistemas de regulação da Ancine ou do INPI, de modo inequívoco, contemplam normas jurídicas que excepcionam os regimes gerais de Direito Privado e de Direito Administrativo, que igualmente devem ser observadas pelas autoridades administrativas, por força do artigo 109 da Constituição. Criam, assim, uma área especializada com normas especiais que devem prevalecer sobre qualquer outro conteúdo, seja de Direito Privado ou Público.

A Lei nº 4.131/1962, que trata das remessas financeiras ao exterior, por mais de uma vez, refere-se aos royalties como pagamento devido "pela exploração de patentes de invenção, ou uso da[s] marcas de indústria e de comércio" (artigos 11 e 12). A norma não faz nenhuma alusão aos direitos autorais. Esta mesma associação era feita pelo já revogado Código de Propriedade Industrial (Lei nº 5.772/11971).

A Lei nº 4.131/1962, que é norma específica sobre direito autoral, em nenhuma ocasião utiliza o termo royalties. Antes, para se referir à contrapartida pelo direito autoral, vale-se das palavras "retribuição" e "remuneração".

Ao cuidar especificamente da "utilização da obra audiovisual", a lei prevê que o contrato de produção audiovisual deve estabelecer "a remuneração devida pelo produtor aos co-autores da obra" (artigo 82 da Lei nº 4.131/1962). Destarte, as remessas ao exterior realizadas, em razão da exibição de peças cinematográficas, configuram remuneração por direito autoral e, consequentemente, não podem ser tratadas como se royalties fossem.

Como manifesta a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), a propriedade industrial tutela "a transmissão de sinais contendo informações, em particular aos consumidores, relativamente a produtos e serviços", ao passo que o direito autoral disciplina os direitos e prerrogativas do autor com relação à sua obra artística, inclusive quanto à reprodução.

Essa dicotomia da propriedade intelectual não passou despercebida pela legislação brasileira, a qual, adequadamente, confere tratamentos distintos, notadamente pela natureza dos objetos tutelados, à propriedade industrial e ao direito autoral. Deveras, as propriedades industrial e autoral repercutem efeitos jurídicos diversos, o que não pode ser olvidado pela legislação tributária.

O direito autoral, por sua vez, recebeu tratamento por dispositivo constitucional diverso o inciso XXVII do artigo 5º da CF e é regulamentado pela Lei nº 9.610/1998, que, além de outros aspectos, trata da transmissão das obras artísticas. Em razão dos diferentes tipos de produção artística, a tutela do direito autoral é encabeçada por órgãos, agencias ou autarquias diversos, como o Escritório de Direitos Autorais (EDA) e o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). E, para as obras cinematográficas, a gestão dos direitos autorais é exercida pela Agência Nacional do Cinema (Ancine), vinculada ao Ministério do Turismo.

A Condecine deve sua aderência aos atos e negócios jurídicos relacionados com o mercado audiovisual, tendo como referibilidade primária o artigo 149 e os artigos 215, 216, §3º, e 216-A, §1º, III, XII, e §2º, VI, da Constituição, segundo a regulação da Ancine.

O §2º do artigo 2º da Lei nº 10.168/2000, ao empregar a expressão "royalties a qualquer título", não autoriza qualquer inovação do regime de direito privado ou extensões hauridas de outros domínios da legislação tributária, porque isso seria o mesmo que autorizar a analogia para cobrar tributos, o que o artigo 108, §1º, do CTN veda expressamente. Em conclusão, inadmissível, pois, a dupla incidência da Cide-royalties e da Condecine sobre a mesma hipótese material, que consiste na remessa de valores para contratação de serviços de broadcasting de cunho audiovisual, prestados por não residentes.

A Receita Federal do Brasil (RFB) sempre reconheceu a distinção entre royalties e direitos autorais, como é o caso do Parecer CST nº 520/1989, relativo à dedutibilidade dos pagamentos de direito autoral para fins do IRPJ, no qual o órgão fazendário apontou as seguintes diretrizes, in verbis:

"[A] interpretação do artigo 32 do RIR/80 como a do artigo 22 da Lei nº 4.506/64 consagra a distinção e não a identidade, entre ‘royalties’ e direitos autorais, já que a expressão ‘como royalties’ quer dizer ‘como se royalties fossem’ (grifos nossos). A equiparação de direitos autorais a ‘royalties’ foi feita exclusivamente para fins de classificação de rendimentos de pessoa física, não cabendo essa equiparação para as pessoas jurídicas, por ausência de previsão legal" (grifo do autor).

Com o Decreto nº 4.195/2002, que regulamenta a Cide-royalties, a situação ficou ainda mais clara ao se delimitar a incidência da contribuição ao pagamento de royalties por: 1) contratos de fornecimento de tecnologia; 2) prestação de assistência técnica; 3) serviços técnicos e de assistência administrativa; 4) exploração de patentes; e 5) de uso de marcas.

De se ver, pela Lei nº 10.168/2000 ou pelo Decreto nº 4.195/2002, que promove sua regulamentação, não há nenhuma regra que autorize a inclusão das remunerações por direitos autorais na incidência da Cide-royalties. E tanto menos os "alugueis" devidos pelo uso de obras cinematográficas, em virtude da distinção do artigo 21, IV, da Lei nº 4.506/1964, que não confere este tratamento aos royalties por "direitos autorais" (artigo 22, "d", da Lei nº 4.506/1964), numa extensão que só tem aplicação para o Imposto de Renda, e com exclusão expressa do "direito de uso ou exploração de películas cinematográficas" (aluguel).

A interpretação literal das regras da Lei nº 4.506/1964 facilmente permite compreender a segregação proposital entre o regime de "aluguel", para os direitos de uso ou exploração de películas cinematográficas, daquele dos royalties para as demais formas de "direitos autorais" (sentido amplo). Portanto, mesmo nos limites do imposto sobre a renda, afirma-se essa necessária distinção entre royalty e aluguel, que não se pode afastar do modelo hermenêutico a ser empregado.

Especificamente sobre as remessas financeiras, ao exterior, para pagamento de direitos de transmissão de "filmes", a Lei nº 9.430/1996 manteve a separação deste tipo de produção artística em relação aos royalties, nos seguintes termos:

"Remuneração de Direitos
Artigo 72 
Estão sujeitas à incidência do imposto na fonte, à alíquota de quinze por cento, as importâncias pagas, creditadas, entregues, empregadas ou remetidas para o exterior pela aquisição ou pela remuneração, a qualquer título, de qualquer forma de direito, inclusive à transmissão, por meio de rádio ou televisão ou por qualquer outro meio, de quaisquer filmes ou eventos, mesmo os de competições desportivas das quais faça parte representação brasileira" (grifo do autor).

Esse dispositivo foi reproduzido no artigo 709 do RIR/99. Em destaque, no artigo subsequente (artigo 710), prevê a mesma alíquota de 15% do IRRF para o pagamento de royalties ao exterior. A separação resta evidente.

Fossem regimes equivalentes, o de aluguel de obras cinematográficas e o pagamento de royalties, a previsão da mesma alíquota de 15% não seria atribuída em artigos em apartado. Não resta dúvida que o legislador tributário fez questão de separar, dos pagamentos de royalties, as remessas ao exterior para pagamento pelos direitos de transmissão de filmes, em rádio ou televisão.

Em conclusão, a equiparação pretendida entre remessas para exploração de obras (ou películas) cinematográficas é completamente indevida. Primus. Não se poderia estender o tratamento da Lei nº 4.506/1964 para interpretar a Lei nº 10.168/2000, por não terem o mesmo objeto, segundo a Lei Complementar nº 95/1998. Secundus. O sentido de "royalties, a qualquer título", introduzido pela Lei nº 10.332/2001, deve assegurar a prevalência da separação dos domínios da qualificação do direito privado em relação aos direitos autorais, nos termos do art. 109 do CTN. Tertius. A Lei nº 10.168/2000 e o Decreto nº 4.195, de 11.4.2002, este posterior à Medida Provisória nº 2.228-1/2001, não trazem qualquer equivalência entre o aluguel de obras cinematográficas e o regime de royalties, para os fins da incidência da Cide-royalties. Quartus. Toda a legislação do imposto sobre a renda, na atualidade, mantém a segregação entre os referidos regimes, sem qualquer confusão de efeitos tributários.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro, livre-docente de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado. Foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).

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