TRIBUNA DA DEFENSORIA

Defensoria e o enfrentamento ao estado de exceção e à criminalização da pobreza

Autor

  • Renata Martins de Souza

    é defensora pública do estado de Minas doutora em Direito Público e mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG e professora de graduação do curso de Direito.

19 de outubro de 2021, 8h00

A manutenção da prisão pelo Poder Judiciário de uma mulher em situação de rua, mãe de cinco filhos, que teria praticado a subtração de alimentos avaliados em R$ 21,69, no estado de São Paulo, reacende o debate acerca do recrudescimento da repressão penal direcionada seletivamente contra os mais pobres e da influência do estado de exceção na vivência do Brasil.

Apesar de declarar, no ato da prisão (ocorrida em 29 de setembro), que teria praticado a subtração com o intuito de saciar a fome, ela teve a prisão em flagrante convertida em preventiva pela Justiça, a pedido do Ministério Público de São Paulo. Ao converter a prisão em preventiva, a magistrada que analisou o caso considerou que, como a autuada já havia cometido outros crimes, a reincidência impediria a aplicação do princípio da insignificância — também conhecido como princípio da bagatela — e afastaria a possibilidade de liberdade provisória.

Representada pela Defensoria, a mulher pugnou por liberdade junto ao Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, o qual optou por manter o encarceramento daquela, ao argumento, em síntese, de que a medida seria necessária para assegurar a ordem pública, notadamente em virtude de a índole da autora estar voltada à delinquência.

Diante desse cenário, a Defensoria Pública, calcada em sua missão constitucional de prestar assistência judiciária integral e gratuita aos mais vulneráveis, insistindo na soltura da investigada e na tese da modalidade famélica do furto, impetrou Habeas Corpus junto ao Superior Tribunal de Justiça, tendo sido o pedido, finalmente, acolhido pelo ministro relator da ação, Joel Paciornik, o qual apontou em sua decisão — tomada no dia 13 de outubro de 2021 — que, de fato, a jurisprudência do STJ entende que a habitualidade na prática de delitos, mesmo que insignificantes, afasta a incidência da bagatela. Acrescentou, contudo, o julgador que há situações em que o grau de lesão ao bem jurídico tutelado pela lei penal é tão ínfimo que não se poderia negar a incidência do princípio. "Essa é a hipótese dos autos. Cuida-se de furto simples de dois refrigerantes, um refresco em pó e dois pacotes de macarrão instantâneo, bens avaliados em R$ 21,69, menos de 2% do salário mínimo, subtraídos, segundo a paciente, para saciar a fome, por estar desempregada e morando nas ruas há mais de dez anos", pontuou o ministro ao trancar a ação penal e determinar a liberdade da mulher (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quinta Turma. HC nº 699572/SP. Relator: Min. Joel Ilan Paciornik).

Deveras, a despeito de a conduta praticada pela investigada, em tese, enquadrar-se em um tipo penal, não se pode olvidar o fato de que uma das principais características do Direito Penal consiste no fato de o mesmo ser considerado a ultima ratio do sistema jurídico. Nessa perspectiva, é que se sustenta ter ocorrido no caso acima ilustrado uma exacerbação do controle penal, em especial diante da nítida falta de sensatez dos julgadores de primeira e segunda instâncias do Judiciário, os quais deixaram de priorizar a utilização de elementos concretos e valorativos, indispensáveis em um Estado Democrático de Direito.

A indiferença com a vida humana, a repressão estatal desmedida e a inobservância de princípios constitucionais basilares, tais como a ofensividade, a presunção de inocência e proporcionalidade denotam a forte incidência do Direito Penal do inimigo (apresentado por Gunter Jakobs) no sistema brasileiro.

A seletividade do sistema penal brasileiro e a sua atuação cada vez mais repressiva no enfrentamento a seus “inimigos” nos remete também ao pensamento desenvolvido pelo italiano Giorgio Agamben (2004; 2010), o qual sustenta que muitos Estados atuam no sentido de criar espaços juridicamente vazios, por meio da suspensão dos direitos e garantias fundamentais, com o propósito deliberado de excluir grupos marginalizados e indesejados, mesmo diante dos casos em que não se configura o estado de emergência.

Segundo destaca o mesmo autor, em meio a tal contexto, de criação voluntária de um estado de emergência permanente por parte dos Estados, ganha relevância a noção de “homo sacer” e a relação de banimento a ele inerente (Agamben, 2010). Tal figura faz menção à existência de um sujeito desprovido de proteção política e jurídica, um ser cuja vida nada vale, estando submetido ao poder soberano e compelido a viver em “estado de exceção”. Extirpada de cidadania, a vida restante do indivíduo corresponde à categoria da vida nua de Agamben (2010, p. 16):

 

[…] a vida nua, isto é, a vida matável e insacrificável do homo sacer, cuja função essencial na política moderna pretendemos reivindicar. Uma obscura figura do direito romano arcaico, na qual a vida humana é incluída no ordenamento unicamente sobre a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta matabilidade), ofereceu assim a chave graças a qual não apenas os textos sacros da soberania, porém, mais em geral, os próprios códices do poder político podem desvelar os seus arcanos.

 

No Brasil, em tese, apenas durante a vigência do estado de sítio e estado de defesa, que integram o “sistema constitucional de crises” (informados pelos princípios da excepcionalidade, necessidade, temporariedade e obediência estrita à Constituição), é que direitos e garantias fundamentais poderiam vir a sofrer restrições. Entretanto, tal não é o que se constata na prática. Deveras, mesmo em tempos de “normalidade, com frequência, nos deparamos com políticas públicas e até mesmo decisões judiciais tomadas com o fim de excepcionar direitos das pessoas em situação de rua, pobres, moradores de comunidades, estrangeiros, dentre outros.

Nesse sentido, a título de mera ilustração, cita-se a expedição indiscriminada de Mandados de Busca e Apreensão (coletivos), autorizando a Polícia Civil a fazer revista nas casas nas favelas Nova Holanda e Parque União, subúrbio do Rio, no Complexo da Maré durante a realização da Copa do Mundo 2014 e das Olimpíadas 2016 (CORRÊA), revelando flagrante abandono das regras e dos princípios jurídicos. Expedidos com eficácia territorial ampla, geograficamente imprecisa, sem se preocupar em determinar o fato concreto a ser apurado, tais mandados foram direcionados aos moradores de favelas, como se todos fossem inimigos ou adversários do interesse público.

Alinhados à visão do italiano Giorgio Agamben, segundo o qual cenários de crises constantes levam a justificar práticas de excetuação de direitos, configurando um estado de exceção não completamente estabelecido, afirmam Cruz, Bernacci e Guimarães (2017, p. 581), que

 

No Brasil, país repleto de diversidade, multicultural e de extensa miscigenação de raças, não há grande diferença. O modo como a sociedade, em grande medida, trata como inexistentes os favelados, chegando até mesmo a sustentar que devem ser eliminados, porquanto ‘bandidos em potencial’, uma vez que as comunidades carentes são berços da criminalidade e, portanto, uma mancha na cidade para os cidadãos de bem. Além deles, os moradores de rua são exemplos maior de invisibilidade. Demais minorias, como homossexuais, transexuais, mulheres, negros, índios, quilombolas e imigrantes sofrem com a marginalização. Todo aquele que foge do padrão colocado pela sociedade contemporânea é automaticamente marginalizado e, mais do que isso, não é visto, não é considerado.

Zafaroni, de algum modo, denuncia esse ‘direito do inimigo’. Um ‘direito excepcional’ que se insere na ‘normalidade’ cotidiana. Um ‘direito’ que impõe cela especial para diplomados em curso superior, mas, podemos ir além de Zafaroni e lembrar de um ‘direito’ que autoriza isenções e diferimentos fiscais para os ‘amigos do rei’; um ‘direito’ que extermina conduções coercitivas e prisões preventivas/temporárias seletivas; um ‘direito’ que multiplica medidas provisórias tal como os Atos Institucionais do período da ditadura civil-militar de 1964; um ‘direito’ que transformam o STF num Poder Constituinte anômalo; um ‘direito’ que acerta previamente os vencedores de licitações já na confecção de seus editais; um ‘direito’ que impõe o peso maior da tributação aos pobres pelo consumo; um ‘direito’ que multiplica o discurso de que ‘bandido bom é bandido morto’, legitimando os excessos policiais; um ‘direito’ que torna lixo os catadores de material reciclável, um ‘direito’ que despreza a adoção de crianças negras ou maiores de 6 anos de idade; um ‘direito’ que autoriza os ‘cidadãos de bem’ a furar a fila de transplantes de órgãos; um ‘direito’ que torna o ensino um modo de inflação do ego acadêmico. Se antes o ‘comunista’ era menos do que um ser vivente, Sobral Pinto tentou proteger seus direitos do sadismo na tortura dos asseclas de Filinto Müller pela Lei de Proteção aos Animais, agora o mesmo ocorre com os criminosos. Comunistas, bandidos, negros, idosos, crianças, mulheres, cada um de um jeito, se tornam no ‘modo do mesmo’ o ‘inimigo’. A diferença se torna um insulto, razão para a violência e para o arbítrio.

 

A percepção de que o Estado de Direito ainda hoje se traduz em um estado de exceção, que nega os direitos dos diferentes, criando um invisível social, ainda levam Cruz, Bernacci e Guimarães (2017, p. 569), a traçar um perfil do homo sacer de Agamben no cenário brasileiro:

 

O invisível ao sistema de direitos! O ‘apátrida’ de Hannah Arendt! O ‘marginal’ de Derrida! O órfão de tudo! A prostituta: aquela mulher abaixo da dignidade das mulheres. O presidiário: aquele que, mais do que ter cerceada sua liberdade, perde qualquer dignidade. O originário: aquele que não merece existir porque insiste em não ser branco. O favelado: aquele marginal que não merece ter direitos, porque é marginalizado pela sociedade. O imigrante: aquele que merece a rejeição, simplesmente por ser estrangeiro.

 

Nesse quadro, parece razoável sustentar que a constante adoção de práticas e atos estatais tendentes a suspender e vulnerar direitos e garantias fundamentais destinados à preservação de pessoas desvalidas – tal como se deu no caso acima ilustrado, de encarceramento da mulher em estado de extrema pobreza que teria subtraído para saciar a fome – nos remete à um cenário alarmante de constante violação dos direitos humanos, similar a um verdadeiro estado de exceção.

Nessa linha de reflexão, incumbe enfatizar que a Defensoria Pública, diuturnamente, identifica e combate situações como estas, de opressão e violação de direitos humanos em todo país, articulando-se no sentido de assegurar um olhar atento e humanizado à pessoas e grupos vulnerabilizados, tal como aquele destinado ao caso acima retratado.

Nesse cenário, restando demonstrado que o País também tende a se aliar à tendência contemporânea de abolição gradual dos direitos e liberdades individuais, reproduzindo um verdadeiro estado de exceção, torna-se imprescindível reconhecer a necessidade de fortalecimento das defensorias no Brasil, tendo por foco romper as barreiras ao amplo acesso à justiça aos mais vulneráveis e fazer minimizar o aprofundando das desigualdades já latentes, atuando, sobretudo, no sentido de promover medidas concretas de desencarceramento, tendo por objetivo amparar e acolher pessoas e grupos vulneráveis da sociedade.

A propósito, ao dissertar sobre as necessárias transformações para se alcançar uma revolução democrática da justiça no Brasil, Santos (2011, p; 25-47) destaca a relevância do papel desenvolvido pelas defensorias públicas, quanto ao acesso à justiça e na construção de uma justiça de proximidade, tendo em vista a qualidade do serviço público prestado. Salienta o autor

 

Cabe aos defensores públicos aplicar no seu quotidiano profissional a sociologia das ausências, reconhecendo a afirmando direitos dos cidadãos intimados e impotentes, cuja procura por justiça e o conhecimento do/s direito/s têm sido suprimidos e ativamente reproduzidos como não existentes. (SANTOS, 2011, p. 35)

 

Com efeito, tomando por base o contexto delineado e a situação acima retratada, que denota clara opressão de direitos humanos, tão lastrada em nossa situação cotidiana, torna-se possível afirmar que, apesar dos inúmeros entraves geralmente pontuados (diminuto número de defensores, carência de pessoal e infraestrutura adequada, bem como a sobrecarga de trabalho suportada pelos defensores públicos atuantes em menos de metade das comarcas do País), vocacionada, a instituição Defensoria permanece reconhecendo na alteridade um pressuposto filosófico relevante e capaz de fundar um discurso que reconhece os invisíveis como humanos, empreendendo esforços para assegurar aos seus assistidos patamares mínimos necessários de tutela da dignidade humana, além constituir ferramenta essencial no processo de desativação do estado de exceção e na construção de um autêntica democracia.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.

_____. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

CORRÊA, Douglas. Justiça autoriza revista a casas de moradores do Complexo da Maré. EBC, 30 mar. 2014. Disponível em: <http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2014/03/justica-autoriza-revista-a-casas-de-moradores-do-complexo-da-mare>. Acesso em: 14 out. 2021.

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza; BERNACCI, Mariana Camilo; GUIMARÃES, Ana Luiza Tibúrcio.  O estado de exceção e os invisíveis sociais: um encontro de Agamben e Lévinas. Revista de Estudos e Pesquisas Avançadas do Terceiro Setor. Brasília, v. 4, n.2, p. 560-584, jul-dez 2017.

JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. org. e trad. André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Revolução Democrática da Justiça. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

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