Opinião

Regra do CFOAB sobre "ostentação" e a separação da água e do vinho

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19 de outubro de 2021, 11h55

O parágrafo único do artigo 6º do Provimento 205/2021 do Conselho Federal da OAB veda "em qualquer publicidade a ostentação de bens relativos ao exercício ou não da profissão, como uso de veículos, viagens, hospedagens e bens de consumo, bem como a menção à promessa de resultados ou a utilização de casos concretos para oferta de atuação profissional". A ostentação tratada na primeira parte do dispositivo em referência é algo bastante presente nas redes sociais, a exemplo do Instagram e do Tik Tok, que enfatizam o estilo de vida dos seus usuários.

Há alguns anos começamos a ver algumas transformações trazidas pela internet, tornando famosas pessoas até então anônimas ou mesmo impulsionando a venda de vários negócios pelo marketing digital, símbolo do famoso "seis em sete", que significa a venda de um infoproduto e o faturamento de seis dígitos em sete dias. Diante de toda essa abundância, vários profissionais, incluindo aqueles de ambientes mais conservadores, como a medicina e o direito, foram atraídos para o mundo online, visando a expansão de seus negócios e a contratação de seus serviços.

Os gurus do marketing digital, então, logo os alertaram: sem humanizar o seu perfil (do Instagram, Tik Tok ou outra rede semelhante), as pessoas não seriam atraídas a ele. Apontavam como exemplo a interação na página de Instagram de empresas famosas como a Brastemp ou a Volkswagen do Brasil em comparação com a do digital influencer Windersson Nunes, para mostrar que seguidores orgânicos buscam uma comunicação não com uma marca, mas sim com uma pessoa (não à toa a Magazine Luiza, gigante do varejo, criou a Lu da Magalu para falar com os seus usuários e a Netflix utiliza uma linguagem jovem e engraçada para responder aos comentários no seu perfil). As pessoas querem falar com pessoas, querem ver o seu dia a dia, as suas dores e as suas conquistas; é dessa forma que se vende no Instagram: fingindo que não se está vendendo nada.

É assim, portanto, que a roda gira nas redes sociais. É lógico que existem exceções para essa regra e um ou outro profissional consegue sim alavancar suas vendas e aumentar a cartela de clientes sem precisar expor nada da sua vida pessoal, mas a grande maioria das pessoas está mais interessada em saber sobre os seus hábitos para criar uma relação com você e, com isso, consumir os seus serviços ou produtos, do que em seguir um perfil que traga muitas informações (por melhores que sejam), mas nada diga sobre aquele ou aquela que as produz.

Essa conexão entre quem você é e o que você faz te permite atrair não apenas seguidores, mas clientes, que, na maioria das vezes, compram o seu produto, não o do concorrente, porque querem ser como você. O estilo de vida vende e, por mais perigoso que seja enxergar o sucesso pessoal com base na imagem que os outros possuem de você, como alertamos em artigo recente intitulado "A ostentação como liberdade de expressão"[1], a grande questão que se coloca diante do parágrafo único do artigo 6º do Provimento 205/2021 do Conselho Federal da OAB não é "ostentar ou não ostentar?", mas sim limitar ou não limitar a publicização das vantagens materiais fruto do trabalho com o objetivo de atrair clientes ou parceiros de profissão.

Sobre o assunto, a Folha de S.Paulo afirmou em matéria recente[2] que o "texto teve interpretação equivocada nas redes sociais", já que para a Conselheira Federal da OAB Greice Fonseca Stocker, o "dispositivo não impede a ostentação nas redes sociais para os profissionais e suas vidas privadas", tratando-se, sim, "de uma limitação destinada à forma com que é feita a publicidade pela advocacia", de maneira que não haveria qualquer impedimento à "ostentação nas redes sociais para os profisisonais e suas vidas privadas", opinião reforçada pela Conselheira Federal da OAB pela Paraíba Marina Gadelha em artigo escrito para o Migalhas[3], ao afirmar que "é óbvio que o advogado e a advogada podem, nos seus canais (virtuais ou não) pessoais, se gabar de usar roupas e acessórios caros, de possuir veículos de luxo ou de realizar viagens exclusivas. Não devem, no entanto, vincular tal suntuosidade à advocacia, sob pena de restar configurada a publicidade e, consequentemente, a vedação aqui tratada. Semelhantemente, não é possível que a sociedade de advogados se exiba como propiciadora de uma vida de riqueza aos seus sócios e associados". A grande dúvida que se coloca diante de tais afirmações é, como separar a água do vinho?

Qualquer estudante de direito que começa a estagiar na faculdade percebe que há uma distinção entre a teoria e a prática. Conceitos que ficam bastante claros no papel são, muitas vezes, impossíveis de serem identificados quando acontecem no mundo real. O Conselho Federal da OAB, aparentemente, nos presenteia com mais um desse impasse entre teoria e prática, já que as explicações de que a vedação não alcança a vida privada da advogada e do advogado, mas, tão apenas, a publicidade na sua vida profissional, não sugere êxito ao enfrentar a seguinte questão: como dividir essas duas esferas nas redes sociais que se destinam, muitas vezes, através do compartilhamento dos seus hábitos pessoais, à sua promoção profissional?

Quem aqui nunca associou o sucesso de um profissional ao carro que ele dirige ou ao seu local de trabalho que atire a primeira pedra, ou, numa expressão mais moderna, que dê o seu primeiro dislike. É lógico que não há exibição "despretensiosa" ou "desvinculada" nas redes sociais. Nenhuma pessoa que posta uma foto com ênfase no seu corpo na praia e escreve na legenda uma passagem bíblica está interessada em disseminar a palavra de Deus, mas sim em exibir os seus atributos físicos e impulsionar, de alguma forma, o seu branding pessoal através dessa estratégia.

Afirmar que é possível ostentar o seu estilo de vida nos momentos íntimos, desde que não se vincule "tal suntuosidade à advocacia, sob pena de restar configurada a publicidade e, consequentemente, a vedação aqui tratada", é ignorar a regra número 1 do mundo digital: tudo está conectado e a venda dos nossos serviços ocorre, justamente, por aquilo que você "finge" que não está vendendo: a sua imagem de sucesso.

O sagrado e o profano, no mundo da advocacia, estão cada vez mais ligados à hipocrisia que nos cerca: o nosso discurso diverge da nossa conduta. Somos, em grande maioria, da boca para fora e nos encontramos, tal qual como aconteceu com Dante[4], em uma selva escura "a meio caminhar de nossa vida", por termos recusado seguir a via da razão e da virtude, afundando "cada vez mais na matéria", sem escapar "da contradição que toda alma vive", o que, todavia, não autoriza o Conselho Federal da OAB ou quem quer que seja, a interferir em nossa autonomia privada e liberdade de expressão.

Há, com razão, uma preocupação válida do CFOAB na barragem de "menção à promessa de resultados ou a utilização de casos concretos para oferta de atuação profissional", uma vez que isso tem o condão de impactar não apenas a esfera individual do profissional que dessa forma se promove, mas, igualmente, dos outros membros da classe, que podem ver uma viragem na jurisprudência do STJ que hoje reconhece a responsabilidade civil subjetiva do advogado diante da prestação de serviço que constitui obrigação de meio, não de resultado, para passar a admitir a responsabilidade objetiva frente à caracterização de obrigação de resultado baseada nas promessas realizadas. A vedação à ostentação, todavia, longe de promover a ética, ofende a liberdade de expressão daqueles que dessa forma desejam se expressar, mostrando-se incompatível com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Carlos Malheiros Dias nos diz que "é mais fácil separar a água do vinho que a hipocrisia da verdade no julgamento das ações humanas", duas tarefas que o CFOAB parece ter falhado ao disciplinar sobre ostentação e publicidade. Só nos resta agora aguardar que o órgão extremo deliberativo da advocacia reconheça a impossibilidade de a classe se curvar à primeira parte do parágrafo único do artigo 6º do Provimento 205/21, diante da necessidade deste se curvar à Constituição.


[4] ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia – Inferno; edição bilíngue; tradução e notas de Ítalo Eugenio Mauro; prefácio de Carmelo Distante. – São Paulo: Editora 34, 2017 (4ª edição).

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