Opinião

Reformatio in pejus: sem a defesa pedir, pode o tribunal alterar a fundamentação?

Autores

  • Ava Garcia Catta Preta

    é advogada criminalista sócia do escritório De Macedo Buzzi e Souza Advogados Associados especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e membro da Comissão de Acompanhamento da Reforma Criminal da OAB-DF.

  • Vitória de Macedo Buzzi

    é advogada criminalista sócia do escritório De Macedo Buzzi e Souza Advogados Associados secretária-adjunta da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura no Ministério de Direitos Humanos mestranda em Direito na UnB e integrante da clínica de direitos humanos Cravinas — Prática em Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos.

19 de outubro de 2021, 10h16

A reformatio in pejus se configura quando, diante de recurso exclusivo da defesa no curso do processo penal, o julgamento acaba agravando a situação do acusado. Tal conduta é vedada pelo princípio do non reformatio in pejus, positivado na legislação infraconstitucional no artigo 617 do Código de Processo Penal.

Embora pareça que a aplicação de tal princípio seja pacífica nos tribunais brasileiros, há certa controvérsia quando o julgamento não altera o montante da pena, mas complementa ou conserta os fundamentos da decisão atacada. Nesses casos, estaria configurada reforma da decisão em prejuízo do réu?

Para exemplificar a situação, apresenta-se uma situação hipotética: em condenação de primeira instância, o réu foi dado como incurso nas penas do artigo 2º, caput, da Lei nº 12.850/13, por pertencer a uma organização criminosa. De maneira cumulada, o magistrado ou a magistrada aplicou a causa de aumento de aumento de pena prevista no artigo 1º, §4º, da Lei nº 9.613/98, qual seja, "a pena será aumentada de um a dois terços, se os crimes definidos nesta Lei forem cometidos de forma reiterada ou por intermédio de organização criminosa".

Diante do evidente bis in idem, imagine-se que a defesa interpõe recurso de apelação e o Ministério Público não se insurge contra a decisão. Quando do julgamento do recurso exclusivamente defensivo, a tese da ocorrência de bis in idem é devidamente acolhida, mas o tribunal, ao invés de proceder com a reforma da dosimetria e consequente diminuição da pena, decide por manter a causa de aumento de pena, agora sob nova fundamentação: no lugar de aumentar a pena por ter sido o crime cometido "por intermédio de organização criminosa", escolheu-se aumentar a pena por ter sido o crime cometido "de forma reiterada".

Em primeiro plano, observa-se que a habitualidade também constitui um dos elementos do tipo de pertencer à organização criminosa, de modo que a aplicação da causa de aumento de pena prevista no §4º do artigo 1º da Lei nº 9.613/98, cominada com a condenação pelo artigo 2º, caput, da Lei nº 12.850/13, mesmo diante da nova fundamentação, continuaria configurando bis in idem.

No entanto, no que interessa ao presente artigo, a pergunta que se faz é: tal julgamento afronta princípio do non reformatio in pejus?

O princípio do non reformatio in pejus determina estar "[…] vedada a reforma para pior, ou seja, diante de um recurso da defesa, não pode o tribunal piorar a situação jurídica do imputado. Portanto, diante de um exclusivo recurso da defesa, o tribunal pode dar provimento no todo ou em parte, ou manter intacta a decisão de primeiro grau. Em nenhuma hipótese pode piorar a situação do réu (exceto, é óbvio, se também houver recurso do acusador)".

A melhor doutrina sobre o tema entende que a interpretação acerca da reformatio in pejus deve abranger a vedação à piora tanto do ponto de vista quantitativo, quanto do ângulo qualitativo da situação do acusado.

Ou seja: no caso do exemplo hipotético, uma vez que o Tribunal de Justiça entendeu por dar provimento ao recurso defensivo acolhendo as fundamentações da defesa , está vedado o agravamento da situação do réu. Tal agravamento não se restringe tão somente à alteração da pena ou do regime de cumprimento impostos ao réu (aspectos quantitativos), mas também a toda a fundamentação da pena (aspecto qualitativo). Ao tribunal revisor é defeso trazer novos argumentos que acresçam ou supram a falta motivação da decisão anterior, sob pena de incorrer na reformatio in pejus.

Esse entendimento é corroborado por diversos julgados do Supremo Tribunal Federal, que, debruçando-se sobre situações semelhantes, reiteradas vezes decidiu que, em sede de recurso exclusivamente defensivo, não pode haver complementação de fundamentação em detrimento do recorrente, impetrante ou requerente de pleito liberatório.

Sobre o tema, em 2015, o Informativo nº 800 do STF tratou do julgamento do RHC nº 117.756, de relatoria do ministro Dias Toffoli. No caso analisado, o recorrente foi condenado à pena de cinco anos e dez meses de reclusão, em regime fechado, pela prática do tipo de tráfico de drogas. Em primeiro grau, o magistrado negou a aplicação da minorante do tráfico privilegiado, em razão da reincidência do acusado. Em sede de apelação, o Tribunal de Justiça deu parcial provimento ao recurso defensivo para redimensionar a pena a cinco anos de reclusão, afastando a reincidência, pois inexistente.

Contudo, apesar da diminuição da pena aplicada, também afastou a aplicação do tráfico privilegiado, mas com fundamentação diversa, por entender que a minorante não poderia incidir em razão da quantidade e do alto teor viciante da droga apreendida, e pelas circunstâncias que teriam permeado o flagrante. O recorrente argumentou ter havido inovação de fundamentação, que agregou motivos diversos daquelas invocados pelo magistrado de primeiro grau para vedar a aplicação da minorante, em recurso exclusivamente defensivo.

A 1ª Turma entendeu pela configuração, no caso, da reformatio in pejus, pois o Tribunal de Justiça, apesar de afastar a reincidência conforme a tese defensiva, "não deu efeito a isso, fazendo compensação com argumento próprio". A instância revisora negou a aplicação da minorante por fundamento diverso e não constante na sentença e, como consequência, a situação do recorrente foi agravada porque, apesar da pena ter sido diminuída, houve prejuízo decorrente da possibilidade de pena ainda menor.

O ministro Luiz Fux acertadamente entendeu que o tribunal revisor não poderia ter feito uma compensação com outro fundamento não trazido pela acusação. Segundo o magistrado, "a supressão de um direito em recurso exclusivo da defesa afronta, fora de dúvida, o princípio do ne reformatio in pejus, independentemente de resultar, ou não, acréscimo da pena".

Em igual sentido estão diversos outros julgados da Suprema Corte. Nos autos do HC nº 126.763, o ministro Gilmar Mendes manifestou-se que "a vedação da reformatio in pejus não se cinge, simplesmente, à quantidade final da pena", uma vez que a fixação da pena é "ato complexo […], não se trata de mero cálculo aritmético, mas sim de efetiva valoração da conduta levada a efeito pelo sentenciado".

No julgamento do HC 122.626, o voto do ministro Edson Fachin, consignou que "não se admite, com assento no Princípio Acusatório, que o vício de fundamentação seja suprido, de ofício, pelas instâncias superiores (…) tal proceder, por importar gravame à situação processual do paciente, revela-se incompatível com a razão de ser do habeas corpus, garantia constitucional dirigida à proteção do cidadão em face do arbítrio estatal. De tal forma, não é razoável que o Estado-Juiz fortaleça o poderio persecutório estatal por meio da utilização deturpada de garantia posta à disposição do indivíduo".

No mesmo julgamento, o ministro Dias Toffoli considerou ser "vedada, em habeas corpus, a utilização de fundamentos inovadores, para suprir vício de motivação das instâncias antecedentes, ou justificar a adoção do regime prisional mais gravoso, sob pena de reformatio in pejus".

No julgamento do HC 113.945, o ministro Teori Zavascki entendeu não caber "[…] às instâncias superiores, em sede de habeas corpus, adicionar novos fundamentos à decisão de primeiro grau, visando a suprir eventual vício de fundamentação".

Em autos diversos, o ministro Dias Toffoli decidiu não ser possível, "em sede de habeas corpus, agregar fundamentos inovadores para complementar deficiência de fundamentação na dosimetria da pena, sua legalidade deve ser aferida estritamente à luz da motivação empregada na sentença" (STF, RHC 123529).

Ou seja, há vasta jurisprudência da Corte Suprema que se inclina em direção da impossibilidade de complementação de fundamentação em sede de julgamento de recurso exclusivamente defensivo, pois estaria configurada a reformatio in pejus no aspecto qualitativo da situação jurídica do acusado.

Não importa se o recurso exclusivamente defensivo será apreciado por instância superior, pelo órgão colegiado ou até mesmo pelo mesmo juízo, quando o recurso é exclusivo da defesa, é vedada a complementação da fundamentação de modo a piorar a situação do acusado.

A importância da questão se dá, inclusive, em razão de existir efetivo prejuízo à defesa na situação narrada. No exemplo hipotético, se, após o julgamento da apelação exclusivamente defensiva, em que há alteração da fundamentação da aplicação da majorante de pena, a defesa opor embargos de declaração atacando a fundamentação inédita, o tribunal revisor poderá alegar que se trata de tese defensiva nova, não suscitada no recurso de apelação e sujeita, portanto, a preclusão, deixando a defesa de mãos atadas.

Dessa forma, tendo em vista as considerações doutrinárias e jurisprudenciais e, principalmente, o efetivo prejuízo à defesa de acusados em processos penais, a aplicação do princípio do non reformatio in pejus deve estender-se à proibição de alteração da fundamentação da pena, mesmo quando a nova argumentação trazida não aumente, efetivamente, a pena estabelecida.

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  • é advogada criminalista, sócia do escritório De Macedo Buzzi e Souza Advogados Associados, especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e membro da Comissão de Acompanhamento da Reforma Criminal da OAB-DF.

  • é advogada, secretária-adjunta da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB, membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura no Ministério de Direitos Humanos, mestranda em Direito na UnB e integrante da clínica de direitos humanos Cravinas —Prática em Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos.

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