Fruto envenenado

Após STJ declarar nulidade de provas, ação contra 14 acusados é trancada

Autores

19 de outubro de 2021, 18h45

Devido à impossibilidade de admissão de provas ilícitas para a apresentação da denúncia pelo órgão acusador, a 5ª Vara Criminal Federal de São Paulo determinou o trancamento das quatro ações penais abertas a partir da investigação da apelidada operação "porto seguro", que em novembro de 2012 mirou a venda de pareceres técnicos em órgãos federais em suposta prática de corrupção na aprovação de complexo portuário em Santos.

Reprodução
Nulidade da interceptação telefônica afetou todas as provas dela decorrentes
Reprodução 

Foram beneficiados pela decisão 14 acusados, incluindo o ex-senador Gilberto Miranda e a ex-chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo, Rosemary de Noronha.

Em 2012, o Ministério Público Federal em São Paulo denunciou 24 investigados na operação. A denúncia apontava a existência de um esquema criminoso que favorecia interesses de particulares perante o governo. Entre os crimes denunciados estão formação de quadrilha, corrupção ativa, corrupção passiva, tráfico de influência, falsidade ideológica e falsificação de documento particular.

Mas a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Habeas Corpus 120.939, considerou nula, por falta de fundamentação concreta, a decisão judicial que determinou a quebra dos sigilos telefônico, fiscal, bancário e telemático dos investigados. O STJ determinou que eventual ilicitude das provas derivadas da interceptação telefônica e de suas prorrogações deveria ser analisada pelo juiz do processo.

Nesse contexto, o juiz federal Rodrigo Boaventura Martins afirmou que a decisão anulada deferiu não apenas a interceptação telefônica, mas também acesso à mídia acautelada em juízo, interceptação telemática e quebra de sigilo bancário.

"Obviamente, portanto, que a nulidade atinge também a prova produzida por todas essas medidas, em razão da falta de fundamentação concreta para o seu deferimento", completou o magistrado.

Sem essas provas na acusação formal do Ministério Público Federal, considerando as declaradas ilícitas e aquelas derivadas, contaminadas em decorrência do vício original, o que restou pode ser comparável a um balão sem ar. Denúncia vazia, ação penal trancada, decidiu então o juiz federal.

"Em razão da imprecisão quanto à exposição dos fatos criminosos e respectivas circunstâncias baseadas em elementos de provas ilícitas, o que equivale à inépcia da denúncia, tornando nulo o seu recebimento, determino o trancamento da presente ação penal (abrangendo os autos desmembrados)", sentenciou.

Substituto da 5ª Vara Criminal Federal de São Paulo, Boaventura Martins prolatou a sua sentença na última segunda-feira (18/10). Em 72 laudas, o juiz justificou que o conteúdo de prova ilícita foi determinante para a formação da opinio delicti do MPF, não cabendo ao Poder
Judiciário, sob pena de violar o princípio acusatório, retificar o seu conteúdo.

Conforme o julgador, não trancar a ação nestas circunstâncias inviabilizaria o exercício da ampla defesa, devido a uma denúncia "incerta e instável", além de "restar infindável o exercício de estabilização da demanda, dada a cadeia probatória consolidada
e integrada", a partir de prova declarada ilícita pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Assim, para Martins, todas as provas derivadas da primeira decisão que autorizou a quebra dos sigilos telefônico são ilícitas por derivação, estando contaminadas pela ilicitude das provas originárias, por efeito de repercussão causal, sendo inadmissíveis, evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras.

No caso dos autos, ressaltou o juiz, não cabe o argumento de que as provas derivadas poderiam ser obtidas por uma fonte independente da primeira, tendo em vista que houve uma cadeia probatória sequencial em que cada relatório policial, bem como as manifestações ministeriais e decisões, sustentaram-se na reanálise do apurado nas primeiras diligências declaradas ilícitas.

Por fim, destacou que a opinião delitiva foi formada com base no resultado final do desenvolvimento dessa cadeia sequencial de investigação, ou seja, baseou-se em provas nulas.

"Note-se, que os elementos de prova produzidos anteriormente à decisão declarada nula pelo STJ, embora integrem a mesma contextura da denúncia, não foram suficientes à formação da opinião delitiva do MPF", concluiu o juiz.

Interceptações telefônicas
O advogado José Luiz Moreira Macedo defende um dos réus. Ele impetrou Habeas Corpus no Tribunal Regional Federal da 3ª Região alegando ausência de fundamentação concreta na decretação da interceptação telefônica e porque a "medida invasiva" durou mais de um ano, havendo excesso no número de prorrogações de prazo.

O TRF-3 negou o pedido de Macedo, justificando que a interceptação foi legal, porque teve fundamentação idônea. Em relação às prorrogações, alegou que elas foram necessárias devido à complexidade do caso, ao grande número de envolvidos e à imprescindibilidade da medida para elucidar os crimes.

Macedo impetrou novo HC, agora no STJ. Sob a relatoria do ministro
Nefi Cordeiro, da 6ª Turma, foi deferido o requerimento em março de 2020, "sem prejuízo do prosseguimento da ação penal com base em outras provas". A decisão abrangeu os corréus e, obviamente, as provas derivadas, conforme requereu o advogado.

A "teoria dos frutos da árvore envenenada" foi a base do pedido do advogado. Segundo o artigo 157 do Código de Processo Penal, "são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas
constitucionais ou legais. São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas".

Embargos de declaração
Apesar da decisão do STJ, o juízo da 5ª Vara Criminal Federal designou para os próximos dias 3 e 4 de novembro os interrogatórios dos réus. Macedo opôs embargos declaratórios sustentando que não se pode adiar a análise sobre eventual contaminação derivada das provas, sob pena de os interrogatórios serem também atingidos pela nulidade.

De acordo com Macedo, além de obscura, a decisão do juiz que designou os interrogatórios ainda seria omissa, por não determinar que sejam riscados da denúncia trechos de documentos nulos por derivação. Pelas mesmos razões, os advogados Fábio Tofic Simantob e Alberto Zacharias Toron também opuseram embargos.

Inicialmente, Boaventura Martins manifestou entendimento de que a análise de eventual contaminação de outras provas deveria ser "debatida em momento processual oportuno, na fase de alegações finais, o que será apreciado em sentença". Contudo, diante dos embargos declaratórios, o magistrado federal reviu o seu posicionamento.

"Verifico que realmente é imprescindível que tal análise seja feita previamente aos interrogatórios, pois há o risco de que eventuais questões formuladas em audiência possam tratar de outras provas possivelmente ilícitas", decidiu. O juiz também justificou a necessidade de "tornar certa a demanda" e viabilizar o exercício da ampla defesa.

Os embargos foram acolhidos e as provas ilícitas por derivação, excluídas, tornando inepta a denúncia e resultando no trancamento da ação. As interceptações declaradas nulas pelo STJ embasaram mandados de busca e apreensões, prisões cautelares, conduções coercitivas, quebras de sigilo e bloqueios de contas bancárias.

Ilha sob proteção
Em 14 de dezembro de 2012, o MPF denunciou 24 pessoas pelos delitos de associação criminosa, corrupção ativa e passiva, tráfico de influência, falsidade ideológica e falsificação de documento particular. O grupo foi acusado de integrar esquema de corrupção na aprovação de complexo portuário na Ilha dos Bagres.

Entre os réus, além de Rosemary Noronha e do ex-senador Gilberto Miranda Batista, estavam Paulo Rodrigues Vieira, na época diretor de Hidrologia da Agência Nacional das Águas (ANA) e o ex-advogado-geral-adjunto da União, José Weber Holanda.

Em contrapartida, ainda conforme o MPF, os beneficiados pagavam vultosas propinas aos réus. Os cabeças se valiam inclusive de tráfico de influência para nomear comparsas em cargos de diretoria em agências reguladoras. Tais indicações tinham por objetivo viabilizar interesses privados em detrimento do público.

No caso da Ilha dos Bagres, área de proteção permanente ao lado do Porto de Santos, a PF apurou a existência de corrupção na aprovação de projeto de complexo portuário de R$ 2 bilhões. O terminal ocuparia 1,2 milhão de metros quadrados, tamanho similar ao do Parque do
Ibirapuera, na capital paulista.

Clique aqui para ler a decisão
0002609-32.2011.4.03.6181

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!