Opinião

Plano de parto: diretriz de tratamento e violência obstétrica

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18 de outubro de 2021, 19h12

Muito embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomende, desde 1986, a utilização do chamado "plano de parto", este não é um documento amplamente conhecido pela sociedade, o que gera dúvidas sobre a sua validade ou a sobre necessidade de sua observância pela equipe de saúde que assiste a pessoa grávida [1].

O plano de parto é o documento elaborado por pessoa grávida indicando necessidades, preferências e vontades com relação aos procedimentos que serão realizados durante o parto e no pós-parto, normalmente apresentado quando da admissão em maternidade.

De acordo com a OMS, a elaboração do plano de parto é uma das práticas mais relevantes para melhorar o atendimento médico recebido pela pessoa parturiente e pela criança, devendo ser amplamente encorajada. No Brasil, o Portal de Boas Práticas em Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente [2] também recomenda a utilização do plano de parto, inclusive disponibilizando um modelo gratuito a ser preenchido [3], enquanto o Ministério da Saúde faz menção ao documento em suas Diretrizes Nacionais para o Parto [4].

No plano de parto, a pessoa parturiente indica a forma como gostaria de ser chamada; se pretende ser acompanhada ou não; quais métodos deseja utilizar para alívio da dor (naturais, farmacológicos ou anestesia); se concorda com rompimento não espontâneo da bolsa, com a raspagem de pelos pubianos, lavagem intestinal; se fez a opção por clampeamento tardio do cordão umbilical do bebê [5], administração de colírio no recém-nascido, amamentação, recebimento imediato do bebê, alojamento conjunto e banho tardio; indica as hipóteses com as quais não consente, tais como uso de manobra de Kristeller [6], episiotomia e "ponto do marido" [7]; bem como sinaliza outros desejos, como a intenção de ouvir música; fazer uso de banheira, chuveiro ou bola de pilates; de manter ou não o ar condicionado ligado; ou de se fazer registro audiovisual do nascimento.

Os exemplos acima revelam, portanto, que o plano de parto corresponde a uma manifestação de vontade para tratamento médico, contendo duas espécies de disposições: a) aquelas que versam sobre direitos da(o) paciente, isto é, específicas sobre seu tratamento médico e procedimentos aos quais manifesta consentimento; e b) aquelas que versam sobre suas preferências, ou seja, relativas a desejos acerca do ambiente em que o trabalho de parto e o parto ocorrerão.

Nesse sentido, parece-nos óbvio que não necessariamente as preferências da(o) paciente sobre o ambiente em que inserida(o) serão observadas, tendo em vista que dependem do contexto fático da unidade hospitalar em que ocorre o atendimento.

Já as disposições sobre o tratamento médico e os procedimentos a que será submetida(o) merecem análise mais aprofundada. Isso se deve ao fato de que tais diretrizes são expressão da autodeterminação da pessoa parturiente e, em especial, dos seus direitos da personalidade.

Dito de outro modo, o plano de parto é fruto da autonomia da(o) paciente, sua liberdade e dignidade (artigo 1º, III, da Constituição Federal), e, em especial, do direito ao próprio corpo, expresso nos artigos 13 a 15 do Código Civil.

Nesse ponto, apesar da má redação do artigo 15 (que menciona "risco de vida"), a doutrina é unânime no sentido de que o constrangimento de paciente a tratamento médico ou intervenção, ainda que sem risco, "afronta a autonomia do paciente, o direito de personalidade à autodeterminação, com reflexos na própria integridade física, pretender a submissão contra a sua vontade" [8].

Dessa forma, o plano de parto deve obrigatoriamente nortear as decisões da equipe médica que fará o atendimento, funcionando como diretriz antecipada de vontade, do mesmo modo que servem os "testamentos vitais" para os pacientes em situação de terminalidade da vida.

Isto é, muito embora o trabalho de parto e o parto não representem uma diminuição da capacidade civil da pessoa parturiente (como seria o caso do paciente terminal que opta pela elaboração do "testamento vital" [9]), o certo é que este não é o momento mais adequado para que a paciente seja confrontada com opções de tratamento, sendo interessante discutir ainda durante o pré-natal as várias possibilidades.

Assim, a semelhança dos documentos deve-se ao fato de que ambos refletem escolhas previamente definidas e que têm por objetivo pautar o atendimento de saúde em momentos nos quais o paciente pode não conseguir expressar a sua vontade.

Frise-se, algumas dessas escolhas, inclusive, são direitos expressamente reconhecidos em lei, como: a possibilidade de a pessoa parturiente contar com acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, seja no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) ou rede particular (Lei Federal nº 11.108/2005). Outras, como a indicação do nome que gostaria de ser chamado ou a recusa de episiotomia e "ponto do marido" são reflexos dos direitos da personalidade inerentes à pessoa humana (notadamente o direito ao nome e o direito à integridade física).

Nesses casos, a não observância das diretrizes incluídas no plano de parto representa o que se costumou chamar de violência obstétrica, ou seja, a "ação ou omissão direcionada à mulher durante o pré-natal, parto ou puerpério, que cause dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher, praticada sem o seu consentimento explícito, ou em desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental" [10].

Nessa toada, a não observância das disposições sobre tratamento médico inseridas no plano de parto constituem, ainda, violação ética, conforme o artigo 1º, Capítulo III, do Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.931/09) e interpretação análoga do artigo 2º, da Resolução CFM nº 1.995/2012.

A contrario sensu, temos que a equipe médica só está autorizada a dispensar o consentimento da pessoa (e ir de encontro ao disposto no plano de parto) nos casos em que comprovadamente exista risco à sua saúde, vida e integridade, com a devida anotação em prontuário acerca da intercorrência que motivou a referida decisão (conforme artigo 22, Capítulo IV, do Código de Ética Médica).

A prática de violência obstétrica, quando verificada, em especial nos casos em que a conduta médica expressamente ignorou o plano de parto (ou seja, agiu em flagrante violação à manifestação da vontade de paciente), é passível de reparação por danos morais e denúncia ao conselho de classe por infração ética. Destaque-se que não é caso de erro médico, mas, sim, de violação da vontade e direitos da(o) paciente anteriormente explanados.

Por fim, importa lembrar que o plano de parto não precisa ser registrado em cartório, haja vista o seu caráter não solene (artigo 107 do Código Civil). No entanto, essa conduta pode revesti-lo de maior força vinculativa, coibindo a sua desatenção por parte da equipe médica.

Por tudo quanto exposto, conclui-se que possibilitar o amplo acesso a modelos de planos de parto e à informação jurídica sobre o tema é meio para que se evitem violações de direitos. E, quando estas ocorrerem, a violência obstétrica seja reparada, pelas vias civil e disciplinar, perante os conselhos de classe.

 


[1] Alinhados com o entendimento de que a gravidez não é exclusiva de mulheres, ocorrendo também em pacientes homens transexuais, optou-se pela utilização da nomenclatura “pessoa grávida”.

[2] Conforme informação obtida na página institucional do referido portal, trata-se de “iniciativa do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e Adolescente Fernandes Figueira (IFF), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Ministério da Saúde (MS)”, tendo como objetivo “gerar e difundir conhecimento para a implantação de políticas e programas de saúde inerentes as suas atividades, baseados no cenário demográfico e epidemiológico e na melhor evidência científica disponível”. Cf. https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br. Acesso em 16.10.2021.

[3] Disponível em https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/biblioteca/meu-plano-de-parto/. Também a Defensoria Pública do Estado de São Paulo disponibiliza um modelo, elaborado em parceria com a Associação de Alunas/os e Egressas/os do Curso de Obstetrícia da Universidade de São Paulo, que pode ser encontrado em https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Repositorio/41/Documentos/Plano_Parto_A5.pdf. Acessos em 16.10.2021.

[5] O campleamento tardio do cordão umbilical, ou seja, após cessada a pulsação do cordão pela placenta, permite que um maior volume de sangue seja recebido pelo recém-nascido e está associado, portanto, a maiores níveis de ferro e prevenção de futuras anemias. A OMS recomenda a prática, cf. http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/148793/9789241508209_eng.pdf?sequence=1. Acesso em 16.10.2021.

[6] A manobra de Kristeller é uma técnica em que se realiza pressão sobre o útero da mulher com o objetivo de acelerar o trabalho de parto, reconhecida por causar dor na parturiente e sofrimento fetal no bebê. Apesar de ser contraindicada pela Organização Mundial de Saúde (cf. o guia “Intrapartum Care for a positive childbirth experience”, disponível em http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/260178/9789241550215-eng.pdf;jsessionid=87C07CB21724F8302FD724C64F4264CD?sequence=1. Acesso em 16.10.2021.), sabe-se que ainda é largamente utilizada.

[7] A episiotomia é um corte realizado no períneo, entre a vagina e o ânus, para supostamente ampliar o canal de parto. Não é incomum que, durante os pontos para se fechar esse corte, opte-se, sem qualquer informação à parturiente, por acrescentar também o “ponto do marido”, com o objetivo de diminuir a entrada da vagina e teoricamente aumentar a satisfação sexual do homem no futuro. A prática, além de misógina, pode acarretar dor e prejuízo à vida sexual da mulher. Ambas as práticas são contraindicadas pela OMS.

[8] Chinellato, Silmara. Código Civil interpretado: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo, 10ª ed., Barueri, SP: Manole, 2017, pp. 52-53.

[9] A expressão “testamento vital” é bastante criticada, uma vez que o testamento é o documento que reúne as disposições de uma pessoa para depois da sua morte. Por isso, a doutrina costuma chama-los de Diretrizes Antecipadas de Vontade (DAV), expressão com a qual também não concordamos, haja vista que o testamento vital é espécie do gênero DAV, assim como o plano de parto.

[10] Paes, Fabiana Dal'Mas Rocha. Violência obstétrica como violação aos direitos humanos das mulheres. In Pinto, Alessandra Caligiuri Calabresi (coord.). Direitos das Mulheres: igualdade, perspectivas e soluções, São Paulo: Almedina, 2020, pp. 159-171, p. 164.

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