Tribunal do Júri

Brady rule e a obrigatoriedade de compartilhamento de provas exculpatórias

Autores

  • Kauana Vieira da Rosa Kalache

    é advogada criminalista mestre em Direito Penal (L.LM) pela Universidade da Califórnia — Los Angeles (UCLA) mestre em Teoria e História da Jurisdição pelo Centro Universitário Internacional (Uninter) especialista em Criminologia e Políticas Criminais pelo ICPC e professora na Pontifícia Universidade Católica do Paraná e na Faculdade de Educação Superior do Paraná (Fesp).

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

16 de outubro de 2021, 8h00

O modelo de aplicação de regras processuais a um determinado sistema de Justiça pode contribuir para a identificação de práticas que mais (ou menos) o aproximem de um arquétipo acusatório. Nos Estados Unidos, por exemplo, os procedimentos e as garantias processuais penais fazem o país se situar mais próximo do sistema democrático.

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Em primeiro lugar, vigora o sistema adversarial por excelência, em que predomina a oralidade, procedimentos realizados de forma compacta e um juiz genuinamente imparcial — pelo menos de maneira formal, conforme estabelecido em lei. O magistrado é mero observador e garantidor da aplicação das regras do jogo, não possuindo qualquer atribuição capaz de o confundir com as partes no processo — não é possível, por exemplo, que o juiz requeira de ofício produção de provas, diferentemente do que ocorre na prática brasileira.

Observa-se verdadeiro embate entre acusação e defesa ao longo do processo criminal, buscando defender suas teses argumentativas através de metodologia dialética. Há inclusive, dentro dos procedimentos judiciais, etapa de "compartilhamento" de provas e informações referentes aos fatos discutidos, a qual denomina-se discovery, com o intuito de prevenir que qualquer das partes seja surpreendida com evidências durante o julgamento ("to prevent the parties from surprising each other with evidence at trial") [1].

Ressalta-se a previsão legal de pedido formal, motion to compel discovery (moção para forçar compartilhamento), enquanto requerimento para que a outra parte responda judicialmente — leia-se, coercitivamente, por intermédio de ordem judicial — ao pedido anteriormente feito pelo oponente e não atendido, quanto ao compartilhamento de informação (discovery request).

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Visando ao equilíbrio entre as partes e a paridade de armas, o sistema norte-americano prevê a obrigatoriedade de compartilhamento de toda e qualquer prova exculpatória — regra que tem mais impacto sobre a acusação para compartilhamento de provas que inocentem o réu. Trata-se da chamada Brady rule, originada pelo precedente criado no caso Brady v. Maryland (1963).

John Brady cometeu um crime de roubo, em participação com um sujeito chamado Boblit, evento que resultou na morte da vítima. Ambos os partícipes foram condenados pelo júri por homicídio em primeiro grau, ou seja, grosso modo, quando há intenção do resultado. Brady negou o cometimento do homicídio, restringindo sua participação ao roubo, porém, ambos os acusados foram condenados à pena de morte.

Após o julgamento pelo júri, revelou-se que Boblit — julgado em processo desmembrado — havia confessado o homicídio e a acusação não teria compartilhado tal informação (que, pelas circunstâncias, inocentaria Brady) com a defesa. Brady apenas veio a tomar conhecimento da confissão do corréu após ter sido condenado à pena capital e haver perdido a apelação manejada diante da Maryland Court of Apeeals. Porém, em sede de recurso perante a Suprema Corte, decidiu-se que a supressão da confissão de Boblit negou à Brady o direito à sua ampla defesa, violando o direito ao devido processo legal, previsto pela 14ª emenda constitucional norte-americana [2] [3].

Há determinados limites impostos legalmente quanto ao compartilhamento de provas na legislação processual, eis que, com a discovery, as partes não terão direito a acessar todas as provas na sua integralidade, pois a "recíproca troca de informações não pode ir além do que é 'indispensable to a fair contest'"[4]. Não obstante, as provas exculpatórias devem, obrigatoriamente, ser compartilhadas pela acusação! Todavia, há a exigência de que o acusado demonstre que a prova não compartilhada era material (material evidence) e favorável à sua causa, ou seja, conforme posteriormente delimitado em United States v. Bagley [473 US 667 (1985)] — aquela que, com razoável probabilidade, garante um desfecho diverso ao julgamento do caso [5].

Dessa forma, prova material é toda aquela que apresenta conexão lógica com os fatos que são consequência ou de importante relevância para determinar a ação ou as questões jurídicas discutidas. Trata-se aqui de situação envolvendo relevância da prova (Rule 401, Federal Rules of Evidence) [6]. Em oposição à prova material, por exemplo, podemos citar a prova circunstancial (circunstantial evidence), definida como sendo aquela baseada em inferências, em oposição ao conhecimento pessoal ou observação do fato — à exemplo de provas que não comportam testemunho pessoal (eye-witness testimony).

Em outras palavras, o ônus da prova (burden of proof) é do acusado em demonstrar que há uma probabilidade razoável de que o resultado do julgamento seria diferente se a prova tivesse sido divulgada pela promotoria.

Há quatro aspectos que precisam ser analisados sobre a "probabilidade razoável": a) caracteriza-se de uma questão sobre se a supressão da prova pela promotoria abalaria a confiança no resultado do julgamento — e não se o réu teria reais chances de receber um veredito diverso; b) não se trata de um teste de suficiência probatória, mas tão somente se a prova ocultada poderia jogar nova luz sobre o caso concreto, fragilizando a confiança no resultado do julgamento; c) não cabe revisão quando ao possível erro sem prejuízo ao réu (harmless error), pois tal alegação jamais pode ser levantada em casos de Brady violations; d) as provas ocultadas devem ser analisadas coletivamente, não item por item, observando-se o efeito cumulativo para determinar se é alcançada a necessária probabilidade razoável (Kyles, 514 U.S. at 433 (1955)).

Enfim, se restar comprovada uma Brady violation durante o curso do processo, o resultado poderá ser a declaração de mistrial, ou seja, a anulação dos procedimentos. Frisa-se que, caso se comprove a violação à regra de compartilhamento obrigatório de provas exculpatórias após um veredito de culpa (com a condenação do acusado), o resultado é a necessidade de realização de novo julgamento pelo júri.

Apesar de mais próximo ao sistema acusatório de fato, não é cabível supor que a existência de referida regra previna sua violação ou ainda impeça a ocorrência de erros judiciais no sistema norte-americano. Mesmo lá, onde a fase investigatória é reconhecidamente mais democrática do que a brasileira (bem como que os jurados devem basear suas decisões nos elementos produzidos em plenário), existem críticas acerca do acesso às provas por parte do acusado, o que se torna mais evidente no caso do negociante, ante a disseminada prática do plea bargaining [7].

A regra existente historicamente é violada, figurando a supressão de provas absolutórias como principal fator para erros judiciais e condenação de inocentes (posteriormente comprovados por teste de DNA pós-condenatório) [8].

As explicações para a ocorrência das violações por parte da acusação variam desde considerar que a prova não era relevante ao caso, chegando, inclusive, ao fato de a promotoria intencionalmente se negar a compartilhar a evidência existente com o intuito de garantir a condenação do acusado. Tal constatação leva a um problema ainda maior, considerando que a maioria das decisões sobre o compartilhamento de provas ocorre por parte da acusação, dentro dos escritórios da promotoria, nos casos envolvendo plea bargaining — ou seja, em mais de 95% dos casos criminais existentes.

Apesar dos problemas apontados, não podemos negar que a existência de uma regra para compartilhamento de provas exculpatórias é um grande passo na busca pela efetivação de um sistema democrático acusatório que visa minimizar a possibilidade de decisões injustas.


[1] GARNER, Bryan A. The Black’s Law Dictionary. Editora: Claitor's Pub Division; Edição: 5, 2011. p. 236.

[2]"No State shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property, without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws."

[3]"The Supreme Court held in Brady v. Maryland that ‘the suppression by the prosecution of evidence favorable to the accused upon request violates due process where the evidence is material either to guilt or punishment.’ A prosecutor’s failure to abide by her disclosure obligations under Brady is not subject to a good faith exception. Brady violations exist ‘irrespective of the good faith or bad faith of the prosecution’". (Medwed, 2010, pg. 1538).

[4] ALBERGARIA, Pedro Soares. Plea Bargaining. Aproximação à Justiça Negociada nos EUA. Coimbra: Almedina, 2007, p. 68. O autor entende ser tal prática incoerente num sistema adversarial, "visto como um jogo em que a astúcia, força e habilidade das partes dita a vitória processual".

[5] Veja ainda: Moore v. Illinois, 408 US 786 (1972)].

[6] "Rule 401. Test for Relevant Evidence. Evidence is relevant if:(a) it has any tendency to make a fact more or less probable than it would be without the evidence; and (b) the fact is of consequence in determining the action."

[7] A discovery, pontua Albergaria, desvela a desigualdade entre as partes. "Com efeito, enquanto o procurador tem, por detrás de si, ao serviço da investigação criminal, o apoio institucional do Estado, o arguido terá de investigar a expensas suas e o resultado dessa investigação dependerá, como é óbvio, da sua capacidade econômica e das possibilidades que tenha de pagar os serviços de um investigador privado. Sendo indigente e sendo-lhe nomeado um defensor oficioso privado, ou quando seja defendido por um defensor público, a contribuição financeira e os meios à disposição dele para investigação são, de ordinário, insuficientes. Num tal contexto de desigualdade, não tendo o arguido meios de ‘contar as espingardas’ da parte contrária, torna-se difícil a preparação de uma defesa adequada e, assim, é natural que ele se veja de certa forma induzido a procurar uma solução negociada, evitando as incertezas do julgamento". (ALBERGARIA, Pedro Soares. Plea Bargaining. Aproximação à Justiça Negociada nos EUA. Coimbra: Almedina, 2007, p. 69).

[8] MEDWED, Daniel S. Brady’s Bunch of Flaws. Washington and Lee University School of Law, 2010, disponível em http://law2.wlu.edu/deptimages/Law%20Review/67-4Medwed.pdfpg. 1540.

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    é advogada criminalista, mestre em Direito Penal (L.LM) pela Universidade da Califórnia — Los Angeles (UCLA), mestre em Teoria e História da Jurisdição pelo Centro Universitário Internacional (Uninter), especialista em Criminologia e Políticas Criminais pelo ICPC e professora na Pontifícia Universidade Católica do Paraná e na Faculdade de Educação Superior do Paraná (Fesp).

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    é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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    é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE, Curso CEI) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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