DIÁRIO DE CLASSE

Incondições do Direito e o risco de eterno retorno ao senso comum

Autor

  • Vinícius Quarelli

    é mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) pós-graduando em Teoria do Direito Dogmática Crítica e Hermenêutica pela ABDConst e membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos).

16 de outubro de 2021, 8h02

O que enfim cumpre deixar claro é que não refletir acerca das condições de possibilidade do conhecimento é uma verdadeira incondição epistemológica e uma sentença de eterno retorno ao senso comum

Vários são os temas da Filosofia e dentre eles destacam-se a moral, a ética e o conhecimento. Tendo este último como ponto de partida, o presente texto procura trabalhar qual é o lugar dessa discussão filosófica no Direito. Enquanto fio condutor, propõe-se refletir acerca das obviedades do óbvio e o senso comum teórico dos juristas. Afinal, a procura pelo conhecimento é uma questão que deve(ria) anteceder qualquer outra.

Diante do conhecimento e da verdade, existiriam três tipos de pessoas: (1) aquelas que procuraram e dizem ter achado; (2) aquelas que procuraram, não encontraram e julgam ser inapreensível; (3) aquelas que procuraram, não acharam e ainda assim continuam procurando. Sextus Empiricus assim descreve as posições filosóficas que poderiam ser adotadas diante da possibilidade do conhecimento em "Hipotiposes Pirrônicas" (I, 1-3). Criticando aquilo que é tecnicamente denominado de ceticismo acadêmico ou dogmatismo negativo (posturas filosóficas que negam a possibilidade do conhecimento), bem como o dogmatismo positivo (posturas que defendem algum absoluto), Empiricus ilustra uma discussão que permeia toda a história de filosofia: a epistemologia e o estudo das condições de possibilidade para se dizer algo sobre algo.

Séculos antes, Platão foi outro filósofo que retratou essa discussão em seus escritos. De forma até mais fundacional, pontuou que a procura do conhecimento e a causa de uma indagação provém da compreensão do não conhecimento daquela questão. “Ninguém pode indagar o que sabe nem o que não sabe, porque não pesquisaria o que não sabe, pois já o sabe, nem investigaria o que não sabe, porque não saberia sequer o que deve ser investigado” (Menón, XV, 81-82). Especificamente sobre o tema, Lenio Streck trabalha essa passagem demonstrando o “não saber que não sabe” se posta como impossibilidade do próprio questionamento[1].

Examinando o contexto jurídico a partir da compreensão de que ele também pode ser vítima desse desconhecimento, o jurista Luis Alberto Warat delineou o conceito “senso comum teórico dos jurístas”. Para o argentino, “uma significação extra-conceitual no interior de um sistema de conceitos, uma ideologia no interior da ciência, uma doxa no interior da episteme”[2] que por sua vez se traduz em uma cultura jurídica que reproduz conceitos de forma acrítica e que se torna cada vez mais habituada ao esvaziamento dos sentidos. Cumprindo suas funções inerentes, esse “senso comum teórico” é o fomentador de vários mitos como "princípios são valores”, “o positivismo legitimou o nazismo”, “Kelsen era um exegético” etc.

Até aqui, nada de novo no horizonte. Ler e estudar Kelsen é compreender o equívoco dessa narrativa que persiste no imaginário jurídico, por exemplo. O problema maior é que esse mito se retroalimenta e sequer se deixa perceber em sua totalidade. Nesse contexto, o senso comum teórico dos juristas se impõe como uma capa de sentido de si mesma. Ele esconde tanto a sua existência, quanto a sua deferência ao mito dado.  Indo além, Warat ainda destaca que esse fenômeno se instaura como a conversão de uma epistemologia em uma doxa, isto é, uma crença comum. Revisando a classificação de Empiricus, conviria incluir um quarto tipo de pessoa: (4) aquela que sequer procurou o conhecimento.

Da exposição dessa conjuntura, aponta-se para um antídoto: a filosofia. Em "Exercício de Fenomenologia: limites de um paradigma”, o filósofo Ernildo Stein é claro ao sustentar que toda boa filosofia é, antes de tudo, uma tentativa de responder ao problema do conhecimento e que paradigmas filosóficos se postam como standards de racionalidade que pretendem enfrentar toda essa problemática[3].

Para além do argumento de que a discussão importa ao Direito pelo fato do seu não entendimento acarretar em senso comum, vale advertir que o (re)exame dos paradigmas filosóficos também importa pois eles necessariamente conformam o nosso modo de compreender o mundo[4]. Concretamente debatendo essa questão, Ronald Dworkin e Richard Posner trocaram palavras em seus escritos sobre a impossibilidade de não se adotar uma postura teórica em sentido filosófico. No sentido da necessariedade das posturas teórico-filosóficas, tem-se Dworkin  “A Justiça de Toga” (sobretudo no capítulo intitulado “O Elogio da Teoria”) e argumentando pela desnecessariedade, tem-se Posner em “A problemática da teoria moral e jurídica”.

Rafael Tomaz de Oliveira já explicitou alguns dos pontos mais importantes da discussão entre Richard Posner e Ronald Dworkin[5], mas vale frisar aquilo que se relaciona ao tema aqui proposto. Do estudo do debate entre os autores em questão, pode-se extrair que toda teoria jurídica que pretende postular ou refutar algo utiliza-se de algum fundamento em sentido filosófico. Como não há um grau zero de sentido, toda alegação necessariamente se justifica em um paradigma que confere as condições de possibilidade para se dizer o que se está dizendo.

Em matéria de categorização, a Metafísica Clássica, Metafísica Moderna e Filosofia Hermenêutica são os paradigmas filosóficos mais proeminentes nesse contexto. Sendo Aristóteles, Descartes e Martin Heidegger pensadores que ilustram cada posicionamento, respectivamente. Muito mais do que (pretensamente) tentar conceituar todos esses paradigmas em um espaço tão autocontido como este, interessa assinalar que cada um possui especificidades que vão condicionar uma resposta (jurídica). Se resta dúvida quanto à importância dos paradigmas para Direito, vale meditar: a consciência do bom juiz deve ser o critério do Direito ? Se é que não pode ser, por que não pode ser ?

O que enfim cumpre deixar claro é que não refletir acerca das condições de possibilidade do conhecimento é uma verdadeira incondição epistemológica e uma sentença de eterno retorno ao senso comum — uma questão prejudicial de mérito em termos processuais. Se é verdade que não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa e que o Direito não pode(ria) ser qualquer coisa, aquilo que importa é compreender quais são as condições para não confundir opinião, especulação e compreensão. Enquanto “prudência epistémica", convém ter em mente a reflexão de Albert Camus de que o “homem é sempre vítima de suas verdades”[6].


[1] https://www.conjur.com.br/2013-nov-28/senso-incomum-verdade-mentiras-mentiras-verdade-real

[2] WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Revista Sequência, Santa Catarina, v. 3, n. 5, 1982.

[3] STEIN, Ernildo. Exercícios de Fenomenologia: limites de um paradigma. Ijuí: Editora Unijuí, 2004, p. 126 e segs.

[4] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2014. p. 257.

[5] https://www.conjur.com.br/2013-jan-12/diario-classe-debate-lugar-teoria-direito

[6] CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. 16. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2019. p.46.

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    é mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), pós-graduando em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela ABDConst e membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos).

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