Mulher trans, Alana, 30, foi enterrada no último dia 11, em Aracaju (SE), como um homem cisgênero — de barba, bigode e terno. A imagem surpreendeu amigos e revoltou a comunidade LGBTQIA+, já que a caracterização destoava completamente de seu gênero assumido durante a vida.
Internada por um longo período no hospital, lutando pela vida em virtude de uma doença, Alana acabou adquirindo a barba. Familiares que não aceitavam sua orientação sexual preferiram então manter essa imagem no velório.
Se ficar comprovado o preconceito e a clara violação de direitos, advogadas apontam uma série de possíveis crimes cometidos no caso.
Cecilia Mello, criminalista e desembargadora federal no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) por 14 anos, lembra que a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e o Mandado de Injunção (MI) 4.733, julgados pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em junho de 2019 (embargos de declaração pendentes de julgamento), tratam da exposição e sujeição dos integrantes da comunidade LGBTQIA+ a graves ofensas aos seus direitos em razão da ausência — por absurdo lapso temporal — de mandamentos de criminalização de atos de discriminação praticados em razão da orientação sexual ou da identidade de gênero da vítima — em outros termos, a propagada ideologia de gênero.
"Restou decidido que, até que sobrevenha lei específica, 'as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social', ajustam-se aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716/1989, constituindo, também, motivo torpe na hipótese de homicídio doloso (CP artigo 121, § 2º, I)", explica Cecilia.
Ainda de acordo com Cecilia, a decisão se destinou a garantir aos integrantes do grupo LGBTI+ "a posse da cidadania plena e o integral respeito tanto à sua condição quanto às suas escolhas pessoais". "Isso pode significar, nestes tempos em que as liberdades fundamentais das pessoas sofrem ataques por parte de mentes sombrias e retrógradas, a diferença essencial entre civilização e barbárie", comenta.
Reparação civil
A advogada também vê espaço para um pedido de reparação civil. "O crime de racismo está previsto na Lei 7.716/1989 e implica conduta discriminatória dirigida a determinado grupo ou coletividade e, geralmente, refere-se a crimes mais amplos. Entretanto, no rol das práticas que podem constituir crime de racismo, e que por extensão poderia ser aplicado, não há qualquer previsão sobre o desrespeito ao gênero, ao genuíno reconhecimento de si, por ocasião da morte. Sob outra vertente, embora não haja hipótese de equiparação criminal, soa muito evidente que a comunidade LGBTQIA+ foi atingida em sua coletividade, de maneira a justificar a reparação civil", avalia.
Sofia Coelho Araújo, advogada criminalista, especialista em Direito Público, responsável pelo Núcleo de Violência de Gênero do escritório Daniel Gerber Advogados, entende que a questão que deve ser levada em conta é se Alana fez pedido expresso aos seus familiares de ser enterrada como mulher.
"Se os responsáveis pelo trâmite do enterro atuaram com claro e indiscutível preconceito e com atitude discriminatória em relação à orientação sexual do ente falecido, assim como tinham conhecimento de que Alana teria solicitado expressamente a vontade de ser enterrada como mulher antes de sua morte, aí sim seria possível uma eventual ação alegando ofensa a diretos difusos, coletivos ou até mesmo o direito individual homogêneo, sendo esses os pré-requisitos para ingresso de uma ação coletiva", opina.