Improbidade em Debate

In dubio pro societate não cumpre automaticamente dever de fundamentação

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15 de outubro de 2021, 8h00

Em texto da semana passada, exaltamos decisão lavrada pelo ministro Gilmar Mendes que dialogou de modo bastante saudável com o espírito da reforma da Lei de Improbidade Administrativa. Nesta semana, felizmente, tomamos a liberdade de invocar na mesma linha um outro julgado, desta feita do Superior Tribunal de Justiça, que igualmente bebeu na fonte da mudança de paradigmas por que passa o tema da improbidade.

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Trata-se do aresto (ainda pendente de publicação) proferido pela 1ª Turma nos agravos internos no Recurso Especial n° 1.570.000, relator para o acórdão o ministro Gurgel de Faria, no qual se examinou apelo tirado contra decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

A questão de fundo, a propósito, cuidou de suposta fraude em procedimento de inexigibilidade de licitação para contratação de serviços advocatícios, tendo a corte regional chancelado a rejeição liminar da ação de improbidade pelo primeiro grau à falta de indícios mínimos. Do indigitado julgado, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte tiraria especial, aduzindo, entre outras alegações, violação ao artigo 17, §§6º e 8º, da LIA, eis que, em seu sentir, não seria possível, "em juízo de delibação, avançar-se no elemento subjetivo para rejeitar, liminarmente, a petição inicial. Realmente, não se pode confundir juízo de verossimilhança com juízo de certeza, que somente pode ser obtido ao final da regular instrução probatória".

Inicialmente distribuído à relatoria do ministro Sérgio Kukina, o apelo foi provido monocraticamente, desafiando agravo interno pelos requeridos. Levado o feito ao colegiado, o ministro relator reafirmou sua decisão singular, pedindo vista em seguida, antecipadamente o ministro Gurgel.

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Como dito, inobstante o acórdão ainda não haja sido publicado, é possível colher do vídeo da sessão de julgamento os principais argumentos tecidos quando da inauguração da divergência [1], também disponíveis, resumidamente, no Informativo de Jurisprudência nº 711, em que o julgado mereceu destaque. Nessa toada, conquanto a conclusão do voto divergente pugnasse pela incidência do Enunciado nº 7 da súmula do Superior Tribunal de Justiça, negando conhecimento ao especial da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o ministro Gurgel, na construção de seu raciocínio, fez considerações bastante relevantes no sentido de rememorar que o escopo da Lei de Improbidade jamais foi o de patrocinar ações temerárias ou o de punir "agentes públicos inexperientes, inábeis ou que fizeram uma má opção política na gerência da coisa pública ou na prática de atos administrativos, sem má-fé ou intenção de lesar o erário ou de enriquecimento".

Indo além, pontuou o ministro que filtro relevante a viabilizar um crivo a separar ações descabidas e cabíveis residiu no juízo de admissibilidade, a ser precedido de defesa preliminar. Esse exame prévio, é verdade, veicularia cognição sumária, sem aprofundamento meritório, sendo suficiente para que fosse ele positivo a mera instauração de dúvida quanto à existência da prática de ato ímprobo, à luz do princípio in dubio pro societate.

Cabe aqui uma brevíssima digressão. Já denunciamos, no passado [2], que a defesa preliminar e o juízo de admissibilidade da ação de improbidade tiveram como origem uma preocupação em se bloquear investidas sem base sólida. Ocorre que, com o passar do tempo [3], a despeito da ausência de sua previsão legal, instituiu-se no in dubio pro societate um álibi retórico a banalizar a admissibilidade das ações civis públicas e a esvaziar de importância a defesa preliminar. Sob o signo do brocardo, rigorosamente, subverteu-se a ideia de que a inicial, notadamente mercê da possibilidade de procedimentos inquisitivos prévios, devesse vencer ônus argumentativo mínimo na demonstração da autoria e da materialidade, findando-se por colocar réu em franca desvantagem.

Encerrada nossa digressão, o voto exarado pelo ministro Gurgel, bem em linha com nosso entendimento, assentou, então, que, em resguardo à ideia de admissibilidade como um filtro real, a "decisão de recebimento da petição inicial, incluída a hipótese de rejeição, deve ser adequada e especificamente motivada pelo magistrado, com base na análise dos elementos indiciários apresentados, em cotejo com a causa de pedir delineada pelo Ministério Público. Essa postura é inclusive reforçada, atualmente, pelos artigos 489, §3º, e 927 do CPC/2015".

É dizer, segundo se extrai do excerto acima, que não atenderia adequadamente ao requisito constitucional da fundamentação a decisão que, para o fim de receber a inicial de improbidade, se restringe a invocar o princípio in dubio pro societate, não desvelando os fundamentos em que se arrimou para extrair, ao menos, dúvida.

O racional é simples: se uma decisão que rejeitasse o recebimento da ação de improbidade haveria de se esmerar ao fundamentar a inexistência de indícios mínimos de autoria e/ou materialidade, a decisão de recebimento observaria a mesma condição, não sendo suficiente a tanto o recurso a princípios que tais.

A preocupação que norteou o aludido voto tanto é pertinente que igualmente influenciou a reforma da Lei de Improbidade. Se inicialmente suprimia a defesa preliminar, a proposição legislativa, ao longo de sua tramitação, não somente restaurou a fase, como recrudesceu os requisitos exigidos da petição inicial e ampliou as hipóteses de sua rejeição liminar (artigo 17, §§6º e 6º-B), renegando o prosseguimento do feito sempre que ausentes: 1) a individualização da conduta do réu; 2) o apontamento dos elementos probatórios mínimos a demonstrar a materialidade de um dos tipos ímprobos; e 3) a instrução com documentos capazes de corroborar os fatos e a presença de dolo.

Retomando o julgamento, o ministro Gurgel acabou conduzindo a formação da maioria, vencidos o relator original e a ministra Regina Helena. À guisa de fecho, interessante notar que, durante os debates, a ministra Regina Helena fez menção à jurisprudência da Corte no sentido de se rechaçar a incidência da Súmula nº 7 no exame sobre a pertinência da (in)admissibilidade da ação de improbidade (a ministra advogava, a exemplo do relator, o provimento do especial da UFRN), tendo o ministro Gurgel, em resposta, feito alusão a acórdão unânime, de março deste ano, relatado pela mesma ministra Regina Helena, em que se fez incidir o verbete para se manter o recebimento de ação em situação muito semelhante. Essa observação, feita de passagem, apenas ilustra, como também já dissemos no passado, alguma sorte de discricionariedade no trato com o óbice sumular em matéria de improbidade [4].

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