Senso incomum

O alcance hermenêutico da ação penal subsidiária da pública na CF

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14 de outubro de 2021, 8h00

Spacca
Como uma espécie de retranca democrática, a Constituição estabeleceu, no artigo 5º, inciso LIX, como garantia fundamental da cidadania que

"Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal."

Muito bem. O que isto quer dizer? Primeiro, temos de ter claro que o titular da ação penal é o Ministério Público. Ele detém parcela da soberania estatal, como se pode ver no poder que possuem os Procuradores-Gerais de Justiça e o PGR. Não se pode obrigá-los a denunciar alguém.

Todavia, aqui é que começa a discussão. O dispositivo que dá direito à vítima intentar queixa subsidiária é exatamente a inércia do órgão acusador. Essa inércia pode ser temporal (formal) — à luz dos prazos constantes do art. 10 do CPP — ou material. Não se trata de mera questão formal-procedimental.

Explico. Regra geral, havendo uma adequada fundamentação jurídico-constitucional, o MP tem de ter seu poder de arquivamento respeitado. Grosso modo, fundamentação equivocada por si só não quer dizer inércia a ponto de legitimar a queixa subsidiária. Fosse simples assim, a cada arquivamento a vítima quereria se substituir ao órgão estatal. Isso só funciona em abstrato. E olhe lá.

Porém, não é disso que se trata aqui. A questão fulcral reside no papel institucional e no dever de o Ministério Público, como fiscal da lei e titular da ação penal, não frustrar nem a sociedade e nem a vítima. Por isso o MP é tão importante. Deve(ria) agir como um magistrado; afinal, possui as mesmas garantias da magistratura. É instituição. Fiscal da lei. É o titular da ação penal. Mas não é o seu proprietário absoluto. Na República, nada é absoluto.

Ocorre que, de seca à meca, para o bem e para o mal, tanto pode ocorrer que o órgão do MP se exceda na apreciação e denuncie indevidamente — e nesse caso caberá recurso ao judiciário — como pode, ao reverso, haver um agir omisso na apreciação de graves fatos criminosos, consubstanciado na existência de pressupostos formais e materiais aptos ao oferecimento da denúncia sem, contudo, existir “interesse” do membro ministerial em levar a cabo a persecução criminal.

Por exemplo, na existência manifesta de crime – com autoria e materialidade assentada – não pode, o Ministério Público, requerer dilação de prazo e devolver os autos à Autoridade Policial sem justificativa adequada (art. 16, CPP). Inclusive, o princípio da razoável duração do processo é concebido como uma garantia constitucional e deve ser lido em favor da vítima e do próprio investigado

O que isso quer dizer é que, nesses casos, pode ocorrer a aplicação da garantia constitucional da queixa subsidiária. Uma promoção de arquivamento não deve ser apenas um ato formal, isto é, não basta que o MP se manifeste e, com isso, estará sanada qualquer omissão.

Sendo mais claro ainda: não basta o MP cumprir o prazo (a CF fala em ação penal; portanto, não é uma mera formalidade — ação quer dizer "denúncia válida"). Deverá a manifestação ser um ato material. E se ficar demonstrado que essa manifestação é manifestamente ilegal (ou seja, não vê crime onde há claramente há), então se abre espaço para a retranca constitucional: a queixa subsidiária. Uma observação: manifestamente, aqui, tem o sentido daquilo que o legislador lançou mão na Lei do Abuso. Explicarei a seguir esse sentido.

Na síntese: a queixa subsidiária passa a ter lugar quando o "não agir" do MP passa a ser um agir arbitrário, a ponto de ignorar os seus limites jurídicos. Daí por que não caímos na abstração de qualquer vítima irresignada querendo substituir o órgão republicano: porque estamos falando de limites que são jurídicos. Limites que é a própria lei que impõe a seu fiscal (e esse é o mais belo paradoxo-que-não-é-paradoxo do direto). Por qual razão alguém agiria manifestamente contrário à lei? Denunciar alguém e não denunciar são atos equivalentes hermeneuticamente: ambos devem se pautar na lei. Esse é o grande cerne das discussões institucionais: os atos públicos na democracia devem ser na lei, na forma da lei, pela lei e sob a lei — corretamente compreendida e interpretada à luz de seus princípios.

Denunciar ou não denunciar, portanto, não é um ato de escolha. Não cabe arbitrariedade. É um ato de decisão, como demonstro no meu Dicionário de Hermenêutica. Mesmo que analisemos a questão da "discricionariedade" à luz de um autor como Herbert Hart, um positivista soft que aposta no poder discricionário dos juízes (não sei o que ele diria dos membros do MP), esse poder possui limitações. Jurídicas.

É neste ponto que ele pode iluminar a problemática aqui posta. O professor inglês traz o exemplo do jogo de críquete para apresentar a sua tese, que desde os anos 80 vem sendo adaptada para o futebol. Desse modo, o árbitro do jogo pode marcar uma penalidade centímetros para fora da linha da grande área, que será considerado dentro da "zona da penumbra" ou "zona da franja" (desconsideremos a existência do VAR, invenção recente).

Porém, o árbitro não pode marcar uma penalidade máxima a um ou dois metros fora da grande área ou no meio do campo. Na verdade, ele até pode fazer isso, porque tem poder para tal. O problema é que, no lance seguinte, outro jogador cairá em locais semelhantes e reivindicará, a partir do precedente, a marcação igual.  Surgem dois problemas: se o árbitro assim fizer, ele não somente cometeu um erro capital como foi coerente no erro na sequência. A marcação do árbitro valerá, porque se torna norma. Mas isso tem consequências, porque já não será um jogo de futebol, mas, sim, um jogo jogado sob as regras discricionárias do árbitro. O juiz aplica as regras, é o responsável pela aplicação das regras. Mas as regras não são suas. São as regras do futebol.

Com isso, já não há(verá) jogo de futebol. Haverá apenas um simulacro discricionário. Nesse sentido, a marcação do pênalti fora dessa zona da penumbra será considerada "manifestamente" fora das regras.

Portanto, decisões judiciais ou "escolhas" por denunciar ou por não denunciar, mesmo levando em conta esse grau de "discricionariedade", não pode ser um pênalti marcado no meio de campo. E nem validar um gol feito como se o jogo de futebol fosse de basquete. Há limites.

É nesse contexto que devemos interpretar a queixa subsidiária. O MP é o titular da ação penal, desde que, para um lado ou para o outro, não marque o pênalti distante dois metros da área ou até mesmo no meio do campo.

Há limites. E se fiz um "abstract" no início da coluna, para bons entendedores, deixo aqui um "abstract" do Estado Democrático de Direito numa república constitucional: não se marca um pênalti no meio de campo.

O árbitro pode marcar esse "pênalti"? Na prática, pode. É só apitar. Só que não é pênalti. E não será mais um jogo de futebol.

O fiscal da lei é fiscal da lei. Obviedades do óbvio. E se lembrei Herbert Hart, recorro aqui à boa síntese de outro positivista, Shapiro, sobre a teoria do professor inglês: se antes, com Hobbes, o soberano fazia as regras, a partir de Hart, as regras fazem o soberano. Esse é o busílis. Para bom entendedor…

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