Opinião

Passaporte de vacinação: o poder-dever dos prefeitos

Autor

  • Lucas Ribeiro

    é advogado especialista em Direito Publico e Municipal pela Universidade Católica do Salvador e Direito Eleitoral pela PUC/MG presta assessoria jurídica a prefeituras Câmara de Vereadores e perante os Tribunais de Contas da União Estado e municípios.

14 de outubro de 2021, 21h17

Discussão atualíssima em que se coloca em xeque a supremacia do interesse público em face do particular, a ponderação de princípios constitucionais e a capacidade (ou não) do Estado intervir em situações extremas: esse é o cenário que reside o tão falado "passaporte de vacinação".

Não discutiremos neste expediente, por óbvio, o citado passaporte pela ótica político-ideológico, mas tão somente a possibilidade de os(as) prefeitos(as) exigirem-no quando e se assim entenderem. Passemos à análise de alguns fatos anteriores ao cerne da questão.

Logo no início da pandemia, em abril do ano passado, o Supremo, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.341, referendou a competência de estados e municípios de tomar medidas com o objetivo de conter a pandemia do coronavírus, o que, ao nosso sentir, apenas ratifica o que já há muito é sabido a respeito da competência comum dos entes federativos em promover o direito à saúde e a vida [1], norma essa de eficácia plena e aplicabilidade imediata, conforme o disposto no artigo 5º, §1º, da Constituição, não dependendo de qualquer ato legislativo para que seja efetivada pela Administração Pública [2].

O direito à saúde é, portanto, um direito fundamental [3], de cunho social, exigível perante o poder público, a merecer efetividade do Poder Judiciário, eis que malferido pelo Poder Executivo.

Nessa linha, diversos municípios publicaram leis e/ou decretos que condiciona, como "medida de interesse sanitário de caráter excepcional", a comprovação de vacinação contra a Covid-19 para frequentar determinados locais públicos, tal como o Decreto 49.335/2021 do município do Rio de Janeiro, publicado em 27 de agosto deste ano:

"Artigo 1º — Ficam condicionados, a partir de 1º de setembro de 2021, à prévia comprovação de vacinação contra a Covid-19, como medida de interesse sanitário de caráter excepcional, o acesso e a permanência no interior de estabelecimentos e locais de uso coletivo.
§1º A vacinação a ser comprovada corresponderá a 1ª dose, a 2ª dose ou a dose única, em razão do cronograma instituído pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS), em relação à idade da pessoa.
§2º As condições previstas no caput se aplicam aos seguintes estabelecimentos e locais de uso coletivo:
I
 academias de ginástica, piscinas, centros de treinamento e de condicionamento físico e clubes sociais;
II  vilas olímpicas, estádios e ginásios esportivos;
III
 cinemas, teatros, salas de concerto, salões de jogos, circos, recreação infantil e pistas de patinação;
IV  atividades de entretenimento, exceto quando expressamente vedadas;
V
 locais de visitação turísticas, museus, galerias e exposições de arte, aquário, parques de diversões, parques temáticos, parques aquáticos, apresentações e drive-in;
VI
 conferências, convenções e feiras comerciais".

No último dia 29, o desembargador Paulo Rangel do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu monocraticamente nos autos do HC Nº 0070957-89.2021.8.19.0000 pelo deferimento da liminar, em caráter coletivo, a cassação do decreto fluminense, na parte referente "à proibição de circulação de pessoas pelos locais em que cita sem a carteira de vacinação", trazendo, entre outras razões de decidir, que a liberdade de locomoção está sendo cerceada, que "a carteira de vacinação é um ato que estigmatiza as pessoas criando uma
marca depreciativa e impedindo-as de circularem pelas ruas livremente, com nítido objetivo de controle social"
e, por fim, que como não há as hipóteses previstas no artigo 5º, XV, não haveria como o decreto impedir as pessoas de circularem livremente, denominando o passaporte como "ditadura sanitária".

Provocado pela Procuradoria Municipal do Rio de Janeiro, no dia 1º deste mês, o Supremo, na pessoa do ministro Luiz Fux, decidiu por suspender os efeitos de tal decisão, tornando novamente válido o Decreto 49.335/2021 do município do Rio de Janeiro, com considerações no sentido de que há de ser observada a "predominância de interesses" uma vez que "a leitura do ato normativo municipal impugnado na origem revela fundamentação relacionada à necessidade de contenção da disseminação da Covid-19 e à garantia do adequado funcionamento dos serviços de saúde, além de embasamento técnico constante da Resolução Conjunta SES/SMS nº 871, de 12 de janeiro de 2021 (preâmbulo do Decreto nº 49.335)".

Em outras palavras, prestigiou, entre os interesses em conflito, o direito à saúde e à vida, a predominância do interesse público em detrimento do particular e a autonomia municipal entre a liberdade de locomoção e é justamente aqui que reside o ponto nevrálgico deste breve expediente, sobretudo porque os gestores municipais, em inglória e talvez inédita posição desde a CF 1988, podem-e-devem editar normas que venham resguardar, proteger, monitorar e conter o avanço da pandemia que atualmente já ceifou mais de 600 mil vidas.

O poder-dever outorgados ao administrador público não é uma faculdade, ao revés, é uma obrigatoriedade irrenunciável outorgada aos mesmos, e, nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho [4], "as prerrogativas públicas, ao mesmo tempo em que constituem poderes para o administrador público, impõem-lhe o seu exercício e lhe vedam a inércia, porque o reflexo desta atinge, em última instância, a coletividade, esta a real destinatária de tais poderes".

Diante desse cenário, será o(a) gestor(a), a partir da análise dos dados da sua secretaria municipal, da sua capacidade de contenção do avanço da Covid-19, da sua autonomia administrativa, política e organizacional que decidirá a medida aplicável a sua realidade e não outro poder, sob pena de ingerência indevida nos atos do Poder Executivo.

Ponderar os interesses e equilibrar as ações municipais nunca foi tão difícil como durante a pandemia, mas, o que não há dúvida, ao nosso sentir, que prestigiar a saúde coletiva não é — nem de longe — ato desproporcional ou desarrazoado, como, aliás, já se é largamente feito em diversos países do mundo quando se requer, como requisito inegociável de entrada naquele território, a comprovação de vacinação por febre amarela, por exemplo.

Lênio Strek [5], acertadamente sobre o tema, disse que "a liberdade das pessoas tem limites. Você não está proibido de ir a qualquer lugar, segundo a prefeitura do Rio. Basta que você se vacine. Mas se você não quiser se vacinar, você tem ônus decorrentes da convivência social. Direito à saúde. Eis a questão", e é a corrente a que nos filiamos.

Veja que a discussão da "liberdade de locomoção" se torna absolutamente pequena em detrimento da comprovada diminuição do número de mortes e casos graves da Covid-19 a partir da vacinação, e, por essa razão, a pauta não é (ou não deveria ser) a impossibilidade do poder-dever do(a) prefeito(a) em condicionar a entrada a espaços públicos de comprovação da vacinação, como realizado no município do Rio de Janeiro, em caráter excepcional e provisório, já que a este último foi conferida a decisão de como agir, e não, repita-se, a outro poder.


[1] "Em relação à saúde e assistência pública, a Constituição Federal consagra a existência de competência administrativa comum entre União, Estados, Distrito Federal e municípios (artigo 23, II e IX, da CF), bem como prevê competência concorrente entre União e Estados/Distrito Federal para legislar sobre proteção e defesa da saúde (artigo 24, XII, da CF), permitindo aos municípios suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, desde que haja interesse local (artigo 30, II, da CF); e prescrevendo ainda a descentralização político-administrativa do Sistema de Saúde (artigo 198, CF, e artigo 7º da Lei 8.080/1990), com a consequente descentralização da execução de serviços, inclusive no que diz respeito às atividades de vigilância sanitária e epidemiológica (artigo 6º, I, da Lei 8.080/1990)" STF, ADPF 672, Min. Alexandre de Moraes.

[2] O legislador infraconstitucional, por meio do artigo 2°, da Lei nº 8.080/1990, consignou que "a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício".

[3] "Os direitos fundamentais à vida e à saúde são direitos subjetivos inalienáveis, constitucionalmente consagrados, cujo primado, em um Estado Democrático de Direito como o nosso, que reserva especial proteção à dignidade da pessoa humana, há de superar quaisquer espécies de restrições legais". STJ, 1. T, REsp 836913/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 31.05.2007, p. 371.

[4] Carvalho Filho, José dos Santos Manual de Direito Administrativo / José dos Santos Carvalho Filho. — 33. ed. — São Paulo: Atlas, 2019.

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    é advogado, especialista em Direito Publico e Municipal pela Universidade Católica do Salvador e Direito Eleitoral pela PUC/MG, presta assessoria jurídica a prefeituras, Câmara de Vereadores e perante os Tribunais de Contas da União, Estado e municípios.

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