Prática Trabalhista

Posição dos tribunais na caracterização da Covid-19 como doença ocupacional

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

14 de outubro de 2021, 8h00

Recentemente, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, em duas ocasiões, emitiu um juízo de valor quanto a possibilidade da Covid-19 ser reconhecida ou não como doença ocupacional.

Primeiramente, impende frisar que, após a promulgação da Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020[1], que, aliás, já teve o seu prazo de vigência encerrado, foram ajuizadas algumas ações diretas de inconstitucionalidade[2].

Isto porque o artigo 29 da referida Medida Provisória preceituava que "os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados, exceto mediante comprovação do nexo causal".

Nesse sentido, a Suprema Corte, ao considerar a inconstitucionalidade desse referido artigo, não quis dizer que foi reconhecido, automaticamente, o direito à indenização e à estabilidade provisória no emprego, mas apenas afastou o ônus do trabalhador de comprovar que a infecção por Covid-19 teria cunho ocupacional, de modo que cada caso seria analisado de forma pontual.

Em seu voto, o Ministro Edson Fachin destacou[3]: "Assim, o ônus de comprovar que a doença não foi adquirida no ambiente de trabalho e/ou por causa do trabalho deve ser do empregador, e, não, do empregado, como estabelece a norma impugnada. O artigo 29 da Medida Provisória n. 927/2020 afronta o que dispõe o artigo 7º, XXII, da CRFB: 'redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança', invertendo o ônus probatório no caso específico da infecção por coronavírus".

Indubitavelmente, ao exigir que o trabalhador comprovasse o nexo de causalidade estaríamos diante de uma prova diabólica, que é aquela prova extremamente difícil de ser produzida, ou, ainda, impossível.

A respeito de tal temática, o professor Sebastião Geraldo de Oliveira nos ensina[4]:

"Uma vez suspensa a eficácia jurídica do artigo 29 mencionado, foi afastada a presunção legal no sentido de que a doença não tem natureza ocupacional. Então, o enquadramento como doença relacionada ou não ao trabalho será verificado considerando o caso concreto, as previsões contidas na Lei nº 8.213/1991 e os ajustes hermenêuticos decorrentes das singularidades dessa nova pandemia. Como indicado no julgamento da Corte Suprema, o grau de risco da exposição ao novo coronavírus, pela natureza da atividade do empregador, cria a presunção da etiologia ocupacional da Covid-19 em favor da vítima.

Vale enfatizar, para fins de orientação interpretativa, o destaque registrado no julgamento do STF ao direito do empregado à "redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” como previsto expressamente no inciso XXII do artigo 7º da Constituição da República de 1988. E não se trata de julgamento isolado porque, em diversos acórdãos proferidos nos últimos anos, a proteção jurídica à saúde do trabalhador vem adquirindo maior acolhimento no âmbito do Supremo Tribunal Federal."

Destarte, a Secretaria Especial de Previdência e Trabalho publicou a Nota Técnica SEI nº 56376/2020/ME[5], que teve por objeto esclarecer sobre a caracterização da Covid-19 como doença ocupacional, haja vista a Medida Provisória 927 ter perdido vigência sem a sua conversão em lei.

A referida Nota Técnica esclarece que, a depender da situação, a Covid-19 pode ser reconhecida como doença ocupacional, todavia, deverá restar determinado, de forma técnica, o nexo de causalidade, sem a prevalência em favor do trabalhador[6].

Dito isso, a 9ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região[7] não acolheu o pedido do trabalhador que pretendia o reconhecimento da Covid-19 no ambiente de trabalho, assim como uma indenização por dano moral e material.

Ao analisar o caso concreto, o desembargador relator entendeu que, diante da negativa da empresa e do conjunto probatório, o trabalhador não conseguiu demonstrar as suas alegações, eis que não foram anexados os exames médicos atestando que a doença teria sido contraída por culpa da empresa. Além disso, o desembargador relator concluiu que depoimento pessoal do trabalhador não foi compatível com os relatos da petição inicial.

Da mesma forma, a 5ª Turma do Tribunal Paulista[8], ao julgar um caso de um trabalhador que veio as falecer de Covid-19, considerou que os elementos dos autos não foram suficientes para a comprovação de que a doença foi adquirida no ambiente laboral.

A magistrada relatora, Patrícia Cokeli Seller, concluiu que a empresa adotou todas as medidas necessárias para a preservação da saúde dos trabalhadores, inclusive permitindo o trabalho remoto, ou oferecendo táxi ou Uber àqueles que necessitassem de deslocar para a empresa. Portanto, diante da análise das provas, a Relatora entendeu não restar caracterizado o nexo de causalidade, mantendo a decisão do juízo de origem.

Além do mais, a decisão de primeiro grau, com base na certidão de óbito, consignou que a morte do trabalhador sobreveio de diversos fatores, tais como: choque séptico; endocardite bacteriana; Covid-19; obesidade e tabagismo, de modo que não seria possível afirmar, com toda propriedade, que falecimento se deu em virtude da Covid-19.

Lado outro, a decisão de primeiro grau da Justiça do Trabalho de São Paulo, ao julgar um processo de um trabalhador que pretendia o reconhecimento da Covid-19 como acidente de trabalho, e, por conseguinte, a estabilidade provisória, teve seu pedido julgado improcedente. O processo se encontra pendente de julgamento pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, já sendo distribuído para a instância superior e designado relator[9].

De outro norte, o Justiça do Trabalho de Minas Gerais, ao julgar um caso envolvendo um motorista de uma transportadora, que faleceu em decorrência da Covid-19, reconheceu a doença como acidente de trabalho[10]. Neste processo, o magistrado entendeu ser cabível a adoção da teoria responsabilização subjetiva, haja vista que o trabalhador permaneceu vulnerável à contaminação, em locais como instalações sanitárias precárias, pátios de carregamento, nas sedes ou filiais da empresa.

É certo que até o presente momento o Tribunal Superior do Trabalho não emitiu um juízo de valor sobre o assunto. Entretanto, há um recurso a ser analisado pela Corte de Vértice Trabalhista, que já se encontra na conclusão para o voto do Ministro José Roberto Freire Pimenta[11].

Em arremate, é incontroverso que a pandemia trouxe inúmeras mudanças na sistemática jurídica, de modo a fomentar muitas dúvidas e incertezas. Até que ocorra a uniformização da jurisprudência, é provável que existam entendimentos distintos dos operadores do Direito.


[2] ADI 6342, ADI 6344, ADI 6346, ADI 6352 e ADI 6354.

[7] Processo 1000396-57.2021.5.02.0061, 9ª Turma. Desembargador Relator, Mauro Vignotto. Acórdão publicado em 05.10.2021.

[8] Processo 1001350-68.2020.5.02.0084. 5ª Turma. Desembargadora Relatora, Patricia Cokeli Seller. Acórdão publicado em 07.10.2021.

[9] Processo 1000960-48.2020.5.02.0036. 3ª Turma. Desembargadora Relatora Jucirema Maria Godinho Gonçalves.

Autores

  • é mestre em Direito pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, coordenador Acadêmico do projeto “Prática Trabalhista” (Revista Consultor Jurídico - ConJur), palestrante e instrutor de eventos corporativos pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe, e membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP).

  • é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD), pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô, membro da Comissão Especial de Direito do Trabalho da OAB-SP e pesquisador do Núcleo "Trabalho Além do Direito do Trabalho" da Universidade de São Paulo – NTADT/USP.

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