Opinião

A dissolução parcial da sociedade limitada pela perda da affectio societatis

Autor

14 de outubro de 2021, 17h31

O Brasil vive uma "sede" pelo empreendedorismo. É exatamente o que apontam os dados levantados pelo Ministério da Economia (ME) no Boletim do Mapa de Empresas relativo ao primeiro quadrimestre de 2021: 1.392.758 empresas foram criadas, o que representa um crescimento de 32,5% em relação ao mesmo período em 2020.

Entre as empresas abertas, 180.052 são Sociedades Limitadas (LTDAs) — o que corresponde a um significativo aumento de 80,7% em relação ao primeiro quadrimestre de 2020. Como os dados apontam, essa modalidade societária é bastante atrativa aos empresários justamente pela responsabilidade dos membros limitar-se ao valor de sua quota parte após a integralização do capital social.

Por certo, a entrada em vigor da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) influenciou o exponencial aumento da quantidade de sociedades limitadas ao diminuir a burocracia envolvida na abertura de negócios e permitir a constituição de LTDAs com apenas um sócio (Sociedades Limitadas Unipessoais — SLUs) — que correspondem a 52% do número de limitadas criadas.

A par da inovação legal, neste artigo, busca-se analisar algumas peculiaridades que envolvem as sociedades limitadas constituídas por uma pluralidade de sócios, também altamente em voga.

Nessa modalidade, as pessoas se unem para exercer coletivamente a atividade econômica empresarial, obrigando-se, por meio do vínculo societário, a contribuir, reciprocamente, com bens ou serviços e a partilhar os resultados entre si.

O principal elemento para a formação de uma LTDA é a materialização do ânimo de se associar (affectio societatis), ou seja, a vontade de os sócios se reunirem para o exercício conjunto da atividade empresarial. Trata-se de requisito essencial, pois será em razão dele que os sócios irão adequar e moldar os seus interesses individuais para o bem comum da sociedade, a fim de que haja consistência na realização do objeto social da empresa.

É de se destacar que, para além do interesse dos sócios em constituir uma sociedade, a sua criação também possui uma função social nítida, pois afeta e envolve terceiros: os trabalhadores, os consumidores, os concorrentes, o governo e, portanto, a comunidade como um todo. É justamente por isso que se busca a preservação da empresa, pois o futuro de diversos setores depende de seu pleno funcionamento.

Em um primeiro momento, a ideia de se abrir uma empresa é aparentemente livre de embaraços, pois, naturalmente, os sócios estão embalados pela empolgação do momento e pela vontade de empreender.

Porém, após a efetiva abertura da sociedade, diversos empresários se deparam com obstáculos usuais, como conflitos e desgastes entre si. A depender do nível dos desentendimentos, o relacionamento pessoal entre eles pode se agravar e, inclusive, tornar insustentável a própria convivência no âmbito empresarial.

E o que ocorre quando o ânimo de se associar termina em relação a um dos sócios? Esse é um grande impasse que envolve as LTDAs e que, via de regra, pode acarretar a sua dissolução — parcial ou total.

Diante da perda da affectio societatis, dois possíveis cenários fáticos podem ser vislumbrados: 1) o primeiro em que o sócio deseja efetivamente retirar-se da sociedade; e 2) o segundo, mais sensível, em que, ante a ausência de sinergia com um dos sócios, os demais desejam a saída daquele — que não pretende retirar-se.

Para a primeira situação, a jurisprudência [1] dominante entende que, ante a perda do ânimo de se associar, o sócio retirante pode exercer o seu direito mediante simples manifestação de vontade, com pelo menos 60 dias de antecedência.

O fundamento que embasa esse entendimento jurisprudencial tem raiz na Constituição Federal (CF), que resguarda o direito fundamental à livre associação ao estipular que "ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado". Justamente por isso, a simples manifestação de vontade do sócio autoriza a sua saída, nos termos do artigo 1.029 do Código Civil (CC).

A notificação do sócio retirante culminará nas seguintes hipóteses: a dissolução total da empresa, caso os remanescentes optem por esse caminho no prazo de trinta dias subsequentes à notificação; ou a dissolução parcial da sociedade, com a apuração dos haveres daquele que se retirou.

A apuração de haveres nada mais é do que a averiguação do valor da empresa e, consequentemente, das quotas sociais. Esse procedimento é de extrema importância, pois a sociedade terá uma visão mais ampla do montante que terá que desembolsar para o pagamento da parte devida ao sócio em razão de sua saída. A depender dos valores apurados e da forma de pagamento, é bastante factível que a empresa se insira em um cenário de comprometimento financeiro.

Assim, na hipótese de decisão pela saída da sociedade, caberá ao retirante o recebimento de seus haveres com base na situação patrimonial da empresa verificada em balanço especialmente levantado, caso o contrato social não estipule forma diversa de avaliação da sociedade.

Quanto ao segundo cenário fático anteriormente apresentado, em que se pretende excluir um dos sócios pela perda da affectio societatis, a doutrina e a jurisprudência são pacíficas quanto à necessidade de demonstração da existência de falta grave para tanto. Isso significa que a simples quebra do ânimo de se associar é insuficiente para garantir a exclusão de um sócio, sendo necessário, para tanto, comprovar justa causa ou motivo legítimo.

Em ambos os cenários apresentados, será necessária a apuração dos haveres do sócio retirante. Ou seja, de uma forma ou de outra, haverá o comprometimento da continuidade do empreendimento por questões financeiras, o que pode culminar em prejuízos não apenas aos sócios, mas à coletividade como um todo (empregos, desenvolvimento econômico), em razão da já mencionada função social da empresa.

Caso haja consenso de todos os sócios: 1) pela retirada; 2) pela forma de avaliação da empresa para a apuração dos haveres; e 3) pela forma de pagamento, será possível solucionar a questão de forma extrajudicial, mediante acordo. No entanto, se houver resistência na retirada do sócio ou controvérsias sobre os haveres devidos, será necessário, em última instância, ajuizar ação de dissolução parcial da sociedade e/ou ação de apuração de haveres.

É importante destacar que as chances de êxito em uma medida judicial como essa, no caso de exclusão do sócio pela quebra da affectio societatis, são diretamente proporcionais à quantidade de provas que demonstrem motivos legítimos para a sua perda ou justa causa para a exclusão.

Infelizmente, situações como as narradas e o desgaste da afinidade existente no âmbito empresarial são extremamente comuns, o que esclarece o motivo de, historicamente, o desentendimento entre os sócios estar entre as principais causas de fechamento das empresas.

Existem, no entanto, instrumentos jurídicos bastante eficazes para prevenir, ou ao menos minimizar, possíveis conflitos entre parceiros de negócio em eventos como o de dissolução societária, a exemplo do acordo de sócios (também conhecido como acordo de quotistas ou acordo de acionistas).

O ponto central desse documento consiste no estabelecimento de diretrizes e de regramentos antes da efetiva ocorrência dos problemas, enquanto persiste o alinhamento de propósitos e de objetivos. Ainda que não seja obrigatório, o acordo de sócios se revela, na prática, um verdadeiro elemento de sobrevivência das empresas em situações mais delicadas — razão pela qual sua elaboração não pode ser negligenciada pelos dirigentes de negócios.

 


[1] STJ, Terceira Turma, REsp 1.735.360/MG, Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 12.03.2019; STJ, Terceira Turma, REsp 1.403.947/MG, Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Data de Julgamento: 24.04.2018.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!