Opinião

A relação de amor e ódio do governo brasileiro com sua infraestrutura

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14 de outubro de 2021, 9h14

Em nosso país a administração da infraestrutura vincula-se não só à prestação de serviços públicos ou atividades econômicas correspondentes [1]. Muito além disso, o Estado brasileiro é o comprador monopsônio de infraestrutura, podemos citar alguns exemplos mais triviais, como rodovias, viadutos, aeroportos, portos, ferrovias e por aí vai. Essas são em sua maioria verdadeiras obras faraônicas e não estão simplesmente disponíveis ao mercado, na verdade, necessitam ser elaboradas baseando-se por vezes numa série de particularizações [2].

Se voltarmos ao passado, conforme ensinamentos do professor Pedro Henrique Pedreira de Campos, veremos que a infraestrutura brasileira passou por três fases distintas [3]:

Na primeira, da metade do século 19 até 1930, houve uma preponderância de companhias oriundas de outros países, as quais executaram em território nacional ferrovias, portos e serviços urbanos (iluminação, transporte e saneamento), e também pequenas hidrelétricas, que atuavam principalmente como concessionárias e eram subcontratadas de outras empresas estrangeiras.

Na segunda, entre os idos de 1930 até 1955, o Estado assumiu o protagonismo ao realizar diversas obras públicas. Estatizou obras de construção de grande monta. Foi o principal responsável pela execução da infraestrutura energética e de transportes do país, além de ampliar diversos serviços urbanos.

A terceira, de 1955 em diante, deu início a uma divisão clarificada entre as atividades estatal-contratante e privada-contratada  em que empresas privadas eram contratadas para a realização das obras públicas (em sua maioria de capital nacional [4]).

Nota-se que o país passou por fases diversas, tentando encontrar o modelo ideal de contratação de obra pública para o avanço da infraestrutura nacional — e segue até hoje, como veremos no decorrer deste artigo.

Pois bem, passada a contextualização histórica, não há como discorrer sobre infraestrutura sem falar de desenvolvimento sustentável, ambos assuntos estão intimamente conectados.

Inclusive, o desenvolvimento sustentável está entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil — talhado em nossa Constituição de 1988 no artigo 3º, II:

"Artigo 3º  Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

II
 garantir o desenvolvimento nacional;
…".

Observa-se que o país tem uma missão muito importante para garantir  o desenvolvimento nacional, o qual depende de uma conduta efetiva do Estado brasileiro para poder ocorrer.

Aqui há a penetração pura do Direito Administrativo, que pode ser utilizado como ferramenta para, de alguma forma, obrigar a Administração Pública a buscar o cumprimento efetivo de tal finalidade insculpida em nossa Carta Magna.

Para acalorar o debate, lançaremos mão das reflexões trazidas pelo professor Augusto Neves Dal Pozzo, que, ao se ocupar da matéria, levantou os questionamentos:

"Por que o direito administrativo brasileiro não se ocupa cientificamente da infraestrutura?  Há um conceito jurídico de infraestrutura?".

No campo do Direito, dificilmente encontra-se um conceito estritamente jurídico para infraestrutura. O professor Augusto Neves Dal Pozzo, ao responder o primeiro questionamento, trouxe a seguinte excelente contribuição conceitual:

"Infraestrutura é a atividade administrativa indivisível e inespecífica que o Estado tem o dever de realizar (ou quem lhe faça as vezes), consistente em prover, manter e operar ativos públicos de modo a oferecer a finalidade de promover concretamente o desenvolvimento econômico e social, sob um regime jurídico-administrativo".

Poderíamos enriquecer com outros conceitos clássicos até mesmo os da ciência econômica, contudo, o que nos importa aqui é que o Estado tem o dever precípuo de promover concretamente o desenvolvimento econômico e social por meio de uma infraestrutura de qualidade.

Hoje a Administração Pública Brasileira dispõe de uma legislação eficaz para implantar projetos de infraestrutura?
O governo brasileiro, aqui enquanto Administração Pública executora das atividades visando ao bem comum, pode lançar mão de alguns modelos de contratos existentes para poder implementar projetos de infraestrutura (rodovias, ferrovias, portos, aeroportos etc.).

O que deve ser levado em conta são as necessidades reais de cada situação concreta — podemos exemplificar com algumas perguntas de partida:

Qual é o tempo que se tem para início da execução até a conclusão do empreendimento público? O ente possui orçamento disponível? Qual será o modo de execução direto ou não pelo Estado?

Assim, por tais indagações é que se deve guiar o administrador público para optar por esta ou aquela opção legal disponível, adequando-a aos objetivos a serem perseguidos.

Há de se considerar algum espaço, entre as soluções contratuais existentes, por refletir uma opção discricionária do poder público, porém, sabe-se que dependendo do modelo escolhido pode ser engessado e burocrático, o que acaba por limitar a atuação do gestor.

Podemos citar alguns projetos que conjugaram alguns modelos contratuais distintos, em busca de maior celeridade na contratação e outros que optaram por fazer um único procedimento para atender a totalidade de sua necessidade [5]:

A implantação da Linha 4 – Amarela do Metrô de São Paulo utilizou-se um modelo convencional — a empreitada  para construção da obra. Já para fornecer o equipamento e a prestação dos serviços, foi feita outra contratação com base na Lei de Parceria Públicos-Privadas – Lei de PPP (Lei n° 11.079/2004).

Muito embora tenha sido utilizado um modelo híbrido, dividindo o objeto em contratações distintas no caso concreto, não se vê óbice alguma jurídica, na opção de um modelo individual para persecução do objetivo todo (realização da obra civil, fornecimento do equipamento e operação).

Até porque o mesmo contratante, tempos depois, resolveu realizar uma única contratação para viabilizar a implantação e operação da nova linha (a Linha 6 – Laranja).

Igualmente, viu-se a utilização dos modelos contratuais mais variados pelos estados que contrataram a construção de estádios de futebol para sediar os jogos das Copas (do Mundo e Confederações) organizados pela Fifa.

O Estádio do Maracanã, situado na capital carioca, foi reformado por um contrato de empreitada; apenas ao final da obra, é que sua operação foi delegada a iniciativa privada.

Outro exemplo interessante foi o Estádio do Mineirão, localizado em Belo Horizonte, que optou por condensar em um único instrumento de PPP a obra e a operação do equipamento por prazo determinado.

Fica claro que a avaliação da escolha por um ou outro modelo, dependerá tanto ou mais de análises de caráter gerencial, político, econômico e financeiro do que propriamente de características de regime jurídico [6].

Quais são os modelos jurídicos disponíveis para implementação de projetos de infraestrutura?
Hoje, entre os mecânicos da legislação brasileira existem diversos modelos jurídicos que podem e devem ser empregados para implantar projetos de infraestrutura.

O mais comum é pela Lei Geral de Licitações e Contratações Públicas (a Lei 8.666/1993 — hoje em sobrevida, vigente somente até 1º/4/2022, quando será substituída integralmente por outra legislação mais recente), que regra os mais diversos tipos de contratos firmados pelo poder público (desde o fornecimento mais simplório de bens serviços até o mais complexo de empreita de obra pública de elevado valor).

Além do geral, existe o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), que é bem menos burocrático, regrado pela Lei 12.462/2011.

Atualmente, o modelo geral e o regime diferenciado estão com seus dias contados, pois ambos modelos serão substituídos pelas tímidas inovações trazidas pela nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, a Lei nº 14.133/2021 [7] — a qual será objeto de análise em verbete próprio.

Outra opção, talvez a de maior relevância para projetos de infraestrutura, é o sistema jurídico das concessões de serviço (que podem ser antecedidas ou não de obra pública). O molde é regrado pela Lei 8.987/1995, a primária lei de caráter nacional e geral que disciplinou os contratos de concessão no Brasil.

O derradeiro molde contratual a ser levado a efeito é o de parceria público-privada (regrada pela Lei 11.079/2004), que traz dois tipos de concessão, a patrocinada e a administrativa, quando utilizadas em conjunto com a de concessão comum (Lei 8.987/1995), formam uma forte opção de implantação de infraestrutura pública, de modo a viabilizar a exploração econômica de empreendimentos por empresas privadas.

Estima-se que hoje tenhamos 111 contratos de PPPs em curso no país, entre os mais variados setores da infraestrutura: 23 — lixo e resíduos sólidos; 19 — abastecimento de água e saneamento básico; 17  iluminação pública; 11  saúde pública; 9 — mobilidade urbana; 7 — arenas esportivas; 7 — serviços ao cidadão; 5 — rodovias; 5 — habitação; 3 — sistema prisional; 2 — tecnologia; 1 — educação; 1 — bens estatais; 1 aeroportos; 1 — cultura e 1 — manutenção prédios públicos. 

Ao fim, devemos apresentar ainda o molde de parcerias entre os próprios entes estatais (colaboração recíproca entre entes estatais de regime público e privado; exemplo: empresas estatais e autarquias). Esse modelo de viabilização de projetos de infraestrutura é objeto da Lei 11.107/05, a qual trata dos consórcios públicos além dos contratos de programa.

O Brasil consegue desenvolver uma infraestrutura de qualidade?
O Estado brasileiro foi hostilizado por um longo período, num passado recente a Administração perdeu o brio e desengajou-se da infraestrutura — por meio da privatização e do abandono (degradação dos ativos públicos) — e chegou a promover políticas públicas envernizadas de "sustentáveis" em prol de pequenas minorias enquanto padecia a outra banda massiva da população menos favorecida [8].

Parece que isso vem mudando, visto que em 2019, segundo os dados do Fórum Econômico Mundial, o Brasil ficou na 85ª posição no ranking de infraestrutura de transporte, da América Latina e Caribe  a infraestrutura é um dos pilares que compõem o ranking global, que abrange 141 países.

Em 2020, o país conseguiu melhorar quatro quesitos que o fizeram subir no ranking global de competitividade  o principal fator ocorreu no setor de infraestrutura de transportes.

Os serviços aeroviários subiram 18 posições (de 85º foi para 67º), acompanhada dos serviços portuários, que conseguiram emplacar 13 posições (de 104º foi para 91º). Já as rodovias brasileiras tiveram significativa melhora de oito posições (de 116º foi para 108º) bem como as ferrovias, que subiu uma colocação (de 86º foi para 85º).

Apesar da pandemia da Covid-19 ter exposto o Brasil a um desafio sanitário e econômico sem precedentes, nota-se, uma ligeira melhora nos últimos anos analisados, tendo como parâmetro exclusivo os quesitos medidos pelo Fórum Econômico Mundial quando o assunto é infraestrutura.

Por tais razões, em que pese o esforço do legislador para tentar disponibilizar modelos variados para implementação de infraestrutura no Brasil, nos faz pensar que a barreira em si não está somente nos moldes legais disponíveis (que em sua maioria são burocráticos e demorados), mas também nos responsáveis por executá-los, de tal sorte que nos leva a crer que "é preciso que os homens bons respeitem as leis más, para que os homens maus respeitem as leis boas", como escreveu certa vez o filósofo Sócrates.


[1] Carvalho, André Castro, Direito da Infraestrutura cit, pp. 162-168 e 239-240.

[2] CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira, "Estranhas Catedrais": A Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar, 1964-1988, Niteroi, EdUFF, 2014, pág. 32.

[3] CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira, "Estranhas Catedrais" cit. pp 42-45.

[4] A proteção ao capital nacional no setor de grandes obras foi garantida pelo Decreto n. 64.345 de 10 de abril de 1969, que determino que o Estado só pode contratar para as obras públicas pessoas jurídicas constituídas no país, com sede e foro no Brasil, com o controle acionário pertencente a brasileiros natos ou naturalizados residentes no país e que tenham, pelo menos, metade integrado por brasileiros natos ou naturalizados. CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira, "Estranhas Catedrais" cit. pp 341-346.

[5] CÂMARA, Jacintho Arruda. A experiência brasileira nas concessões de serviços público e as Parcerias Público-Privadas. Parcerias público-privadas.

[6] PORTUGAL RIBEIRO, Mauricio. Concessões e PPPs — Melhores práticas em licitação e contratos. São Paulo: Atlas, 2011.

[7] Frise-se: a nova lei vigerá simultaneamente por dois anos com as leis que compõem o regime antigo. A Lei n. 8.666/1993 (regime geral até então vigente) e os dispositivos da Lei nº 12.462/2001 (RDC), tão-somente serão revogadas após 2 (dois) anos da publicação da Lei n. 14.133/2021. Isso quer dizer que haverá dois anos de convivência entre os regimes antigo e novo de licitação e contratação.

[8] BERCOVICI, Gilberto. VALM, Rafael. (Coord.) Infraestrutura e desenvolvimento. In: Elementos de Direito da Infraestrutura. São Paulo. Editora Contracorrente, 2015. P 17-26.

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