Opinião

A inconstitucional PEC 05/21 e o Ministério Público

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14 de outubro de 2021, 10h37

É fato público e notório que as últimas três décadas (1990 a 2019) foram marcadas por grande produção de normas federais. São leis desse período, apenas a título de exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90); o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90); a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92); a Lei de Lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/98); a Lei das Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/13); a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/13).

Também é fato objetivo que o Ministério Público brasileiro usou todo esse instrumental normativo para processar civil e penalmente políticos e empresários até então intocáveis, razão pela qual o Congresso Nacional busca, a cada nova legislatura, aprovar normas destinadas a diminuir a desidratar até a morte o Ministério Público, tudo com o objetivo de dificultar e/ou impedir a responsabilização de agentes políticos, especialmente os ímprobos e corruptos.

Assim é que em 25 de março deste ano, em plena pandemia da Covid-19, período de impossível mobilização pública por conta da crise sanitária, o deputado federal Paulo Teixeira (PT) apresentou proposta de emenda constitucional para alteração do Conselho Nacional do Ministério Público (PEC 05/21), a fim de alterar o artigo 130-A, da Constituição Federal, com a seguinte redação:

"Artigo 130-A  O Conselho Nacional do Ministério Público compõe-se de quatorze membros nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, para um mandato de dois anos, admitida uma recondução, sendo: I – o Procurador-Geral da República, que o presidirá. II – três membros, cada um escolhido dentre as carreiras do Ministério Público Federal, do Ministério do Trabalho e do Ministério Público Militar; III – três membros do Ministério Público dos Estados e do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios; IV – dois ministros ou juízes, indicados um pelo Supremo Tribunal Federal e um pelo Superior Tribunal de Justiça; V – dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VI – dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos deputados e outro pelo Senado Federal. VII – um membro do Ministério Público, oriundo de quaisquer de seus ramos, indicado alternadamente para cada mandato pela Câmara dos deputados e pelo Senado Federal, nesta ordem".

No último dia 6, o relator da Proposta de Emenda à Constituição nº 5/2021, deputado federal Paulo Magalhães (PSD-BA), apresentou Pareceres Preliminares de Plenário nº 1, nº 2, nº 3 e nº 4, contendo alterações mais graves à proposição inicial:

"(i) A inclusão de mais 1 membro na composição do Conselho Nacional do Ministério Público, o qual passaria, então, a contar com 15 (quinze) integrantes, sendo que essa nova vaga, que decorreria de indicação de ministro ou juiz, pelo Supremo Tribunal Federal, ainda se sujeitaria à eleição, a cada biênio, alternadamente, pelo Senado Federal e pela Câmara dos deputados; (ii) Das 4 (quatro) vagas previstas atualmente para a carreira do Ministério Público da União, apenas 3 (três) se manteriam, sendo que 1 (uma) se destinaria ao Ministério Público Federal e 2 (duas) seriam preenchidas, alternadamente, entre os membros do Ministério Público do Trabalho, do Ministério Público Militar, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e do Ministério Público dos Tribunais de Contas; (iii) A indicação, pela Câmara dos deputados e pelo Senado Federal, alternadamente, a cada biênio, de um membro do Ministério Público dos Estados ou da União, dentre os que ocupam ou ocuparam, respectivamente, o cargo de Procurador-Geral de Justiça ou Procurador-Geral de um dos ramos do Ministério Público da União, sendo que essa escolha não dependeria de indicação dos respectivos ramos do Ministério Público; (iv) Sujeição, à atuação do CNMP, do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, aos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como aos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios; (v) Criação expressa da Vice-Presidência do CNMP, vaga que seria ocupada pelo Corregedor Nacional do CNMP, função esta, por sua vez, a ser exercida pelo membro do Ministério Público escolhido pela Câmara dos deputados ou pelo Senado Federal; (vi) Exigência de idade mínima e tempo de carreira aos membros do CNMP oriundos do Parquet, com exceção do membro indicado pela Câmara dos deputados ou pelo Senado Federal; (vii) Inclusão, entre as vedações impostas aos membros do Ministério Público, da interferência na ordem política e nas instituições constitucionais com finalidade exclusivamente política; (viii) Permissão ao CNMP para rever e desconstituir atos que constituam violação de dever funcional dos membros, ou quando se observar a utilização do cargo com o objetivo de se interferir na ordem pública, na ordem política, na organização interna e na independência das instituições e dos órgãos constitucionais".

A justificativa do projeto de emenda à Constituição segue em dois singelos parágrafos:

"A Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional no 35, de 30/12/2004, instituiu o Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP, cuja instalação oficial se deu em 21/6/2005. O CNMP completa em 2020 o marco simbólico de 15 anos de efetivo funcionamento, com relevantes serviços prestados ao país e ao sistema de justiça.
O tempo, porém, revelou a existência de algumas deficiências na estrutura do CNMP bem como a necessidade de se esclarecerem certos aspectos de seu funcionamento. Tais alterações visam também assegurar que o CNMP consiga ampliar a eficácia de sua atuação e, com isso, eliminar certa sensação de corporativismo e de impunidade em relação aos membros do Ministério Público que mereçam sofrer sanções administrativas por desvios de conduta".

Ao final da proposta, o deputado federal Paulo Teixeira explica que:

"(d) Eliminou-se a exigência de que o Corregedor Nacional do Ministério Público seja escolhido dentre os membros da instituição, o que permitirá a eleição de membros externos para a função. Com isso, haverá inegável oxigenação nas atividades da Corregedoria Nacional, enriquecida com a experiência de quaisquer dos membros do CNMP."

Segue agora a análise estritamente jurídica da PEC:

1) O artigo 127 e seu parágrafo 1º da Constituição Federal preveem que o Ministério Público é "instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis" e que "são princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional." Tais princípios institucionais formam a espinha dorsal do modelo constitucional do Ministério Público, sem os quais a instituição não pode atuar como defensora do Estado constitucional de Direito, ou seja, de forma livre, firme e corajosa na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis contra quaisquer pessoas físicas ou jurídicas, independentemente de sua condição econômica ou política.

2) O Ministério Público é instituição considerada cláusula pétrea da Constituição Federal, em razão de sua imprescindibilidade para o sistema de Justiça brasileiro e por conta de sua missão de defesa do regime democrático.

3) O artigo 130, IV, da Constituição Federal já prevê que dois assentos do Conselho Nacional do Ministério Público sejam ocupados por dois juízes, indicados um pelo Supremo Tribunal Federal e outro pelo Superior Tribunal de Justiça, ou seja, assentos que garantam participação ao Poder Judiciário no Conselho Nacional do Ministério Público.

4) A proposta de assento aos próprios ministros dos tribunais superiores no Conselho Nacional do Ministério Público desvirtua as funções de referidos ministros de tais tribunais superiores, pois a eles confere "superpoderes", a saber: "i – de atuação natural jurisdicional nas Cortes em que atuam; ii – de Conselheiros no Conselho Nacional de Justiça; iii – e também no Conselho Nacional do Ministério Público", em evidente desequilíbrio do sistema de Justiça, com violação do sistema de freios e contrapesos (checks and balances) previsto pelo poder originário constituinte. Por tal razão é que quando da aprovação da Emenda Constitucional nº 45/04, que criou os Conselhos Nacional do Ministério Público e Nacional de Justiça, não se previu assento aos ministros dos tribunais superiores no Conselho Nacional Ministerial. Tal medida significaria a criação de "superministros", claramente inconstitucional.

5) O artigo 129, parágrafo 4º, da Constituição Federal prevê o princípio da simetria institucional entre o Ministério Público e o Poder Judiciário: "Artigo 129  São funções institucionais do Ministério Público: (…) § 4º Aplica-se ao Ministério Público, no que couber, o disposto no artigo 93." Portanto, a se admitir a inconstitucional proposta de assento aos próprios ministros dos tribunais superiores no Conselho Nacional do Ministério Público, com base no princípio da simetria constitucional-institucional entre o Ministério Público e o Poder Judiciário, idêntica previsão de assento no Conselho Nacional de Justiça teria de ser conferida ao procurador-geral da República, aos procuradores-gerais de Justiça dos estados, do Distrito Federal, ao procurador-geral do Trabalho e ao procurador-geral da Justiça Militar, o que sabidamente não se revela juridicamente correto.

6) A proposta de escolha do Corregedor Nacional do Ministério Público configura constrangimento à livre e independente atuação dos membros do Ministério Público, evidenciando inconstitucionalidade por ofensa ao princípio constitucional da independência institucional do Ministério Público.

7) Referida proposta contraria ainda o disposto no artigo 127, parágrafo 2º a 5º, da Constituição Federal que trata das garantias institucionais do Ministério Público:

"Artigo 127  (…)
§ 2º Ao Ministério Público é assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no artigo 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento".

A autonomia funcional (institucional) acima prevista no artigo 127, §2º, da CF, significa que os membros do Ministério Público não se submetem a nenhum outro "poder" (Legislativo, Executivo ou Judiciário), órgãos públicos ou privados. Devem obediência tão somente à Constituição, às leis e à sua própria consciência.

8) A proposta contida na PEC 05/21, de permitir ao Conselho Nacional do Ministério Público a possibilidade de "rever e desconstituir atos que constituam violação de dever funcional dos membros, ou quando se observar a utilização do cargo com o objetivo de se interferir na ordem pública, na ordem política, na organização interna e na independência das instituições e dos órgãos constitucionais", evidencia flagrante inconstitucionalidade porque:

a) Viola diretamente o artigo 130-A, parágrafo 2º, da CF, que prevê que somente "compete ao Conselho Nacional do Ministério Público o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros, cabendo lhe." Portanto, os controles administrativo e financeiro do Conselho Nacional do Ministério Público não significam controle da atividade-fim, ou seja, é vedado constitucionalmente ao CNMP o controle da atuação dos membros do Ministério Público em investigações de natureza civil, penal, eleitoral, de interesses metaindividuais e quaisquer outras áreas de atuação em procedimentos extrajudiciais, em ações civis ou penais ajuizadas, porquanto somente ao Poder Judiciário é conferida, pelo poder constituinte originário, a função de julgamento.

b) Viola diretamente o artigo 5º, XXXV, da CF: "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Afinal, até as pedras sabem que o Estado conferiu constitucionalmente ao Poder Judiciário o poder de decidir e julgar questões referentes a direitos materiais. Trata-se parcela de poder exercitada pelo Estado-juiz, o Poder Judiciário, que é considerada sua função típica. Não pode o Conselho Nacional do Ministério Público exercer tal atividade jurisdicional, porque a emenda estaria criando, em verdade, um quarto poder, em evidente violação ao artigo 2º, da CF: "Artigo 2º — São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário".

9) O STF, aliás, já decidiu, no MS 28028, que não compete ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), apreciar questões referentes à atividade-fim do Ministério Público brasileiro:

"Mandado de segurança. Conselho Nacional do Ministério Público. Anulação de ato do Conselho Superior do Ministério Público do Estado do Espírito Santo em termo de ajustamento de conduta. Atividade-fim do Ministério Público Estadual. Interferência na autonomia administrativa e na independência funcional do Conselho Superior do Ministério Público no Espírito Santo – CSMP/ES. Mandado de segurança concedido" (STF, MS 28028, Órgão julgador: 2ª Turma relatora ministra Cármen Lúcia, julgamento: 30/10/2012, Publicação: 7/6/2013).

10) Tão explícitas as inconstitucionalidades materiais contidas na PEC 05/21 que sequer foi submetida à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos deputados, e tampouco previu semelhantes previsões de alteração na composição do Conselho Nacional de Justiça, evidência do desvio de finalidade da PEC, pois se almeja apenas "controle político único e exclusivo do Conselho Nacional do Ministério Público", conforme explica Celso Spitzcovsky [1]:

"A finalidade aparece como requisito de validade somente para os atos administrativos, pois representa a essência das atividades desenvolvidas pelo Poder Público, todas elas no exercício de uma função, como visto no capítulo inicial desta obra. Dessa forma, se o único objetivo a ser perseguido pelo administrador é o da preservação do interesse público, resta clara a conclusão segundo a qual, toda vez que ele dessa finalidade se afastar, o ato não poderá ser considerado válido, caracterizando desvio de finalidade que se apresenta como variante do abuso de poder, que, por seu turno, surge como forma de ilegalidade" (grifo do autor).

Essas são as principais razões jurídicas que tornam imprescindível a não submissão da PEC 05/21 ao Plenário da Câmara dos Deputados, com seu arquivamento, ou, se submetida, sua integral rejeição, porque permeada por diversos vícios de constitucionalidade material.

 


[1] SPITZCOVSKY, Celso. Direito Administrativo Esquematizado, 2ª ed., livro digital E-pub, 2018, p. 261.

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