Opinião

As decisões coordenadas na Lei nº 14.210/2021

Autor

  • Amauri Saad

    é doutor e mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP. Master of Laws pela University of Toronto. Advogado e parecerista.

14 de outubro de 2021, 19h42

A Lei nº 14.210/2021 alterou a Lei de Processo Administrativo (Lei nº 9.784/1999) para incluir a figura da "decisão coordenada", disciplinada pelo novo capítulo XI-A, que introduz os artigos 49-A a 49-G. A decisão coordenada tem cabimento em situações que exijam a participação de três ou mais setores, órgãos ou entidades da Administração Pública federal, quando estiverem presentes, concomitantemente, os requisitos de: 1) relevância da matéria em discussão; e 2) discordância que prejudique a celeridade do processo decisório (artigo 49-A, I e II). A finalidade desse arranjo é, como destaca o §1º do mesmo artigo 49-A, "simplificar o processo administrativo mediante participação concomitante de todas as autoridades e agentes decisórios e dos responsáveis pela instrução técnico-jurídica, observada a natureza do objeto e a compatibilidade do procedimento e de sua formalização com a legislação pertinente".

A sua aprovação foi comemorada pelo senador Antônio Anastasia, autor do projeto de lei, como uma medida para "facilitar decisões de alta complexidade" e um "instrumento a favor da administração pública e, por consequência, a favor dos brasileiros, para termos uma administração cada vez mais eficiente, mais ágil, mais barata, menos burocrática e com decisões ágeis e sobretudo eficientes com resultados" [1]. Houve quem visse na medida uma vitória da "consensualidade" no Direito Administrativo e um sinal luminoso da instauração, entre nós, do "Direito Administrativo do acolhimento" (sic). Será que a medida justifica essa alegria toda?

A primeira coisa a se fazer quando é aprovada uma nova legislação é compará-la com o que existia antes, para saber o que mudou, se é que mudou. Nesse exercício, tem sido comum, sobretudo em tempos recentes, o fenômeno do que chamo leis declaratórias ou reiterativas, que não inovam propriamente no mundo jurídico, mas apenas se limitam a repetir mandamentos encontráveis em outros diplomas. No tema da arbitragem envolvendo a Administração Pública, por exemplo, embora a Lei nº 9.307/1996 já permitisse que o poder público se valesse da figura (fato reconhecido, independentemente da lei, muitos anos antes pelo STF [2]), o legislador julgou necessário editar a Lei nº 13.129/2015, que alterou a primeira para deixar ainda mais claro aquilo que já era claro: que a Administração poderia se submeter a arbitragem. Outro exemplo é o da reforma da LINDB, por meio da Lei nº 13.655/2018, que trouxe, conforme consta de sua ementa, "disposições sobre segurança jurídica e eficiência (sic) na criação e aplicação do direito público". A "reforma" repetia o conteúdo de várias leis esparsas, conforme apontei em artigo escrito em coautoria com Sergio Ferraz, não sendo, propriamente, uma inovação [3]. E a Lei nº 14.210/2021? Ao consagrar a figura da "decisão coordenada", a lei repete, se não o conteúdo, pelo menos a intenção de normas existentes, porém, com o agravante: fá-lo piorando e confundindo o que existe. Explico-me.

Primeiro, a ideia de coordenação (e não de decisão coordenada) é consagrada há muitas décadas em nosso direito. Com efeito, o Decreto-Lei nº 200/1967 contém um capítulo (artigos 8º e 9º) para tratar do tema. É ver-se:

"Artigo 8º — As atividades da Administração Federal e, especialmente, a execução dos planos e programas de governo, serão objeto de permanente coordenação.
§1º A coordenação será exercida em todos os níveis da administração, mediante a atuação das chefias individuais, a realização sistemática de reuniões com a participação das chefias subordinadas e a instituição e funcionamento de comissões de coordenação em cada nível administrativo.
§2º No nível superior da Administração Federal, a coordenação será assegurada através de reuniões do Ministério, reuniões de ministros de Estado responsáveis por áreas afins, atribuição de incumbência coordenadora a um dos ministros de Estado (artigo 36), funcionamento das Secretarias Gerais (artigo 23, §1º) e coordenação central dos sistemas de atividades auxiliares (artigo 31).
§3º Quando submetidos ao presidente da República, os assuntos deverão ter sido previamente coordenados com todos os setores neles interessados, inclusive no que respeita aos aspectos administrativos pertinentes, através de consultas e entendimentos, de modo a sempre compreenderem soluções integradas e que se harmonizem com a política geral e setorial do governo. Idêntico procedimento será adotado nos demais níveis da Administração Federal, antes da submissão dos assuntos à decisão da autoridade competente.
Artigo 9º 
Os órgãos que operam na mesma área geográfica serão submetidos à coordenação com o objetivo de assegurar a programação e execução integrada dos serviços federais.

Parágrafo único. Quando ficar demonstrada a inviabilidade de celebração de convênio (alínea b do §1º do artigo 10) com os órgãos estaduais e municipais que exerçam atividades idênticas, os órgãos federais buscarão com eles coordenar-se, para evitar dispersão de esforços e de investimentos na mesma área geográfica".

Tal modelo, em linha com a tradição da configuração hierárquica da Administração no Brasil [4], preserva a competência do chefe do Executivo para "exercer, com o auxílio dos ministros de Estado, direção superior da administração federal" (CF 1988, artigo 84, II). A ideia aqui é que a coordenação, no interior da estrutura burocrática do Estado, é um processo contínuo e permanente, sendo resultado da atuação do chefe do Executivo e dos ministros, cabendo a tais sujeitos, em razão da posição pinacular que detêm, adotar as medidas consideradas adequadas para uma coordenação eficiente dos agentes, órgãos e entidades envolvidos.

A ideia da nova lei é inaugurar, ao lado da coordenação como processo (Decreto-Lei nº 200/1967), a decisão coordenada como procedimento. Deve-se notar que as inovações da Lei nº 14.210/2021 não são compreensíveis sem a análise do conteúdo vetado. O modelo "completo" da decisão coordenada, tal como foi aprovado no Congresso, é o seguinte: a decisão coordenada não seria uma faculdade, mas um procedimento praticamente obrigatório, devendo ser instaurado por iniciativa "autoridade máxima do órgão ou entidade que tiver maior responsabilidade na condução da matéria em exame ou, na impossibilidade de sua definição, pela autoridade de mais alto nível hierárquico entre os órgãos e entidades que participarão da decisão" (artigo 49-C, caput, vetado). Se não fosse instaurada de ofício, a decisão coordenada poderia ser requerida por "qualquer dos órgãos, das entidades ou das autoridades responsáveis pela edição ou pela aprovação do ato", por "concessionário ou permissionário de serviço público que demonstre interesse legítimo na decisão a ser adotada", ou por qualquer "interessado" (§2º do artigo 49-C, vetado). Os participantes públicos na decisão coordenada deveriam ser representados pelos servidores com poderes para firmar acordos em nome do órgão ou entidade administrativa (§2º do artigo 49-A, vetado), e a "ata" da decisão teria efeito vinculante sobre os órgãos e entidades públicas participantes, orientando futuras decisões sobre a mesma matéria (§2º do artigo 49-G, vetado). Sem esses elementos, que foram vetados, o modelo aprovado é de difícil, senão impossível, aplicação. Vejamos.

Sem a indicação de quais são os responsáveis pela instauração da decisão coordenada, a única saída hermenêutica será entender que a decisão será do chefe do Executivo ou, pelo menos, dos ministros de Estado. E, nessa hipótese, há de se admitir que o que restará é a coordenação como processo, tal como estabelecida no Decreto-Lei nº 200/1967, e que a "decisão coordenada" da Lei nº 14.210/2021 será uma figura inócua. Por outro lado, se os dispositivos da nova lei relacionados ao assunto não tivessem sido vetados, é provável que se pudesse arguir a sua inconstitucionalidade, por violarem exatamente as prerrogativas do presidente da República e dos ministros sob o artigo 84, II, da Constituição.

Na ausência da indicação dos efeitos da "ata" que consubstancia a decisão coordenada, há uma dúvida enorme sobre a natureza da "decisão" assim tomada, que pode nem ser juridicamente uma decisão, mas apenas a reiteração do desacordo que justificou a instauração do procedimento. A Lei nº 14.210/2021 não diz se o que há é uma deliberação a ser tomada entre os participantes (um ato complexo); e se há, qual seria o quórum para uma "decisão coordenada" ser tomada (maioria simples? maioria absoluta? e se houver empate?); e nem quais são os efeitos para os agentes, órgãos ou entidades discordantes. Mais: como o §4º do artigo 49-A estabelece que a decisão coordenada "não exclui a responsabilidade originária de cada órgão ou entidade envolvida", essa incerteza acaba sendo um desincentivo para que o agente público se disponha a participar do procedimento. Sempre vai haver o risco de o agente que não concorde com uma "decisão coordenada" ser responsabilizado pelos seus efeitos e, embora se possa interpretar essa responsabilização como indevida e mesmo inconstitucional (artigo 5º, LIV, CF 1988), pois aquele que não contribuiu para o resultado de uma conduta não pode sofrer as consequências de sua eventual antijuridicidade, a própria possibilidade de que isso possa acontecer já é um problema.

Quanto à tão propagada contribuição para a celeridade das decisões administrativas, importa destacar que a decisão coordenada é um procedimento extraordinário, que se instala quando há um desacordo de vontades entre agentes, órgãos ou entidades da Administração Pública. Ele ocorre, no tempo, quando já foram exercidas as competências de tais atores, pois um de seus pressupostos é justamente a "discordância que prejudique a celeridade do processo administrativo decisório" (artigo 49-A, II). Ora, ou o problema a ser resolvido pela decisão coordenada se relaciona à discordância como um mal em si, ou à celeridade do processo decisório. Há uma confusão de bens jurídicos aqui: a previsão de um processo decisório adicional ao processo decisório ordinário (é exatamente isso o que a decisão coordenada vem a ser), significa, em si mesma, um prejuízo à celeridade processual e não o inverso. A Administração Pública vai demorar muito mais para decidir matérias que estejam sujeitas a tal procedimento.

Um outro problema é este: com a "decisão coordenada", deixa de existir o exaurimento de competência do agente, órgão ou entidade, que ocorre normalmente quando tais atores emitem a decisão ou, na hipótese de recursos administrativos, decidem sobre o mérito destes, mantendo ou reformando a decisão impugnada. A coisa julgada administrativa, que é uma garantia do administrado, desaparece (pelo menos no seu momento normal). O direito ou interesse do administrado somente será considerado protegido em definitivo se, ao final da decisão coordenada, o resultado lhe for favorável. Mais: também desaparece o instituto da preclusão consumativa, que é o exaurimento da competência do agente quando este a executa, e que se aplica particularmente aos atos instrutórios. A rigor, quando há preclusão consumativa, não é só inconveniente que o agente revisite o ato praticado: ele não pode, é juridicamente impedido. Em sede de decisão coordenada, tudo isso vira de cabeça para baixo: todos os atos processuais, não apenas os decisórios, poderão ser revistos, o que provoca maior insegurança jurídica, retrabalho (ou, pior, desconsideração da instrução processual produzida) e ineficiência.

O novo artigo 49-A, §6º, II, expressamente proíbe que sejam objeto de decisão coordenada os assuntos "relacionados ao poder sancionador". Trata-se, claro, de uma escolha legítima do legislador. Ocorre que, na prática, é muito difícil discernir o que se relaciona e o que não se relaciona ao "poder sancionador", sobretudo nas relações contratuais envolvendo particulares. Se se discute por exemplo a conduta de uma concessionária de serviço público, havendo desacordo sobre a sua legalidade, muito provavelmente haverá uma punição envolvida na matéria, ainda que indiretamente. É dizer: a dimensão sancionadora é inseparável de boa parte das situações de Direito Administrativo.

Igualmente: a lei não diz expressamente (mas também não nega) que pode se aplicar às agências reguladoras e autarquias. Nesse caso, embora eu próprio defenda que elas se submetam, em maior ou menor grau, à autoridade hierárquica do chefe do Executivo [5], não seria um contrassenso a adoção de um procedimento que negue a "autonomia" que justifica a própria existência de tais entidades — uma autonomia para contrariar inclusive o entendimento da Administração direta naquilo que seja da sua competência? Assim, por exemplo, o presidente da República ou ministro de Estado, que desejasse promover um bypass institucional nas agências reguladoras, precisaria apenas convocar o procedimento da decisão coordenada, incluindo o maior número possível de atores da administração direta, a fim de "diluir" a influência da agência reguladora sobre a matéria sob deliberação. Novamente, a sinalização que a Lei nº 14.210/2021 emite acaba sendo contraditória com os seus objetivos declarados.

Por fim, em razão das inconsistências acima descritas — e de possivelmente outras mais, que a prática mostrará — a chamada "decisão coordenada" tem tudo para não produzir os resultados esperados pelos seus apressados admiradores. O grande erro da Lei nº 14.210/2021 é considerar simples um problema que é muito complexo e profundo. O incremento de eficiência da Administração Pública — a duração razoável do processo administrativo, direito fundamental do administrado à luz do artigo 5º, LXXVIII, da Constituição, é só um dos inúmeros aspectos da ideia de eficiência — passa, de um lado, pela revisão do processo administrativo visando à eliminação de formalidades desnecessárias em todos os âmbitos da Administração Pública e, de outro, pela mudança de mentalidade: da ideia de que todos os meios da ação administrativa devem ser regulados à ideia de liberdade de formas. Só se poderá cobrar eficiência (e cobrar eficiência é cobrar o atendimento de fins) se houver o reconhecimento da liberdade de formas, que é um outro nome para uma palavra que virou nome feio no nosso Direito Administrativo: discricionariedade.


[1] Ver vídeo divulgado em 01.10.2021 na conta do senador (@anastasia) na rede social Twitter.

[2] Trata-se do famoso caso Lage. Cf.: STF, Pleno, AI 52.181/GB, rel. min. Bilac Pinto, j. 14.11.1973, DJ 15.02.1974.

[3] Cf. "O controle externo não está ameaçado pelo PL 7.448/2017", Conjur, 13.04.2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-abr-13/opiniao-controle-externo-nao-ameacado-pl-74482017. Acesso em 07.10.2021.

[4] Ver o meu: Do controle da administração pública (São Paulo: IASP, 2017), cap. II.

[5] Ver o meu Do controle da administração pública (op. cit.), cap. III.

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