Opinião

A PEC 5/21 e a sua inconstitucionalidade chapada

Autor

  • Maicon Natan Volpi

    é especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMPSP) e analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.

13 de outubro de 2021, 19h12

Recentemente ganhou destaque na comunidade jurídica a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 5, deste ano, em especial após apresentação de parecer favorável à alteração pelo relator, deputado federal Paulo Magalhães [1]. A PEC 5/21 tem por objetivo promover alteração do artigo 130-A da CF/88, que trata do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

Aludida proposta de emenda, que por alguns autores foi chamada de PEC da Vingança [2], objetiva, em síntese, alterar a composição e atribuições do CNMP. Contudo, imenso debate se instalou acerca do disposto no §3º-F, que possui a seguinte redação: "O Conselho Nacional do Ministério Público poderá, por meio de procedimentos não disciplinares, rever ou desconstituir atos que constituam violação de dever funcional dos membros, após a devida apuração em procedimento disciplinar, ou, em procedimento próprio de controle, quando se observar a utilização do cargo com o objetivo de se interferir na ordem pública, na ordem política, na organização interna e na independência das instituições e dos órgãos constitucionais" [3].

Nas razões do parecer consta, entre outros pontos favoráveis à alteração, que "o Ministério Público não constitui Poder de Estado", e que "a competência congressual de intervir na composição de outros órgãos estatais constitui uma dimensão do controle político outorgado ao Parlamento" [4], pontuações estas que não afastam a inconstitucionalidade material da PEC, que nos parecer manifesta (ou chapada, parafraseando a expressão utilizada pelo ministro Sepúlveda Pertence).

Independentemente de o Ministério Público constituir poder de Estado, tema que gera bastante controvérsia doutrinária, o teor do dispositivo supracitado traz certa perplexidade, na medida em que a PEC procura subverter a ordem natural de controle dos atos jurídicos, estabelecido pelo próprio texto constitucional brasileiro como garantia fundamental, inclusive — logo, cláusula pétrea.

Nos termos do artigo 5º, inciso XXV, da CF/88, "a lei não excluirá da apreciação do poder judiciária lesão ou ameaça a direito" [5]. Trata-se da garantia fundamental de inafastabilidade da jurisdição, que outorga ao Poder Judiciário a responsabilidade pela sindicabilidade dos atos jurídicos frente aos direitos fundamentais, controle este exercido nos atos jurídicos decorrentes de uma relação jurídica privada, ou decorrente de qualquer outro fato ou relação jurídica.

Para além da dimensão tradicional positiva de acesso à Justiça, aludida garantia fundamental apresenta uma segunda dimensão negativa, na medida em que veda atos de controle político sobre atuação de órgãos essenciais à função da Justiça. Em síntese, o controle político sobre atos jurídicos mostra-se vedado, pois aludida tarefa é exclusiva daquele investido da jurisdição.

O pretenso controle proposto pela PEC sobre a atuação funcional do membro do Ministério Público tem por enfoque aspectos que estão relacionados à sua atividade fim, de natureza essencialmente jurídica, o qual já é exercido pelo Poder Judiciário, na qualidade de tutor dos direitos fundamentais, seja pela presença das cláusulas constitucionais de reserva de jurisdição, seja pela possibilidade daquele que se sente lesado pela atuação da instituição de se socorrer dos remédios constitucionais.

A proposta de emenda subverte essa ordem constitucional, por meio da outorga a órgão eminentemente administrativo do controle da atividade fim da instituição, tarefa cuja sindicabilidade só cabe ao Poder Judiciário, uma vez provocado, quando verificada lesão ou ameaça de lesão a direito fundamental. Qualquer outro tipo de pretenso controle representa indevida restrição à atuação da instituição, que possui status constitucional de órgão independente.

Importante destacar que aludida vedação de controle externo foi estabelecido de modo expresso pelo constituinte, que apresentou como princípio institucional a autonomia funcional [6], garantia institucional (logo, novamente, cláusula pétrea), que permite à instituição o exercício de suas funções constitucionais com liberdade em relação aos demais órgãos estatais.

Vale destacar ainda, como vem advertindo a doutrina, que o Ministério Público, por si só, possui a natureza jurídica de garantia fundamental institucional de acesso à justiça [7], na medida em que é o responsável constitucional por implementar os direitos e interesses jurídicos de titularidade difusa ou coletiva  entre eles o regime democrático.

Apesar de a instituição não constar do rol do artigo 5º da CF/88 como garantia fundamental expressa, o Ministério Público, por sua própria natureza e como instituição essencial à função jurisdicional, é cláusula pétrea implícita, pois retrata instituição que promove o acesso à Justiça dos interesses coletivos em sentido amplo  bem como dos individuais indisponíveis. A cláusula aberta do artigo 5º, §2º, da CF/88 reforça esse entendimento, e a expressa menção ao caráter permanente da instituição, destacado pelo artigo 127 da CF/88, rechaça-se qualquer dúvida quanto à referida natureza jurídica da instituição.

A clara inconstitucionalidade material da PEC 5 decorre do fato que ela esbarra nos pilares da Constituição, mais especificamente em garantias fundamentais, normas que foram alçadas à categoria de cláusulas petreficadas, insuscetíveis de alteração, frente à existência de limites materiais impostos no artigo 60, §4º, da CF/88, pelo poder constituinte originário ao poder constituinte derivado reformador.

Desse modo, seja por conta da garantia da inafastabilidade da jurisdição, como dimensão negativa quanto ao controle político de atos jurídicos, seja por conta da própria natureza jurídica do Ministério Público, como garantia fundamental institucional de acesso à Justiça, a PEC apresenta manifesta inconstitucionalidade material, na medida em que busca suprimir ou esvaziar garantias institucionais, em violação aos limites materiais do poder de reforma constitucional.


[1] Parecer de plenário à proposta de emenda à constituição nº 5, de 2021. Disponível em: https://anpr.org.br/images/2021/10/parecerPEC052021.pdf. Acessado em 07/10/2021.

[2] Dias, Danilo. PEC 5: É preciso salvar o Ministério Público antes que seja tarde demais. Revista Jurídica eletrônica JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/pec-5-salvar-o-ministerio-publico-07102021. Acessado em 07/10/2021

[3] Parecer de plenário à proposta de emenda à constituição nº 5, de 2021. Disponível em: https://anpr.org.br/images/2021/10/parecerPEC052021.pdf. Acessado em 07/10/2021.

[4] Parecer de plenário à proposta de emenda à constituição nº 5, de 2021. Disponível em: https://anpr.org.br/images/2021/10/parecerPEC052021.pdf. Acessado em 07/10/2021.

[6] "Artigo 127 – O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. § 1º – São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. § 2º – Ao Ministério Público é assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no artigo 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento" (destaque do autor). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acessado em 07/10/2021.

[7] Sobre o tema, vale destacar o brilhante estudo. Ritt, Eduardo. O Ministério Público brasileiro como guardião dos direitos fundamentais. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, nº 74, julho 2013 — dezembro 2013, páginas 31 a 60. Disponível em: http://www.amprs.com.br/public/arquivos/revista_artigo/arquivo_1401214363.pdf. Acessado em 07/10/2021.

Autores

  • é especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMPSP), atuou em convênio com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, atualmente exerce o cargo de analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!