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Os novos direitos processuais e prerrogativas diante do processo virtual

Autor

  • Zênia Cernov

    é advogada nas áreas trabalhista e administrativa. Autora dos livros "Estatuto da OAB Regulamento Geral e Código de Ética interpretados artigo por artigo" (LTr 1ª Ed./2016 e 2ªEd./2021) "Honorários Advocatícios" (LTr/2019) "Greve de Servidores Públicos" (LTr/2011) e "Marketing Jurídico e a nova publicidade na Advocacia: Comentários ao Provimento n° 205/2021" (Temática/2021). Membro da Academia Rondoniense de Letras Ciências e Artes. Coordenadora da Revista da Advocacia de Rondônia.

13 de outubro de 2021, 18h10

A pandemia da Covid-19 antecipou em aproximadamente 20 anos o prazo que se estimava para o Poder Judiciário tornar o processo completamente virtual, incluindo os atos tradicionalmente presenciais como a realização de audiências de instrução e de custódia, júri, sustentação oral etc. Nem a advocacia, nem o Poder Judiciário, estavam preparados em termos técnicos e em termos de regulamentação para essa antecipação.

A adaptação e a normatização se mostraram necessárias e urgentes, causando um verdadeiro caos no que diz respeito aos procedimentos: cada tribunal escolhia um método de permitir a sustentação oral virtual; cada magistrado escolhia um aplicativo para a realização das audiências; cada vara adotava um posicionamento quanto ao local onde seriam recebidas as partes e testemunhas; cada esfera do Judiciário normatizava de modo diferente o atendimento aos processos físicos e as salas de atendimento virtual.

E, com isso, nunca o acesso da advocacia a determinadas prerrogativas processuais foi tão violado. E o que é pior, sem normas prévias muito claras sobre o assunto. Algumas situações esdrúxulas podem ser apontadas:

a) Normativas que determinavam que competiria aos advogados das partes providenciar a intimação destas e das suas testemunhas para a audiência, haja vista os oficiais de Justiça estarem em regime de home office durante a pandemia;

b) Normativas que determinavam que competiria aos advogados das partes (e não ao Poder Judiciário, através de salas apropriadas para isso) providenciar o acesso a internet, câmeras de vídeo e demais equipamentos para que as partes e testemunhas que não possuíam acesso a essas tecnologias pudessem participar das audiências; com isso, os magistrados e serventuários ficavam livres de qualquer risco de contaminação, mas a advocacia era obrigada a trazer para dentro de seus escritórios as partes e testemunhas, exposta a esses risco;

c) Magistrados que imputam aos advogados o dever de garantir a incomunicabilidade das testemunhas nas audiências realizadas por meio virtual;

d) Magistrados que indeferem os pedidos de realização de audiência de instrução presencial;

e) Tribunal do Júri realizado por meio virtual, em inequívoco prejuízo à defesa, ainda que haja nos fóruns salas com distanciamento que permita a realização do ato presencial;

f) Tribunais que não transmitiam as sessões de julgamento em canais abertos que garantissem a publicidade prevista no CPC;

g) Tribunais que sequer permitiam a sustentação oral em tempo real, determinando que os advogados gravassem suas sustentações orais e remetessem à secretaria, de tal forma que o(a) advogado(a) sequer tinha a certeza de que a sustentação realmente foi assistida;

h) A clandestinidade de inquéritos policiais que tramitam exclusivamente por meio eletrônico e não estão inseridos em nenhum sistema de busca que permita o seu conhecimento.

É claro que são apenas alguns exemplos, longe de buscar exaurir a quantidade de problemas que foram gerados na virtualização apressada dos processos.

No entanto, uma coisa é preciso ter em mente: nasce uma nova geração de direitos processuais e prerrogativas, pelas quais a advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) precisará lutar diuturnamente.

Essa nova geração não é mais do que uma versão atualizada dos direitos processuais e prerrogativas da advocacia já previstos no Código de Processo Civil (CPC) e no Estatuto da OAB. Assim como o processo virtual se adaptou segundo a legislação já em vigor, também é dispensável que novas leis venham a estender ao processo virtual garantias já presentes na legislação em vigor.

Podemos citar aqui alguns exemplos de garantias:

1) Opção pela instrução presencial
Optar pela instrução presencial não deve ser tido como uma decisão do magistrado, mas, sim, um direito das partes, na prudente análise de seu patrono. A instrução virtual, por muitas vezes, pode trazer prejuízos ao direito de defesa. Veja-se que a audiência virtual não garante a contento a incomunicabilidade das testemunhas, o impedimento de acesso a dados e respostas que possam ser fornecidos às escondidas (como no próprio computador, celular ou um bilhete escrito) e outras questões; é óbvio que a presença diante do magistrado garante mais lisura à instrução; e em processos nos quais o depoimento testemunhal influi diretamente no resultado da demanda, o prejuízo à defesa é evidente. Assim, uma vez requerida a instrução processual, não pode o magistrado negar essa faculdade ao advogado, salvo se, fundamentadamente, demonstrar que as provas testemunhais não são elemento essencial à sua decisão.

2) Opção por ser recebido presencialmente pelo magistrado
O advogado tem a prerrogativa de ser recebido pelo magistrado (artigo 7º, inciso VIII: "Dirigir-se diretamente aos magistrados nas salas e gabinetes de trabalho, independentemente de horário previamente marcado ou outra condição, observando-se a ordem de chegada").

O fato de o processo tramitar pelo meio virtual não abala essa prerrogativa.

3) A incomunicabilidade das testemunhas é obrigação do Judiciário, e não dos patronos
Não tem sido incomum que magistrados imputem aos patronos das partes a obrigação de garantir a incomunicabilidade das testemunhas. Esse dever é do Judiciário.

A própria Resolução nº 357 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que garantiu a realização de audiências durante a pandemia, prevê em seu artigo 12, inciso V, que o magistrado deverá assegurar a incomunicabilidade das testemunhas, o que não poderia ser de outra forma, já que essa obrigação também é imputada ao magistrado no Código de Processo Civil (CPC, artigo 456) e no Código de Processo Penal (artigo 210, parágrafo único).

4) Acesso a sistemas de busca dos inquéritos virtuais
A advocacia criminalista tem enfrentado grave violação à prerrogativa de acesso aos autos de inquéritos policiais e investigações em andamento, em virtude do fato de que processos tramitam em sigilo e sem uma forma de busca que permita identificá-los.

O advogado Marco Vinicius de Assis Espindola, no artigo "A clandestinidade nas investigações e procedimentos eletrônicos criminais: as dificuldades no exercício da advocacia" (Revista da Advocacia de Rondônia, Ano II, nº 7), assevera: "Nada obstante, a transparência e a lealdade que se espera entre as partes não tem ocorrido. As investigações criminais que se encontram em sigilo, não apenas estão em sigilo, mas estão em forma 'clandestina', pois não se encontra a informação da existência de procedimento investigatório em face do indiciado. Isto é, no Estado de Rondônia, no sistema do Tribunal de Justiça, assim como na 1º Região Federal, não existem informações de que há existência dos determinados procedimentos já documentados, mas ainda em sigilo, afastando possível defesa em busca da verdade real".

De fato, é necessária a existência de mecanismos de busca de informações, para que esses inquéritos e investigações não se tornem clandestinos, impedindo a advocacia de utilizar-se de suas prerrogativas insculpidas no artigo 7º, inciso XXI, do Estatuto da OAB, quais sejam "assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração: a) apresentar razões e quesitos".

5) Acesso aos algoritmos dos softwares de inteligência artificial
A inteligência artificial está cada vez mais presente no Poder Judiciário, e nossos tribunais já se utilizam de robôs que, a partir de algoritmos, fazem pesquisas, comparações com dados e apontam sugestões de soluções.

Qual o caminho que esses robôs utilizaram no processo, não raro, é de extrema importância para a advocacia, principalmente quando há um enquadramento errôneo. Não é raro um processo ser equivocadamente cadastrado como pertencente a determinado tema repetitivo no Superior Tribunal de Justiça ou determinada repercussão geral no Supremo Tribunal Federal, dificultando o conhecimento do verdadeiro conteúdo do processo.

Por tal motivo, o princípio da publicidade deve se aplicar a esses algoritmos, até mesmo para que possam, eventualmente, ser impugnados, tanto o algoritmo em si quanto o enquadramento do processo.                       

Esses exemplos, é claro, são só uma introdução ao tema tão presente no dia a dia da advocacia, que são os efeitos da virtualização dos processos.

O que não se pode deixar de lado é a luta constante para que garantias processuais e prerrogativas não sejam violadas sob a escusa dos efeitos da pandemia, ou de suposta falta de legislação própria. Tratam-se de garantias e prerrogativas já dispostas na legislação processual e no Estatuto da OAB, aplicáveis ao processo virtual.

Autores

  • é advogada nas áreas trabalhista e administrativa, autora dos livros "Greve de Servidores Públicos" (LTr, 2011), "Estatuto da OAB, Regulamento Geral e Código de Ética interpretados" (LTr, 2016) e "Honorários Advocatícios" (LTr, 2019), membro da Academia Rondoniense de Letras, Ciências e Artes e coordenadora da Revista da Advocacia de Rondônia.

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