Freio de arrumação

Nunca estivemos tão vizinhos da ditadura quando com Moro e Dallagnol, diz Gilmar

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13 de outubro de 2021, 18h21

*Essa é a continuação da entrevista de Gilmar Mendes ao jornalista Mario Vitor Santos para o site Brasil 247. Clique aqui para ler a parte 1.

O decano do STF, ministro Gilmar Mendes, também tratou nesta entrevista do suposto ativismo judicial por parte dos ministros e fez uma avaliação positiva da atuação da Corte no contexto do combate à crise sanitária. 

Para Gilmar, se não fosse o Supremo, o impacto negativo provocado pelo avanço da Covid-19 teria sido muito maior. "Naquele ambiente de negacionismo, de confusão administrativa, de impasses e tudo o mais, o que o Tribunal fez? Reconheceu que aqui havia uma competência concorrente entre União, estados e municípios, e que, se a União se ausentava do processo, estados e municípios tinham o poder de estabelecer regras, por exemplo, seguindo a orientação da OMS", lembrou.

O decano também tratou da simbiose entre setores da imprensa com o consórcio da "lava jato" para emparedar ministros do STF. "Tenho dito, sem exagero, que com todos esses arroubos de Bolsonaro, 'Ah, golpe', na verdade, nós nunca estivemos vizinhos, tão vizinhos de uma ditadura quando com Moro e Dallagnol lá em Curitiba", explicou. 

Leia abaixo os principais trechos segunda parte da entrevista:

Spacca
Mario Vitor Santos Há quem critique um excessivo ativismo judicial do STF na vida nacional. Vimos isso inclusive na própria pandemia, na própria gestão da vacinação e de outras providências relativas à distribuição de poderes com os estados e municípios. Não há um desvio nesse tipo de padrão?
Gilmar Mendes — Temos que ser muito cautelosos em relação a determinados temas, e reconhecer a capacidade que tem o Congresso e o Executivo de darem conformação a dados assuntos e escolherem aquela solução. Se houver lesão muito clara aos direitos fundamentais, aí sim cabe a nós uma intervenção.

No tema da pandemia, tenho a impressão de que, se não fosse o STF, não estaríamos "só" com 600 mil mortes. Muito provavelmente estaríamos com 1 milhão de mortes. Porque naquele ambiente de negacionismo, de confusão administrativa, de impasses e tudo o mais, o que o Tribunal fez? Reconheceu que aqui havia uma competência concorrente entre União, estados e municípios, e que, se a União se ausentava do processo, estados e municípios tinham o poder de estabelecer regras, por exemplo, seguindo a orientação da OMS.

Tivemos aquilo que também vai ficar para a história, certamente. Uma gestão desastrada a todos os títulos, no ambiente da saúde, que agora a CPI acaba de revelar. Leva-se o general Pazzuelo para essa função, que seria um especialista em logística, mas que não tinha sequer o pejo de dizer que não sabia o que era o SUS. E que é de alguma forma coautor desse enorme desastre. Veio com o título de ser um especialista de logística do Exército brasileiro. Hoje essa expressão se tornou uma maldição. Se alguém disser no seu ambiente que é especialista em logística, você vai se lembrar do Pazzuelo e certamente vai achar que há uma ameaça por aí quanto a uma boa gestão.

O senhor mencionou a forma de seleção do PGR pela lista tríplice. Agora fale um pouco da seleção de ministros do Supremo. O que lhe parece essa seleção, ministro?
— Essa é uma questão que é problemática, aqui e alhures, em qualquer lugar do mundo. Ao se optar por ter uma jurisdição constitucional, você tem a possibilidade de estabelecer tempo, mandato, ou você pode estabelecer limite de idade. Nos Estados Unidos, como se sabe, o paradigma maior de uma Suprema Corte é a ideia de ficar lá enquanto bem servir. Portanto, enquanto vivo for e consciente estiver, a pessoa continua.

Em tempos outros sabemos, o Senado, no nosso caso, atuava menos. Agora temos visto muitas críticas à Casa legislativa, inclusive esse impasse em torno da indicação do André Mendonça. O PT fez as suas indicações segundo os seus critérios. Até quando discuto com colegas no exterior, digo, por exemplo, que naquele episódio que tivemos do HC em torno do Lula, e que foi determinante para que o Lula fosse à prisão, tivemos cinco votos a favor do Lula. O dos ministros Celso, Marco Aurélio e o meu, além do ministro Lewandowski e o do ministro Toffoli. E seis votos contra o Lula, pela prisão, todos de indicados pelo PT. Hoje se eu fosse brincar com você, diria assim: "Pergunte ao PT sobre os critérios que ele adotava para indicar ministros do Supremo Tribunal Federal" e alguém vai dizer: "Olha, ele indicava pessoas extremamente imparciais, tanto é que levaram Lula à prisão". Em suma, esse é um debate bastante interessante e bastante curioso.

Agora o STF passa por um processo de avaliação. As suas decisões são colocadas em xeque. O Congresso pode em última instância votar emendas constitucionais, substituir eventualmente orientações do Tribunal.

O debate de fundo aqui, ministro, é a discussão a respeito de às vezes o Tribunal ser aprisionado. O país não pode deixar de discutir isso a partir da experiência que tivemos, quando a "república de Curitiba" se apropriou, na verdade, pelo menos por um tempo, do STF…
Eu não queria ser tão contundente, mas a "república de Curitiba" é construção do PT. A lei, esse modelo, procurador, isso tudo é construção do PT, de alguma forma, voluntária ou involuntariamente. Quem não se lembra daquela figura mal enjambrada do Luiz Francisco [Fernandes de Sousa], que atuava como braço de oposição ao governo Fernando Henrique. Isso aí criou um DNA.

Sobretudo, essas leis últimas, de lavagem, de delação. O modelo do PGR escolhido [leia aqui a entrevista com o petista Paulo Teixeira]. Então a mim me parece lawfare. Não no Supremo. Em algum momento o Tribunal pode ter errado aqui em uma ou outra decisão. Mas o modelo básico foi construído a partir dessa legislação, que é aprovada em governos do PT, com Ministério da Justiça do PT, Casa Civil do PT.

A mídia foi uma espécie de pilar fundamental para que a "lava jato" pudesse, digamos assim, ter a influência que acabou tendo? O CNMP está examinando processos em relação ao comportamento dos procuradores. E em relação à mídia, o que há a entender e a fazer no seu papel junto à "lava jato"?
Tenho a impressão que a derrocada do sistema político naquele momento fez com que a mídia tomasse esse papel e elegesse esses heróis. Inclusive em relação à afirmação que fiz anteriormente, só para deixar claro, e também para que você possa refletir, o que eu quero dizer é que essa legislação toda que foi se desenhando em nome do combate à corrupção, sem maiores cuidados e tal, foi obra dos governos do PT, especialmente do governo da presidente Dilma Roussef.

É uma discussão muito incômoda, certamente, para o PT, mas a mídia fez parte desse processo e encorajou, e constrangia, inclusive, o Supremo. Quando decidíamos alguma coisa, se dizia: "Está se decidindo contra a 'lava jato', que virou algum tipo de entidade, a ponto dessa gente ter apresentado as dez medidas ao Congresso, de combate à corrupção. Medidas autoritárias como a supressão do Habeas Corpus ou a permissão para usar a prova ilícita.

É muito interessante ver esse pessoal agora a dizer que a "vaza jato" é algo lastreado em prova ilícita. Mas, não eram vocês que queriam o uso de prova ilícita nos processos?

Agora, quem desatou esse nó? Quem enfrentou isso e desmontou todo esse quadro? Foi o Supremo!

A mídia incensava essas pessoas. As consultorias que importantes jornalistas davam para a "lava jato": "Divulgamos isso ou não? Fazemos isso ou aquilo?" E isso depois ia para os jornais. A mídia não fez essa revisão. Mas acho que todos nós devemos fazer essa autocrítica. Acho que é natural que façamos, agora. Vamos ser justos. Se de fato hoje estamos vivendo um ambiente de Estado de Direito de não lawfare, graças à atuação do Supremo Tribunal Federal. Depois daquela decisão de condenação do Lula, lá em Curitiba, muitos elogios na televisão, nas revistas e tudo o mais, fiquei uma voz isolada, e pagando um preço alto. Como você sabe, tenho lá no meu gabinete de quando em vez, tem uma capa da Veja que diz "O juiz que é contra o Brasil" ou algo assim. De vez em quando eu recebo as pessoas da Veja e mostro isso lá, e rio com eles. Então é esse o quadro de massacre que a gente vivenciou.

Tenho dito, sem exagero, que com todos esses arroubos de Bolsonaro, "Ah, golpe", na verdade, nunca estivemos tão vizinhos de uma ditadura quando com Moro e Dallagnol lá em Curitiba.

Quando o ministro Paulo Guedes um dia esteve no meu gabinete, acho que para discutir uma dessas questões econômicas junto com o procurador-geral da Fazenda, e com uma assessora. Como todos sabem, é uma figura muito simpática e muito loquaz. Então ele contava como foi a candidatura do Bolsonaro, as vicissitudes e tudo o mais. Acho que entre o primeiro e o segundo turno, Bolsonaro disse que ele seria o czar da Economia. Então ele teria dito ao presidente Bolsonaro que, então, precisava de alguém para cuidar de lei e ordem. Como ele gosta de inglês falou "law and order", e pediu autorização para consultar Moro para saber se ele aceitaria ser ministro da Justiça.

Ele estava no meio daquela narrativa todo entusiasmado com o seu papel na história. Eu disse: "Ministro, pare aí, stop, deixa eu lhe dizer uma coisa. Neste momento, muitas pessoas importantes no Congresso prognosticam que o governo terá dificuldade, talvez não acabe e tudo o mais. Coloque isso no seu currículo". Ele ficou sem entender, e eu reforcei: "Coloque no seu currículo que o senhor tirou Moro de Curitiba, talvez tenha sido a sua maior contribuição ao Brasil". Ele levou um susto. Depois tive uma conversa com o presidente Bolsonaro, e ele ia dizendo: "Olha, nós não tínhamos experiência de governo, não tínhamos passado por um governo, não tínhamos uma equipe toda. Ela bem formada e tal, cometemos erros, por exemplo, ter designado Moro para ser ministro da Justiça". Eu disse: "Presidente, vai ser reconhecido ainda como uma grande contribuição o senhor ter tirado Moro de Curitiba e tê-lo devolvido para o nada".  Na verdade, existia uma estrutura ditatorial que manipulava todo o sistema.

Gravíssimo. Ministro…
— E com grande apoio da mídia.

Por quê?
— Não vou eu fazer de novo psicanálise aqui, mas a mídia fez essa adesão, pergunte aos seus colegas. Veja, ninguém fala hoje neste fenômeno Janot. E voltaram com a ideia esses dias tentando com a ideia da lista. O Janot teve, e contou infelizmente com o deferimento do ministro Teori Zavascki, a petulância de pedir duas investigações contra dois ministros do STJ: o presidente, ministro [Francisco] Falcão, e o ministro Marcelo Navarro. E por quê? Ah, porque a Odebrecht teria indicado Navarro junto à Dilma e coisa do tipo. Provas impossíveis. Mas abriram duas investigações no Supremo contra essas pessoas. Você imagina qual foi o resultado dessa investigação, ao fim e ao cabo: provou o que tinha que provar, que não existia esse tipo de interferência. Não obstante, sabe qual foi o resultado? O STJ capitulou-se, foi capturado, ficou com medo. Portanto, tínhamos um modelo de desenho autoritário com esse tipo de gente. É disso que estamos a falar. Então quem participou da construção desse modelo ou quem deu instrumentos para isso, tem que fazer um mea culpa. E a mídia participou disso e apoiou.

Imagine o presidente Lula. Bom, não quero diminuir o seu sacrifício, mas imagine o calvário do presidente Lula com tantos dias na prisão, família, outros perseguidos pela "lava jato" de forma ilegal. Imagine também essas outras pessoas…
— Veja, disso tudo, acho graça a essa altura. Como acho graça dessa capa da Veja, "o juiz que contraria o Brasil", que é contra o Brasil. Quer dizer: certamente o Policarpo [jornalista Policarpo Júnior], essa rapaziada que faz esse tipo de coisa hoje, deve estar envergonhada. Felizmente, estamos aqui ativos, sãos, tranquilos, para dizer isso, não é? Vocês erraram e vocês cometeram erros muito crassos e não é assim que se comporta. Acho que é um aprendizado. Espero que a democracia saia mais forte disso. Só para você lembrar também: todo aquele ambiente que era coberto pela mídia. Hoje a gente não fala mais nisso, das conduções coercitivas. Você se lembra do episódio do presidente Lula lá no aeroporto e tudo o mais. Quem derrubou isto no Supremo Tribunal Federal fomos nós. Inicialmente uma liminar minha. E depois o enfrentamento no Plenário, não é?

O senhor manifestou na morte do neto do presidente Lula sua solidariedade a ele. Qual a sua relação com o ex-presidente e como é que ela é no plano pessoal.
Temos uma relação de muita altivez, muito cordial. É claro que não nos falamos mais nesses tempos. A não ser naquele episódio da morte do neto. Ali eu liguei para o Gilberto Carvalho. Ele estava preso e nos falamos. Tivemos, como disse, durante o governo dele, momentos de muita cooperação, inclusive com o STF. Já lembrei do pacto republicano. Mas, para você ter uma ideia de como é essa relação. A minha mulher tinha uma relação de muita amizade com a dona Marisa. Um dia você há de se lembrar. O presidente Lula sofreu uma ameaça de infarto em Recife e veio para cá, para Brasília. Ligamos para saber como ele estava. Ele nos chamou e ficamos lá praticamente até a madrugada daquele dia. Tínhamos uma relação de muito boa convivência.

Quando tinha discussão sobre indicação de ministro do Supremo, normalmente, não diria que era consultado, mas era avisado e como isso ia se dar. Portanto, na verdade, tínhamos um diálogo muito altivo, a despeito de vocês saberem que a imprensa sempre chamava a atenção, dizendo que eu era até um líder da bancada de oposição ao governo do PT no STF. Nunca partidarizei esse tipo de temática e sempre entendi que o presidente cumpria um papel institucional importante e que dava voz para esse quadro do Brasil desigual. E por isso sempre tivemos um diálogo muito respeitoso. Me lembro que, quando saiu a notícia desse meu telefonema, o ex-primeiro-ministro de Portugal [José] Sócrates disse que ficou impressionado. Que aquilo era o Brasil que tinha se perdido.

Precisamos saber o que aconteceu nessa ligação entre mídia e "lava jato". Nas revelações da "vaza jato", foram apagadas as partes relativas às conversas de jornalistas com membros da operação. Isso precisava vir à tona para que esse meandro, assim como foi feito com os procuradores e o juiz Sergio Moro, isso também fosse…
— Seria uma boa contribuição. Acho que é uma questão realmente relevante. Sem esse apoio incondicional da mídia, esse fenômeno não teria ocorrido. E havia esse propósito inequívoco de constranger qualquer força que fosse crítica. Uma estrutura muito viciada. Tenho dito que fico muito desconfiado. E isso, na verdade, é do Millôr [Fernandes], de gente que ganha dinheiro com seu ideal. Imagino que havia propósitos aqui. Os combatentes da corrupção gostavam de dinheiro. Houve esse episódio do caso da Fundação Dallagnol, de R$ 2 bilhões, acerto com os clientes do [Modesto] Carvalhosa. Quer dizer, toda essa história muito estranha, cada acordo fica 20% para o Ministério Público. Quer dizer: é uma mistura de fundo eleitoral.

Aqui no Distrito Federal, o PGR, Aras, reconheceu na tal operação greenfield, que estavam fazendo a Transparência Internacional participar de uma gestão de um fundo junto com um braço da FGV, que envolvia Joaquim Falcão e coisa do tipo para gerir dinheiro. Mmas era coisa assim de R$ 3 bilhões, sabe?

Coisas estranhas todas estavam a ocorrer. Quer dizer. Não só era indevido, mas estavam criando condições de terem partido político. Esse fundo do Dalagnol seria maior do que qualquer fundo partidário. Seria maior que o fundo que a Fundação Calouste Gulbenkian, que cumpre um papel importantíssimo em Portugal e na Europa para a cultura. Teriam mais dinheiro que essa fundação para fazer política. Havia um projeto político atrás disso, e a mídia subscreveu.

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