A ADI 5.595 e mais dinheiro para a saúde nas mãos do STF
12 de outubro de 2021, 8h00
O assunto pode parecer complexo, mas, na realidade, é bastante simples de entender. Tentarei expor de modo didático.
Ocorre que antes da Emenda do Teto de Gastos, havia sido aprovada a EC 86, em 17 de março de 2015, que, nos seus arts. 2º e 3º, havia reduzido estes gastos em relação à anterior EC 29 (art. 198, §2º, I e §3º). O art. 2º da EC 86 estabelecia um escalonamento progressivo para estas despesas, que deveria ser de 13,2% para o ano de 2016 e assim sucessivamente, até chegar a 15% em 2021 — esse artigo foi expressamente revogado pela EC 95 (art. 3º). E o art. 3º estabelecia que o valor arrecadado de royalties do petróleo e gás passaria a compor a base de cálculo para esse financiamento da saúde.
Nesta EC 86 havia dois problemas: (1) a norma anteriormente vigente estabelecia que a União aplicaria anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, o montante correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, acrescido de, no mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do PIB ocorrida no ano anterior ao da lei orçamentária anual (art. 5º, LC 141/12), com uma espécie de trava quando o PIB fosse negativo, o que foi revogado pelo art. 2º da EC 86; e (2) os recursos dos royalties eram aplicados em acréscimo ao mínimo obrigatório previsto na Constituição (art. 4º, Lei 12.858/13), o que foi alterado pelo art. 3º da EC 86.
Nesse sentido, há uma violação ao princípio da vedação do retrocesso social, já reconhecido pelo STF em diversas ocasiões, o que foi muito bem analisado por Marina Tanganelli Bellegarde, em obra monográfica.
Em 20 de setembro de 2016, a Procuradoria Geral da República (PGR) ingressou com a ADI 5.595 pedindo a declaração de inconstitucionalidade desses dois artigos da EC 86, distribuída ao ministro Ricardo Lewandowski para relatar. O pedido de liminar inaudita altera pars não foi concedido. A manifestação da PGR em 24 de novembro de 2016 foi pela concessão imediata da liminar. Em 31 de agosto de 2017 foi concedida pelo ministro Lewandowski a liminar pleiteada, suspendendo os efeitos financeiros dos arts. 2º e 3º da EC 86.
Em 19 de outubro de 2017 o processo foi colocado em pauta de julgamento e realizadas as sustentações orais — uma das quais tive a honra de fazer, pro bono e pro societatis, representando a Associação do Ministério Público de Contas (Ampcon), amicus curiae no processo. Na sequência, foi suspenso o julgamento.
Em face da pandemia, o prosseguimento desse julgamento ocorreu sob o sistema de Plenário virtual em 14 de abril de 2020. Um pouco antes, Élida Graziane Pinto e eu escrevemos na Folha de S.Paulo alertando sobre o problema. No julgamento foram apurados os seguintes votos: ministros Ricardo Lewandowski (relator), Edson Fachin e Marco Aurélio votaram pela procedência do pedido inicial, declarando a inconstitucionalidade dos arts. 2º e 3º da EC 86 e confirmando a liminar deferida. Os ministros Gilmar Mendes e Luiz Fux votaram pela improcedência quanto ao art. 2º da EC 86, considerando prejudicado o pedido, pois já havia sido revogado. O ministro Alexandre de Moraes votou pela improcedência integral da ação. A ministra Cármen Lúcia acompanhou o relator com ressalvas. Foi formulado um pedido de vista dos autos pelo ministro Dias Toffoli.
O prosseguimento do julgamento está pautado para os próximos dias, sob o placar de: (a) pela inconstitucionalidade do art. 2º: 4 votos (ministros Lewandowski, Fachin, Marco Aurélio e Cármen) x 3 votos (ministros Gilmar, Fux e Alexandre) e (b) pela inconstitucionalidade do art. 3º: 6 votos (ministros Lewandowski, Fachin, Marco Aurélio, Gilmar, Fux e Cármen) x 1 voto (ministro Alexandre).
Faltam votar os ministros Toffoli, Barroso, Weber e Kassio.
Expostos a controvérsia e o placar do julgamento, o que está em debate?
Primeiro, a questão do financiamento da saúde pública, isto é, do sistema SUS, que tem sido mais importante do que nunca nestes tempos pandêmicos, a despeito das diversas tentativas de maracutaias, como revela a excelente reportagem de Ana Clara Costa para a revista Piauí. Como se vê ictu oculi, há um claríssimo drible ao princípio da vedação ao retrocesso. Tão claro que me traz à mente uma frase do ministro Francisco Rezek, ao analisar caso em que o "fumus boni juris" saltava aos olhos: Neste caso, a fumaça do bom direito da tese é tão densa que não sei como ainda nos enxergamos uns aos outros neste Plenário (ADI-MC 37).
Segundo, especificamente quanto ao art. 2º da EC 86. É conhecida a jurisprudência do STF acerca da prejudicialidade da declaração de inconstitucionalidade de normas revogadas. Todavia, no caso concreto, o art. 2º da EC 86, a despeito de ter sido expressamente revogado pela EC 95 (art. 3º), projeta seus efeitos para o futuro! Eis a diferença. Como a Emenda do Teto de Gastos congelou por 20 anos os valores a serem gastos com saúde (ADCT, art. 110, II), o ponto de partida desse congelamento é extremamente relevante, e deve ser apreciado e julgado. Uma coisa é congelar o valor inicial em R$ 100,00; outra coisa completamente diferente será o fazer em R$ 110,00. Há uma projeção intertemporal futura que deve ser apreciada e que impactará o financiamento da saúde até o futuro e remoto ano de 2036.
Terceiro, especificamente quanto ao art. 3º da EC 86. Uma coisa é ter esses recursos aplicados em acréscimo ao mínimo obrigatório previsto na Constituição; outra coisa é contabilizá-los dentro do referido mínimo obrigatório. Trata-se de uma inconstitucional modificação de base de cálculo, que afeta o financiamento do direito à saúde.
Muito mais poderia ser dito, mas, para bom entendedor breves linhas são suficientes. Paro por aqui.
A responsabilidade do STF é muito grande na análise dessa ADI. Há sempre a possibilidade de análise formalista da questão — e argumentos não faltarão nessa linha —, mas a análise pode ser substancialista e enfrentá-la sob a ótica da macrojustiça, considerada como uma forma de litigância envolvendo direitos difusos e não apenas pluri-individuais.
Como votarão os ministros Dias Toffoli, Roberto Barroso, Rosa Weber e Kassio Nunes?
Apenas uma coisa é certa: todos precisaremos do SUS ao longo desse período. Quem quer arriscar mais 15 anos com subfinanciamento da saúde pública?
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