Contas à Vista

A ADI 5.595 e mais dinheiro para a saúde nas mãos do STF

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

12 de outubro de 2021, 8h00

O assunto pode parecer complexo, mas, na realidade, é bastante simples de entender. Tentarei expor de modo didático.

Spacca
Quando foi aprovada a EC 95, em 15 de dezembro de 2016, conhecida como Emenda do Teto de Gastos, foi criada uma regra que congelava os gastos públicos com saúde no patamar de 2017 (ADCT, art. 110, I), sendo que, até o ano de 2036, esta despesa será apenas corrigida pelo IPCA (ADCT, art. 110, II).

Ocorre que antes da Emenda do Teto de Gastos, havia sido aprovada a EC 86, em 17 de março de 2015, que, nos seus arts. 2º e 3º, havia reduzido estes gastos em relação à anterior EC 29 (art. 198, §2º, I e §3º). O art. 2º da EC 86 estabelecia um escalonamento progressivo para estas despesas, que deveria ser de 13,2% para o ano de 2016 e assim sucessivamente, até chegar a 15% em 2021 esse artigo foi expressamente revogado pela EC 95 (art. 3º). E o art. 3º estabelecia que o valor arrecadado de royalties do petróleo e gás passaria a compor a base de cálculo para esse financiamento da saúde.

Nesta EC 86 havia dois problemas: (1) a norma anteriormente vigente estabelecia que a União aplicaria anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, o montante correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, acrescido de, no mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do PIB ocorrida no ano anterior ao da lei orçamentária anual (art. 5º, LC 141/12), com uma espécie de trava quando o PIB fosse negativo, o que foi revogado pelo art. 2º da EC 86; e (2) os recursos dos royalties eram aplicados em acréscimo ao mínimo obrigatório previsto na Constituição (art. 4º, Lei 12.858/13), o que foi alterado pelo art. 3º da EC 86.

Nesse sentido, há uma violação ao princípio da vedação do retrocesso social, já reconhecido pelo STF em diversas ocasiões, o que foi muito bem analisado por Marina Tanganelli Bellegarde, em obra monográfica.

Em 20 de setembro de 2016, a Procuradoria Geral da República (PGR) ingressou com a ADI 5.595 pedindo a declaração de inconstitucionalidade desses dois artigos da EC 86, distribuída ao ministro Ricardo Lewandowski para relatar. O pedido de liminar inaudita altera pars não foi concedido. A manifestação da PGR em 24 de novembro de 2016 foi pela concessão imediata da liminar. Em 31 de agosto de 2017 foi concedida pelo ministro Lewandowski a liminar pleiteada, suspendendo os efeitos financeiros dos arts. 2º e 3º da EC 86.

Em 19 de outubro de 2017 o processo foi colocado em pauta de julgamento e realizadas as sustentações orais uma das quais tive a honra de fazer, pro bono e pro societatis, representando a Associação do Ministério Público de Contas (Ampcon), amicus curiae no processo. Na sequência, foi suspenso o julgamento.

Em face da pandemia, o prosseguimento desse julgamento ocorreu sob o sistema de Plenário virtual em 14 de abril de 2020. Um pouco antes, Élida Graziane Pinto e eu escrevemos na Folha de S.Paulo alertando sobre o problema. No julgamento foram apurados os seguintes votos: ministros Ricardo Lewandowski (relator), Edson Fachin e Marco Aurélio votaram pela procedência do pedido inicial, declarando a inconstitucionalidade dos arts. 2º e 3º da EC 86 e confirmando a liminar deferida. Os ministros Gilmar Mendes e Luiz Fux votaram pela improcedência quanto ao art. 2º da EC 86, considerando prejudicado o pedido, pois já havia sido revogado. O ministro Alexandre de Moraes votou pela improcedência integral da ação. A ministra Cármen Lúcia acompanhou o relator com ressalvas. Foi formulado um pedido de vista dos autos pelo ministro Dias Toffoli.

O prosseguimento do julgamento está pautado para os próximos dias, sob o placar de: (a) pela inconstitucionalidade do art. 2º: 4 votos (ministros Lewandowski, Fachin, Marco Aurélio e Cármen) x 3 votos (ministros Gilmar, Fux e Alexandre) e (b) pela inconstitucionalidade do art. 3º: 6 votos (ministros Lewandowski, Fachin, Marco Aurélio, Gilmar, Fux e Cármen) x 1 voto (ministro Alexandre).

Faltam votar os ministros Toffoli, Barroso, Weber e Kassio.

Expostos a controvérsia e o placar do julgamento, o que está em debate?

Primeiro, a questão do financiamento da saúde pública, isto é, do sistema SUS, que tem sido mais importante do que nunca nestes tempos pandêmicos, a despeito das diversas tentativas de maracutaias, como revela a excelente reportagem de Ana Clara Costa para a revista Piauí. Como se vê ictu oculi, há um claríssimo drible ao princípio da vedação ao retrocesso. Tão claro que me traz à mente uma frase do ministro Francisco Rezek, ao analisar caso em que o "fumus boni juris" saltava aos olhos: Neste caso, a fumaça do bom direito da tese é tão densa que não sei como ainda nos enxergamos uns aos outros neste Plenário (ADI-MC 37).

Segundo, especificamente quanto ao art. 2º da EC 86. É conhecida a jurisprudência do STF acerca da prejudicialidade da declaração de inconstitucionalidade de normas revogadas. Todavia, no caso concreto, o art. 2º da EC 86, a despeito de ter sido expressamente revogado pela EC 95 (art. 3º), projeta seus efeitos para o futuro! Eis a diferença. Como a Emenda do Teto de Gastos congelou por 20 anos os valores a serem gastos com saúde (ADCT, art. 110, II), o ponto de partida desse congelamento é extremamente relevante, e deve ser apreciado e julgado. Uma coisa é congelar o valor inicial em R$ 100,00; outra coisa completamente diferente será o fazer em R$ 110,00. Há uma projeção intertemporal futura que deve ser apreciada e que impactará o financiamento da saúde até o futuro e remoto ano de 2036.

Terceiro, especificamente quanto ao art. 3º da EC 86. Uma coisa é ter esses recursos aplicados em acréscimo ao mínimo obrigatório previsto na Constituição; outra coisa é contabilizá-los dentro do referido mínimo obrigatório. Trata-se de uma inconstitucional modificação de base de cálculo, que afeta o financiamento do direito à saúde.

Muito mais poderia ser dito, mas, para bom entendedor breves linhas são suficientes. Paro por aqui.

A responsabilidade do STF é muito grande na análise dessa ADI. Há sempre a possibilidade de análise formalista da questão e argumentos não faltarão nessa linha , mas a análise pode ser substancialista e enfrentá-la sob a ótica da macrojustiça, considerada como uma forma de litigância envolvendo direitos difusos e não apenas pluri-individuais.

Como votarão os ministros Dias Toffoli, Roberto Barroso, Rosa Weber e Kassio Nunes?

Apenas uma coisa é certa: todos precisaremos do SUS ao longo desse período. Quem quer arriscar mais 15 anos com subfinanciamento da saúde pública?

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    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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