Opinião

A venda de milhas aéreas pelos consumidores: o que dizem os tribunais?

Autor

  • Sara Tironi

    é advogada no escritório Grinberg Cordovil Advogados possui LLM e MA em Análise Econômica do Direito pelas Universidades de Hamburgo e Viena e mestra em Direito do Estado.

11 de outubro de 2021, 18h16

Os consumidores brasileiros estão cada vez mais engajados com programas de fidelidade. É o que diz a Associação Brasileira das Empresas do Mercado de Fidelização (Abemf), que constatou que a base de usuários de planos de fidelização recebeu o cadastro de 165,4 milhões novos clientes apenas no primeiro semestre de 2021 — crescimento de 11,1% em comparação com o primeiro trimestre de 2020.

Os programas de fidelidade, por sua vez, emitem a cada ano volumes ainda maiores de pontos e milhas que são vendidos para as companhias aéreas e outros parceiros, como instituições financeiras e grandes varejistas. Aliás, o próprio conceito de programa de fidelidade já não é mais cabível, já que os programas se organizam como verdadeiros programas de coalizão em que milhas são acumuladas e resgatadas por esses diversos players, e não somente pelas próprias companhias aéreas.

Para ilustrar o crescimento do setor, dados públicos da antiga Multiplus (atual Latam Pass) e Smiles indicam que os programas emitiram, em 2018, 194 bilhões de milhas. Já em 2020, mesmo em meio a uma grave crise econômica, a Abemf registrou que apenas no primeiro semestre os programas de fidelidade associados emitiram 113,5 bilhões de pontos/milhas. Deixando ainda mais claro que esse é um mercado em clara expansão, a despeito do contexto completamente adverso ao consumidor, os mesmos indicadores da Abemf informam que no segundo trimestre de 2021 foram emitidos 70,3 bilhões de pontos/milhas, número 67,6% maior que a quantidade emitida no segundo trimestre de 2020.

Em um mercado inundado por milhas, os consumidores perceberam a necessidade de entender seu real valor e a melhor forma de as utilizar, até porque há programas cujo prazo para expiração é bastante limitado (alguns chegam a meros seis meses) e nem sempre é possível programar viagens ou mesmo compras relevantes nesse curto espaço de tempo.

Uma opção cada vez mais acessível para quem deseja obter uma renda extra (ou apenas evitar jogar dinheiro fora perdendo pontos expirados) é a revenda das milhas para outros consumidores. Isso tem se tornado cada vez mais fácil com as soluções inovadoras trazidas pelas novas plataformas digitais, responsáveis por facilitar o match entre interessados em converter as milhas em uma renda extra e aqueles dispostos a comprar passagens aéreas emitidas com esses recursos.

No entanto, apesar de o livre uso das milhas, inclusive por meio da revenda, representar claros ganhos aos consumidores, os programas de fidelidade relacionados a companhias de aviação vêm adotando uma série de medidas restritivas para coibi-lo. As restrições vão desde a inclusão de cláusulas de inalienabilidade nos contratos de adesão aos planos de fidelidade e a limitação do número de beneficiários de passagens aéreas emitidas em cada conta [1], até a aplicação de penalidades severas, como o cancelamento de passagens resgatadas por terceiros e mesmo a suspensão e banimento de contas, com perda integral das milhas disponíveis e status atingido no programa.

Diante desses novos conflitos, o judiciário passou a ser acionado em diferentes oportunidades nos últimos anos para se manifestar sobre a questão. Porém, por se tratar de tema bastante recente, as discussões ainda estão mais restritas à primeira instância, com pontuais decisões exaradas pelos Tribunais de Justiça. Não há ainda jurisprudência consolidada sobre um tema que exige a aplicação de legislação antiga a um mercado digital e ainda em construção.

De modo geral, entretanto, consumidores reclamam de abusividade nas cláusulas que restringem a transferência ou uso de milhas em favor de terceiros, quer pela imposição de limites e custos adicionais, quer pela aplicação de penalidades. Para deliberar sobre o assunto, os órgãos julgadores buscam sempre superar a seguinte questão, posta de forma simples: os consumidores ganham ou compram suas milhas dos programas de fidelidade?

A pergunta é relevante pois, se seguida a primeira hipótese (i.e., as milhas são "bônus" que os consumidores ganham dos programas de fidelidade), as cláusulas seriam legítimas, visto que dispositivos restritivos de direito podem ser instituídos em negócios gratuitos, como é o caso das doações (Código Civil 2002, artigos 538 e ss. e 1.857 e ss).

Se adotado o segundo entendimento (i.e., as milhas possuem um preço embutido no valor do produto principal que é repassado ao consumidor de forma que a pontuação é mesmo comprada), as cláusulas que limitam a transferência de milhas para terceiros seriam nulas. Isso porque, em negócios jurídicos onerosos, não são admitidas cláusulas de inalienabilidade (ou, de forma abrangente, não são admitidas cláusulas que restrinjam os efeitos do próprio negócio, ou sujeitem-no ao mero arbítrio de uma das partes. Código Civil, 2002, artigos 122 e ss) [2]. A imposição de tais cláusulas em contratos de adesão pelos programas de fidelidade seria, assim, prática abusiva e ilegítima, capaz de violar os direitos do consumidor.

Decisões favoráveis ao primeiro argumento têm considerado que os programas de milhagem possuem o mero objetivo de conceder benefícios ao titular das contas para fidelizar seu consumo. As milhas seriam meras vantagens cuja concessão estaria sujeita às regras do programa, que poderiam ser mesmo restritivas [3].

A esse respeito pode-se destacar, como exemplo, trecho do posicionamento do relator (voto vencido) em decisão de Apelação pela 29ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) em ação civil pública movida pela Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Proteste) [4]:

"Com efeito, o acúmulo da quantidade de pontos necessária à emissão de uma 'passagem-prêmio' exige, como cediço, a aquisição onerosa e recorrente de serviços e produtos por parte do cliente-participante do programa de fidelização, (…). Em tais condições, resta evidente que o plano de benefícios instituído pela ré, (…), destina-se precipuamente a clientes frequentes, que rotineiramente realizam viagens (…)" (grifado).

Esse entendimento, contudo, parece ignorar a revolução vivida pelos programas de fidelidade aérea ao longo dos últimos anos, passando de pequenos programas de relacionamento com contornos de marketing para negócios independentes em que a venda de milhas é realizada por meio de coalizão com diversos parceiros e que gera receitas multimilionárias.

A antiga percepção de que as milhas são prêmios dados aos passageiros frequentes por milhas voadas não se coaduna com o fato de que se trata de negócio em que as passagens aéreas são o bem mais valorizado, mas os parceiros não-aéreos são os responsáveis pela maior parte das receitas. Não por outro motivo, no julgamento da mesma ação civil pública em segunda instância a turma julgadora foi contrária ao voto do relator, indicando expressamente entender que os consumidores "pagaram pelo produto".

De fato, no caso da Multiplus/Latam Pass, por exemplo, dos R$ 9,044 bilhões em milhas emitidos pela empresa entre 2015 e 2018, 91,8% (R$ 8,305 bilhões) foram comercializados para os parceiros não-aéreos. Já no caso da Smiles, 92,9% das contas a receber pela companhia informado em 2019 (R$ 493,036 milhões no total) era referente à venda de milhas feitas para parceiros diversos de companhias aéreas.

E os programas de fidelidade são remunerados por esses parceiros (instituições financeiras, inclusive por meio dos cartões co-branded, varejo, indústria e serviços) pelas milhas adquiridas e não apenas pelas milhas utilizadas. Assim, mesmo quando a milha vence na conta do consumidor, o programa de fidelidade reconhece a receita — sem que qualquer custo esteja associado (denominado breakage).

As empresas parceiras dos programas de milhagem  adquirem, então, onerosamente, volumes astronômicos de pontos e milhas e, naturalmente, repassam o custo de aquisição nas taxas e valores cobrados de usuários elegíveis para o acúmulo dos pontos.

A 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), em Acórdão exarado em agravo de instrumento [5], traz análise relevante sobre esse natural repasse de custos:

"Em média, a própria companhia aérea, bancos, emissores de cartões e redes de postos de combustíveis pagaram cerca de R$215,00 por 10 mil pontos da Multiplus em 2012 (até setembro), ante cerca de R$200,00 no ano anterior.
Esse é um referencial interessante, já que com 10 mil pontos
 seja na Multiplus ou no Smiles
 normalmente é possível fazer um trecho de viagem em território nacional pela TAM ou pela GOL, sem necessidade de haver promoção. Se companhias aéreas, bancos e redes de postos pagam esse valor para Multiplus ou Smiles e posteriormente repassam os pontos adquiridos aos clientes, é porque imaginam ter recebido como contrapartida um montante próximo deste. Eles não fariam isso como um simples favor à clientela" (grifado).

O acórdão explica ainda esse repasse utilizando como exemplo os cartões de crédito. Indica, nesse sentido, que "alguns bancos cobram anuidades diferentes para plásticos com ou sem acesso ao programa de fidelidade", e que "cartões que dão pontuação 'turbinada' nos programas de fidelidade têm anuidade igualmente reforçadas, sempre para cima".

De forma similar foi o voto do desembargador J.B. Franco de Godoi do TJSP [6], que questiona a ideia de que as milhas são mero benefício concedido a clientes sem que seu custo seja repassado ao consumidor:

"Aliás, fosse realmente apenas um benefício concedido com o propósito de estimular e fidelizar seus clientes, certamente não haveria ofertas de venda de milhas pela própria ré, conforme se verifica em seu 'site'. (…)
Não há como negar que no preço pago pela passagem aérea encontra-se embutido o valor das milhas, pois é fato notório que quanto mais cara a passagem, mais milhas são 'dadas' ao consumidor".

No âmbito da análise de recurso especial interposto na já referida ação civil pública movida pela Proteste, atualmente em trâmite perante o STJ, o Ministério Público Federal (MPF) se posicionou contrariamente à possibilidade de homologação entre as partes e consequente transigência em relação a direitos dos consumidores, afirmando o seguinte:

"Prosseguindo, em atenta análise, resta claro que o programa de fidelização 'TAM fidelidade', consiste em incentivo ao consumidor para conferir preferência de consumo em tal companhia aérea, uma vez que resultará na obtenção de benefícios de pontos/milhagens. Assim, é patente que não se trata de cortesia ou benesse conferida ao consumidor, mas sim contraprestação em razão de pagamento antecipado" (grifado).

Os tribunais (e até mesmo o MPF) têm adotado entendimento de que, dado que as milhas são adquiridas pelos parceiros dos programas de fidelidade aérea, é natural que tal custo seja repassado para os consumidores. Apontam, inclusive, que os cartões de crédito e mesmo as passagens que geram maior acúmulo de milhas são justamente aqueles mais caros.

Acórdão do TJMG destacou, por exemplo, que o caráter oneroso comutativo da operação de aquisição de milhas seria reforçado pelo fato de que "trechos percorridos com a utilização de passagem aérea adquirida por milhagem/pontuação não são suscetíveis de gerar acúmulo de pontos" [7].

As companhias aéreas, por outro lado, sempre deixaram claro que os custos de diversos serviços e bens oferecidos aos consumidores estão embutidos nos custos das passagens, e até mesmo passaram a cobrá-los separadamente nos últimos anos, como o despacho de bagagens e os lanches fornecidos em voo. Até mesmo benefícios que não implicam em um aumento de custos, como a possibilidade de viajar em assentos "conforto" ou localizados em saída de emergência, e até mesmo a marcação antecipada de assentos passaram a ser cobrados. Não parece haver razoabilidade, portanto, em se afirmar que os custos de aquisição das milhas são, extraordinariamente, os únicos absorvidos pelas empresas.

Em que pese isso, buscando fundamentar as limitações criadas para transferência de milhas a terceiros, os programas de fidelidade também argumentam que as milhas não poderiam ser comercializadas pelos consumidores por serem bens fora do comércio. A esse respeito, o TJMG apontou que esse entendimento não poderia prevalecer "eis que sua comercialização é reconhecida pela própria Multiplus" [8], citando então as demonstrações financeiras da empresa que apontam que bancos, varejo e indústria e serviços foram responsáveis por 89,7% do seu faturamento com venda de pontos.

Em evolução dessa questão, o TJMG já reconheceu até mesmo possibilidade de penhora sobre pontos/milhas, em sede de agravo de instrumento, concedendo pedido feito pelo Banco Mercantil do Brasil S.A. em execução proposta para quitação de débito [9]:

"Feitas tais considerações, considerado que os pontos de fidelidade/milhagem aéreas possuem natureza patrimonial e creditícia junto às empresas aéreas, razão pela qual, dou provimento ao recurso de agravo de instrumento, para autorizar a penhora dos referidos bens (…)" (grifado).

Em síntese, é possível notar que há ainda poucas, mas firmes decisões de segunda instância a respeito da possibilidade de consumidores usarem livremente as milhas acumuladas, e, inclusive, revendê-las.

Há, naturalmente, decisões divergentes dentro dos tribunais, e que vêm buscando especialmente uma melhor compreensão da forma como se organizam e estruturam os programas de fidelidade, e o novo mercado de revenda de milhas. Contudo, resta ainda pendente a harmonização da jurisprudência pelos tribunais superiores e que é esperada para os próximos anos.

Até o momento, tribunais como o TJSP e o TJMG se pronunciaram em diferentes ocasiões, com análise bastante aprofundada da questão, pela existência de onerosidade na aquisição de milhas pelos consumidores e consequente abusividade das regras que proíbem a revenda desses pontos.


[1] Por exemplo, instruções da LATAM Pass disponíveis em: https://helpdesk.latam.com/hc/pt-br/articles/360035995034-Quantos-bilhetes-eu-posso-resgastar- Acesso em 09/09/2021.

[2] TJMG, Ap. Cível 1.0459.08.030494-0/002, 18ª Câmara Cível, Rel. Des. Cabral da Silva.

[3] TJDF, Ap Cível 0707884-46.2019.8.07.0020, 2ª Turma Cível, Rel. Des. Carmelita Brasil. PJe: 05/06/2020. T.J.: 01/07/2020. TJRO, Ap. Cível 7010340-28.2019.8.22.0001, 2ª Câmara Cível, Rel. Des. Alexandre Miguel. PJe: 11/09/2020. T.J.: 07/10/2020.

[4] TJSP, Ap. em ACP 1025172-30.2014.8.26.0100, 29ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Fábio Tabosa. J. 02/08/2017. Processo atualmente em análise pelo STJ, REsp n.º 1.878.651/SP, recurso interposto pela TAM Linhas Aéreas S.A.

[5] TJMG. AI 1.0024.13.197143-4/001, 17ª Câmara Cível, Rel. Des. Mariné da Cunha. PJe: 03/12/2013.

[6] TJSP, Apelação 0009943-57.2015.8.26.063523ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Paulo Roberto de Santana, DJ-e 26/04/2018.

[7] TJMG. A.I. 1.0346.19.000747-3/001, 16ª Câmara Cível, Rel. Des. Marcos Brant. PJe: 19/12/2019.

[8] TJMG. AI 1.0024.13.197143-4/001, 17ª Câmara Cível, Rel. Des. Mariné da Cunha. PJe: 03/12/2013.

[9] TJMG. A.I. 1.0024.13.167811-2/001. Des. Rel. Luiz Mata. PJe: 22/05/2020.

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    é advogada no escritório Grinberg Cordovil Advogados, possui LLM e MA em Análise Econômica do Direito pelas Universidades de Hamburgo e Viena e mestra em Direito do Estado.

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