Opinião

Ordenador de despesas e responsabilidade de atuação amparada em parecer jurídico

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11 de outubro de 2021, 16h15

O desempenho da atividade do ordenador de despesas, que visa a analisar a regularidade das contas e avaliar a compatibilidade com o orçamento público, demanda o conhecimento de uma série de matérias complexas. Em decorrência da altíssima responsabilidade inerente a essa função, faz-se imprescindível avaliar cuidadosamente a atuação do agente investido para fins de responsabilidade.

Nos termos do artigo 80 do Decreto-Lei n. 200/1967, o ordenador de despesa é todo servidor público investido de competência relacionada à emissão de empenho, à autorização de pagamento, suprimento ou dispêndio de recursos da União ou por qual esta responda.

De maneira concreta, no processo licitatório, é seu dever editar o ato autorizador para iniciar a licitação ou para realizar a contratação direta, como já se manifestou o Tribunal de Contas da União (TCU) no acórdão 2.492/2016. Não obstante, também é sua responsabilidade primar pela legalidade da despesa empreendida.

Do mencionado dispositivo legal, bem como do conteúdo extraído do Decreto n. 93.876/1986, vê-se que as atribuições do ordenador de despesa possuem conteúdo orçamentário e financeiro. Portanto, nem todos os atos que ocorrem no âmbito do processo licitatório podem ensejar a sua responsabilização automática, sobretudo aqueles que não possuem correlação com a temática da atividade desenvolvida.

Tanto a Lei 8.666/1993 quanto a nova Lei de licitações (Lei 14.133/2021) dispõem sobre o dever da assessoria jurídica da Administração analisar e aprovar as minutas de editais de licitação, de contratos, de acordos, de convênios ou de ajustes. Para além disso, na modalidade de contratação direta, cumpre-lhe verificar a hipótese de exceção à regra da licitação – dispensa ou inexigibilidade de licitação.

Em muitos casos, o ordenador de despesa age amparado no entendimento firmado pela assessoria jurídica e, por diversas vezes, utiliza-se do parecer emitido para fundamentar sua atuação. Essa conduta representa não só a mais coerente como a mais segura para evitar a eventual responsabilização, uma vez que está pautada na análise técnica, minuciosa e detida, realizada pelos especialistas da área.

Como se sabe, o ordenador de despesa não representa um cargo na estrutura da Administração, mas sim função desempenhada por servidor público, sem que exista requisitos necessários para se determinar qual servidor pode ocupá-la. Por esse motivo, não é possível exigir do ordenador de despesa conhecimento próprio de formação acadêmica, mas somente aquele que é específico da Administração Pública, denominado como procedimento interna corporis. Segundo Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, o servidor ocupante de tais funções tem direito a qualificar-se sobre o que está nessas duas margens: (i) conhecimento que ainda não integra a formação acadêmica e (ii) procedimentos interna corporis.

Nessa linha, seria irrazoável responsabilizar o ordenador de despesa que age amparado em parecer jurídico obrigatório, ou seja, o caso em que a própria Lei estabelece a necessidade de emissão do documento por assessoria especializada. Isso uma vez que, se o legislador entendeu como obrigatório, é porque exige conhecimento específico de formação acadêmica, o qual, como mencionado, não é requisito para exercer essa função.

Em consonância com esse entendimento, o Tribunal de Contas da União já firmou posicionamento sobre o tema:

O posicionamento desta Corte admite que não é pertinente a responsabilização de administrador que age sob o entendimento de parecer jurídico. Entretanto, para tal posicionamento, devem ser examinadas as circunstâncias de cada caso, para verificar se o parecer está devidamente fundamentado, se defende tese aceitável e se está alicerçado em lição de doutrina ou de jurisprudência.[1]

Deve-se reconhecer, nesse entendimento da Corte de Contas, a necessidade de se analisar cada caso, a fim de verificar se as circunstâncias que levaram o ordenador de despesas a cometer o ato não estavam eivadas de vícios. Isso com o intuito de evitar que, mesmo diante de situações esdrúxulas, em que eventualmente o parecer esteja pautado em erros grosseiros, o ordenador seja eximido de responsabilidade.   

De todo modo, a investigação de responsabilidade do agente público dá-se sob a ótica da responsabilidade subjetiva, de maneira que se faz necessário verificar se a conduta foi dolosa ou culposa.

Assim, a investigação acerca da responsabilidade nos processos dos Tribunais de Contas se origina de conduta comissiva ou omissiva do agente, dolosa ou culposa, cujo resultado seja a violação dos deveres impostos pelo regime de direito aplicável àqueles que administram recursos do Estado. Dessa forma, se a conduta não é culposa ou dolosa, não há falar em responsabilidade do agente.

Esse entendimento — já pacífico no TCU[2] — ganha ressonância com a alteração promovida pela Lei n. 13.655/2018 ao Decreto-Lei n. 4.657/1942, amplamente conhecido como a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB). A novidade legislativa estabelece regras mais objetivas para a responsabilização de gestores, com o objetivo de conferir maior segurança jurídica à atuação desses agentes públicos.

Nessa linha, vale mencionar o art. 22, que trata do primado da realidade, o qual determina que deve ser considerada toda circunstância fática em que o administrador está inserido quando da interpretação de normas sobre gestão pública. Esse dispositivo torna-se ainda mais relevante quando se observa a situação nos Municípios, cujas condições são extremamente precárias e não podem ser ignoradas quando da auditoria das contas e da atuação dos gestores.

Dessa maneira, a responsabilização do ordenador de despesa em atuação pautada em parecer jurídico produzido por assessoria especializada revela-se desarrazoada, de acordo com a jurisprudência pacífica do TCU. Ademais, em caso de eventual investigação de responsabilidade, essa deve ser avaliada sob a ótica subjetiva, considerada as circunstâncias fáticas em que o agente estava inserido no momento da tomada de decisões.


[1] TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Processo n.004.278/1998-4. Acórdão n.2346/2005 –Primeira Câmara. Relator: Ministro Valmir Campelo.

[2] […] 11. Tais argumentos não procedem. A responsabilização pela utilização de recursos públicos federais no âmbito desta Corte de Contas observa a teoria da responsabilidade subjetiva, na medida em que necessário se faz demonstrar, ao menos, culpa do responsável na utilização indevida desses recursos, a exemplo do que restou decidido pelos Acórdãos 433/2012-TCU-Plenário, 249/2010-TCU-Plenário e 487/2008-TCU-Plenário, entre tantos outros. Despiciendo, portanto, demonstrar a conduta dolosa da responsável no trato dos recursos públicos a ela confiados para fins de sua responsabilização perante esta Corte de Contas.

(TCU – TOMADA DE CONTAS ESPECIAL (TCE): 02242020134, Primeira Câmara, Relator: BENJAMIN ZYMLER, Data de Julgamento: 26/05/2020, grifos aditados)

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