Público & Pragmático

Arbitragem e Administração Pública: ética da pessoa árbitra

Autores

  • Sílvia H. Johonsom di Salvo

    é advogada em São Paulo doutora e mestre em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo especialista em Business Data Analytics pela Universidade de Cambridge e especialista em Mediação pela Universidade de Harvard.

  • Giovanna Cardoso e S. de Andrade

    é estudante de Direito na Universidade Católica de Salvador student member do Chartered Institute of Arbitrators (CIArb) e do Comitê de Jovens Arbitralistas (CJA).

10 de outubro de 2021, 8h00

A arbitragem como método de resolução de disputas no âmbito da Administração brasileira é, hoje, um truísmo. Não apenas pela consolidação da autorização do uso pela Lei federal 13.129/2015, ao incluir os parágrafos 1º e 2º ao artigo primeiro da Lei de Arbitragem (9.307/1996), mas também pelo fato de que o poder público estadual tem se preocupado em regulamentar a prática arbitral na sua esfera federativa.

Contudo, a arbitragem — e é importante ressaltar — não se trata de uma substituição à jurisdição estatal, tampouco é um mecanismo capaz de impactar significativamente na redução do volume de ações judiciais envolvendo o setor público. Na verdade, trata-se de um método que tem como competência o atendimento a questões que envolvem mais tecnicidade e especialidade. E, como tal, consiste em um sistema que possui suas peculiaridades e um próprio modelo procedimental.

Nessa linha, a normatização estadual, notadamente as Leis estaduais 19.477/2011 e 15.627/ 2015, promulgadas pelos estados de Minas Gerais e Pernambuco, respectivamente, assim como os Decretos 46.425/2018, 64.356/2019 e 55.996/21 editados pelos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, nessa ordem, buscaram preencher algumas das lacunas referentes às questões envolvendo aspectos práticos e específicos do uso da arbitragem pela Administração Pública.

Assim, questões como arbitrabilidade objetiva da Administração Pública, definição da instituição competente, nomeação dos árbitros, o pagamento de custas processuais ou outras despesas e a publicidade do procedimento foram balizadas pelos Estados-membros.

O mérito da regulamentação de questões procedimentais e objetivas é, sem dúvida, a busca por conferir mais segurança jurídica aos integrantes do procedimento arbitral, nas circunstâncias apresentadas.

Nada obstante, é preciso se ler nas entrelinhas para se constatar que a segurança jurídica das arbitragens na Administração Pública não consiste apenas na garantia de temas procedimentais, embora estes sejam uma parcela inegavelmente relevante desta garantia. O comportamento dos atores, os sujeitos da arbitragem, têm importância na segurança jurídica, por uma razão fundamental: a consolidação da arbitragem na Administração Pública depende do ponto ótimo no encontro entre o Direito Administrativo, o qual, ainda que caminhando para o consensualismo, é revestido por amarras burocráticas, e a arbitragem, como um modelo operacional flexível. O Leviatã, ao passo que pode tudo, nada pode — um sentimento experimentado por todos aqueles que, de alguma forma, atuam ou interagem em arbitragens com o poder público.

Sob esse aspecto, não é incomum se estar diante de análises do comportamento da parte conveniada à Administração Pública, apontando-se erros e acertos de sua conduta, pois, afinal, é uma posição na qual o agente público, num sentido geral, já se acostumou a estar, desde que o constituinte definiu princípios deônticos da Administração Pública.

Mas o estado das coisas vai se impondo e é um dado objetivo o de que a comunidade arbitral vem sendo confrontada por índices de ações anulatórias de sentenças arbitrais, que têm como fundamento recorrente a violação à imparcialidade ou a suspeição do árbitro [1].

Como reação, atualmente tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 3.293/2021, que visa a alterar a Lei de Arbitragem "para disciplinar a atuação do árbitro, aprimorar o dever de revelação", prevendo limitações à atividade da pessoa árbitra em termos de volume de casos e da composição do tribunal arbitral, bem como das informações que devem ser reveladas, sob o fundamento de que:

"Por exercer função judicante e personalíssima, considerando sua livre indicação pelas partes, a Lei nº 9.307/96 exige que o árbitro conduza os casos com diligência, eis que a celeridade é característica ínsita aos procedimentos arbitrais. O que se tem notado na prática, porém, é a presença de um mesmo árbitro em algumas dezenas de casos simultaneamente, bem assim o aumento no tempo de tramitação das arbitragens. Muitas vezes, essas constatações guardam relação direta de causa e efeito, abrindo brecha para o ajuizamento de uma maior quantidade de ações anulatórias. Novos desafios exigem soluções eficientes pelo legislador, a quem cumpre zelar pela continuidade e aperfeiçoamento da exitosa experiência arbitral" [2].

O mérito das sentenças anulatórias ou do próprio projeto de lei não é o objeto central do presente questionamento, mas, sim, o reconhecimento de que não é possível se esquivar do diálogo sobre os parâmetros de conduta ética de outra figura da cena que não o agente público: a pessoa árbitra. Afinal, volta-se a repetir: desde que a Constituição brasileira definiu princípios deônticos à Administração Pública, tudo que lhe aduz tem ética, moralidade e legalidade caminhando de mãos dadas, ou, até mesmo, se confundindo.

Primordialmente, é necessário entender sob qual prisma esses parâmetros seriam indispensáveis para a higidez do procedimento arbitral e, por consequência, a segurança jurídica da arbitragem. Segundo Park, não menos do que em outras áreas do Direito, a elaboração de normas para a ética da pessoa árbitra implica uma tensão entre o transitório e o permanente, sendo que os princípios de conflito de interesses permanecerão úteis apenas se implementados com sensibilidade para novos pontos problemáticos que forem se apresentando [3].

As transformações no Direito Administrativo requerem a congruência dos fatores de flexibilidade e agilidade, principalmente em um contexto de pluralidade dos diferentes personagens que constituem as relações jurídicas arbitrais, adicionadas às tendências e inovações para a resolução de conflitos.

Portanto, o argumento que se faz é de que a agilidade e flexibilidade devem estar em consonância com a regulamentação cadenciada de cada ente público, para ocupar os espaços entre aquilo que foi legislado e as práticas que ocorrem nos procedimentos, para a efetivação da segurança jurídica.

Práticas internacionais são bastante valorizadas como standards de comportamento para a comunidade arbitral, mormente o uso das soft laws como orientações capazes de harmonizar comportamentos, sem, necessariamente, obrigar as partes a agirem de determinada forma. Na concepção teórica dessas diretrizes, a soft law pode ser idealizada como uma forma de antecipação da hard law; como um ajuste de comportamento das partes.

Como exemplo, as regras da International Bar Association (IBA) se constituem em várias soft laws que tratam do comportamento ético dos árbitros, de conflitos de interesse e revelações, de produção de provas, todas de ampla utilização no âmbito da arbitragem internacional. Ainda, é importante ressaltar a forma como a IBA, em suas guidelines acerca do conflito de interesses na arbitragem, descreveu determinados comportamentos das partes que foram classificados em três diferentes listas: "Red", "Orange" e "Green". Assim, situações que podem ensejar desconfiança acerca da atuação das partes durante o procedimento, podem ser categorizadas como mais ou menos graves, sofrendo as proporcionais consequências — ou nenhuma [4].

Outro exemplo bastante robusto e empregado no cenário internacional — como código universal de conduta — é o Code of Professional and Ethical Conduct for Members, editado pelo Chartered Institute of Arbitrators (CIArb), o qual baliza o comportamento dos seus membros — mas podendo ser adotado por qualquer pessoa árbitra — no que tange a qualificação e experiência, influência durante a condução do procedimento, confiança e confidencialidade [5].

De outro giro, todo aquele que se conecta à atividade judicante ou à atividade da Administração já se subordina a padrões éticos normatizados. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) edita o Código de Ética da Magistratura. A conduta ética dos servidores está, no plano federal, na Lei federal 8112/90. A esfera estadual também rege a conduta de seus agentes, como é o caso do estado de São Paulo na Lei estadual 10.261/68. É a cogência da qual não se pode escapar.

Evidentemente, o mero transplante da cultura de criação e utilização de soft laws para o setor público brasileiro não combina com o ideal da harmonização do comportamento ético da pessoa árbitra nas arbitragens com a Administração Pública, porque o Direito Administrativo é vocacionado para a formalização dos caminhos de apontamento das suas autoridades decisórias.

Porém, o excesso de regulamentações esparsas tem o potencial de mais afetar a segurança jurídica do que, de fato, estabilizá-la, por impedir processos fluidos de seleção e veto de tomadores de decisão, em cuja fluidez se apoia a flexibilidade necessária para se lidar com o que Park chama de "novas tentações profissionais", nas quais advogados assumem vários papéis profissionais, apresentando argumentos como defensores em um caso sobre proposições que permanecem abertas em outros casos em que atuam como árbitros [6]. Veja-se que que é exatamente o tema que o Projeto de Lei 3.293/2021 tenta abordar (com muitas críticas da comunidade arbitral).

O argumento que se faz, portanto, é o de que modelos de conduta ética — sejam eles por tradição ou por codificação — da pessoa árbitra no setor público não sejam o ponto de chegada, mas, sim, o ponto de partida para avaliação da adequação daquela ou daquele a quem se confia a resolução da disputa.

Na prática, esse racional importa que as dúvidas que se imponham sobre a pessoa árbitra sejam resolvidas pela intersecção entre normas dos códigos de conduta, o que viabiliza a identidade entre os interesses do sistema jurídico-administrativo do poder público com os da comunidade arbitral. Em última análise, o que importa é a garantia de um processo justo e equânime, do qual se extraia uma avaliação fundamentada de fatos e normas jurídicas.


[1] Extraído de notícia do Valor Econômico: "Tribunais anularam 19% das sentenças arbitrais questionadas" de 15 de julho de 2021, disponível em https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/07/15/tribunais-anularam-19-das-sentencas-arbitrais-questionadas.ghtml.

[3] In Rectitude in International Arbitration Arbitration International (Park (ed.); Sep 2011). Adapted from a symposium contribution published in (2009) 46 San Diego L Rev. 629.

[4] CARTER, James H. Reaching Consensus on Arbitrator Conflicts: The Way Forward. Dispute Resolution International Vol 6 No 1 May 2012, p. 18. Disponível em: < https://www.international-arbitration-attorney.com/wp-content/uploads/17reaching-consensus-on-arbitrator-conflictsthe-way-forwardjames-h-carterthere-is-no-conse.pdf>.

[5] The Chartered Institute of Arbitrators Code of Professional and Ethical Conduct for Members. Disponível em: <https://www.ciarb.org/media/4231/ciarb-code-of-professional-and-ethical-conduct-october-2009.pdf>.

[6] In Rectitude in International Arbitration Arbitration International (Park (ed.); Sep 2011). Adapted from a symposium contribution published in (2009) 46 San Diego L Rev. 629.

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