Embargos Culturais

Agosto, de Rubem Fonseca

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

10 de outubro de 2021, 8h00

O romance histórico é uma estrutura narrativa de difícil composição. Segundo o crítico Álvaro Lins, o romance histórico não é história, e também não é romance. Há um limite, e que deve ser bem definido, entre ficção e realidade. Traçado por critérios de verossimilhança, aferíveis pelo distanciamento do autor com todas as formas de anacronismo. Refiro-me a um anacronismo mais pontual que se trai com expressões que não são da época.

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Não me refiro ao anacronismo conceitual, quando se apresenta uma visão presenteísta do passado. Nesse caso, o autor vincula as premissas narrativas aos preconceitos que manteve ao longo da investigação e da coleta de dados. Há também autores que desavisadamente incluem no passado circunstâncias e coisas então inexistentes, o que pode se conceber metaforicamente com Getúlio Vargas falando ao celular ou com Aristóteles lendo um texto em forma de livro. Getúlio, aliás, nem falava ao telefone, com medo de ser grampeado. E Tancredo também tinha medo do grampo.

Na literatura internacional o romance histórico é forte em Walter Scott, com o inconfundível Ivanhoé. Há também os romances de capa e espada, de Dumas, e mais recentemente “O médico de homens e de almas”, narrativa de Taylor Caldwell sobre a vida de Lucas. Entre nós, o mais clássico de todos, José de Alencar (com quase toda a sua produção de sabor histórico), Ana Miranda em “A boca do inferno”, José Almeida Júnior em “O homem que odiava Machado de Assis” e “Última Hora”, bem como Rubem Fonseca, imbatível no gênero. É de Rubem Fonseca que falo nessa semana. Semana passada estive doente, e a coluna não saiu. Uma falha, talvez a primeira, em mais de dez anos de embargos culturais.

Em “Agosto”, Rubem Fonseca desenvolveu uma trama alucinante, que se desdobra concomitantemente com os episódios históricos que marcaram o suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954. A iniciativa inicia-se com os preparativos para o “atentado da Rua Toneleros”. Nesse triste episódio teria havido uma tentativa de assassinato de Carlos Lacerda, também lembrado como “o corvo”, ou como “o demolidor de presidentes”. “O corvo” é um apelido que lhe deu Samuel Wainer; eram inimigos. Há muitos personagens reais que passam pela narrativa: Armando Falcão, Tancredo Neves, Eduardo Gomes, João Café Filho, o próprio Samuel Wainer (jornalista dono do jornal Última Hora).

Acusou-se como mandante do crime a Lutero, filho de Getúlio Vargas, e ainda a Gregório Fortunado, o “anjo negro”, chefe da guarda pessoal de Getúlio, que teria articulado toda a ação. Há ainda Climério e Alcino, que teriam executado a tarefa. Rubem Florentino Vaz, major da aeronáutica, caiu morto no episódio. Segue uma violenta crise política, marcada pela histeria de Lacerda. Vargas dá o desfecho com uma contundente carta-testamento e com uma não menos contundente bala no peito. A história terminou como ninguém esperava.

Em “Agosto” corre, em paralelo, outro crime, investigado pelo Comissário Matos. Incorruptível e ulceroso, toma um “pepsamar” atrás do outro. Trata-se de um antiácido, muito consumido nos tempos antigos. Formado em direito, a espera de um concurso (talvez para a magistratura), Matos estuda recorrentemente matérias jurídicas. Rubem Fonseca move na narrativa políticos corruptos (Freitas), empresários que vivem de contratos com o Estado (Magno), pederastas (Chicão), prostitutas (Esmeralda), um médico (Arnaldo). O comissário gosta de ópera.

Rubem Fonseca explora também os meandros do jogo do bicho, dos pistoleiros de aluguel, de policiais bonzinhos e de policiais corruptos. Cenas do Rio de Janeiro dos anos 50 (quando havia bondes) provocam no leitor sensações de uma deliciosa viagem no tempo. O desenlace é inesperado, quanto ao homicídio fictício.

Rubem Fonseca dá-nos uma aula de composição de romance histórico. Descreve, com exatidão, um dia de agosto de 1954, no Rio de Janeiro. Movimento do comércio, o sindicato dos lojistas, os turistas estrangeiros que desembarcam no cais, a excursão de brasileiros, organizada pelo Touring Club do Brasil, o movimento das maternidades, os enxovais, o nome predileto para os meninos (José), o nome preferido para as meninas (Maria).

“Agosto” é uma viagem no tempo. Um tempo difícil. Uma sucessão de crises. O livro nos leva a pensar que crises substancializam o normal e as regras. Os tempos de paz, raros, são exceções. Em “Agosto” Rubem Fonseca nos remete para um Brasil que já não mais existe, mas que embrionariamente construía os dilemas de nossa época atual.

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