O romance histórico é uma estrutura narrativa de difícil composição. Segundo o crítico Álvaro Lins, o romance histórico não é história, e também não é romance. Há um limite, e que deve ser bem definido, entre ficção e realidade. Traçado por critérios de verossimilhança, aferíveis pelo distanciamento do autor com todas as formas de anacronismo. Refiro-me a um anacronismo mais pontual — que se trai com expressões que não são da época.
Na literatura internacional o romance histórico é forte em Walter Scott, com o inconfundível Ivanhoé. Há também os romances de capa e espada, de Dumas, e mais recentemente “O médico de homens e de almas”, narrativa de Taylor Caldwell sobre a vida de Lucas. Entre nós, o mais clássico de todos, José de Alencar (com quase toda a sua produção de sabor histórico), Ana Miranda em “A boca do inferno”, José Almeida Júnior em “O homem que odiava Machado de Assis” e “Última Hora”, bem como Rubem Fonseca, imbatível no gênero. É de Rubem Fonseca que falo nessa semana. Semana passada estive doente, e a coluna não saiu. Uma falha, talvez a primeira, em mais de dez anos de embargos culturais.
Em “Agosto”, Rubem Fonseca desenvolveu uma trama alucinante, que se desdobra concomitantemente com os episódios históricos que marcaram o suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954. A iniciativa inicia-se com os preparativos para o “atentado da Rua Toneleros”. Nesse triste episódio teria havido uma tentativa de assassinato de Carlos Lacerda, também lembrado como “o corvo”, ou como “o demolidor de presidentes”. “O corvo” é um apelido que lhe deu Samuel Wainer; eram inimigos. Há muitos personagens reais que passam pela narrativa: Armando Falcão, Tancredo Neves, Eduardo Gomes, João Café Filho, o próprio Samuel Wainer (jornalista dono do jornal Última Hora).
Acusou-se como mandante do crime a Lutero, filho de Getúlio Vargas, e ainda a Gregório Fortunado, o “anjo negro”, chefe da guarda pessoal de Getúlio, que teria articulado toda a ação. Há ainda Climério e Alcino, que teriam executado a tarefa. Rubem Florentino Vaz, major da aeronáutica, caiu morto no episódio. Segue uma violenta crise política, marcada pela histeria de Lacerda. Vargas dá o desfecho com uma contundente carta-testamento e com uma não menos contundente bala no peito. A história terminou como ninguém esperava.
Em “Agosto” corre, em paralelo, outro crime, investigado pelo Comissário Matos. Incorruptível e ulceroso, toma um “pepsamar” atrás do outro. Trata-se de um antiácido, muito consumido nos tempos antigos. Formado em direito, a espera de um concurso (talvez para a magistratura), Matos estuda recorrentemente matérias jurídicas. Rubem Fonseca move na narrativa políticos corruptos (Freitas), empresários que vivem de contratos com o Estado (Magno), pederastas (Chicão), prostitutas (Esmeralda), um médico (Arnaldo). O comissário gosta de ópera.
Rubem Fonseca explora também os meandros do jogo do bicho, dos pistoleiros de aluguel, de policiais bonzinhos e de policiais corruptos. Cenas do Rio de Janeiro dos anos 50 (quando havia bondes) provocam no leitor sensações de uma deliciosa viagem no tempo. O desenlace é inesperado, quanto ao homicídio fictício.
Rubem Fonseca dá-nos uma aula de composição de romance histórico. Descreve, com exatidão, um dia de agosto de 1954, no Rio de Janeiro. Movimento do comércio, o sindicato dos lojistas, os turistas estrangeiros que desembarcam no cais, a excursão de brasileiros, organizada pelo Touring Club do Brasil, o movimento das maternidades, os enxovais, o nome predileto para os meninos (José), o nome preferido para as meninas (Maria).
“Agosto” é uma viagem no tempo. Um tempo difícil. Uma sucessão de crises. O livro nos leva a pensar que crises substancializam o normal e as regras. Os tempos de paz, raros, são exceções. Em “Agosto” Rubem Fonseca nos remete para um Brasil que já não mais existe, mas que embrionariamente construía os dilemas de nossa época atual.