Opinião

A alienação de ativos durante o processo de recuperação judicial

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10 de outubro de 2021, 13h13

Deferido o processamento da recuperação judicial, o empresário ou a empresa postulante se sujeita a restrições excepcionais, fundamentadas nos princípios que regem o interesse público decorrente do pleito recuperacional, em especial dos princípios da preservação da empresa, da proteção aos trabalhadores e dos interesses dos credores (artigo 47 da Lei nº 11.101/05).

A atividade empresarial permanece sendo conduzida pelo empresário ou seus administradores durante o processo de soerguimento, sob fiscalização do comitê, se houver, e do administrador judicial, exceto se verificada alguma das causas de afastamento ou destituição (artigo 52, IV, e artigo 64, ambos da Lei nº 11.101/05), verificada mediante o devido processo legal.

A toda evidência, a atividade empresarial deve permanecer em pleno funcionamento, o que implica dizer que as negociações relacionadas com o objeto de atividade do negócio deverão ocorrer normalmente, com compra e venda de produtos, negociações, pagamento de despesas operacionais etc.

Nessa linha de intelecção, conforme interpretação sistemática do ordenamento jurídico, é possível afirmar haver limitação imposta pela legislação de regência relacionada ao patrimônio que se qualifique como ativo permanente.

De fato, a empresa em recuperação judicial não está impedida de funcionar, por menos de negociar, mas de alienar seu ativo permanente, conforme dispõe o artigo 66 da Lei nº 11.101/05. Colaciono:

"Artigo 66  Após a distribuição do pedido de recuperação judicial, o devedor não poderá alienar ou onerar bens ou direitos de seu ativo permanente, salvo evidente utilidade reconhecida pelo juiz, depois de ouvido o Comitê, com exceção daqueles previamente relacionados no plano de recuperação judicial".

Na definição contábil da expressão legal, ativo permanente representa o grupo do balanço patrimonial relativo aos bens ou direitos de natureza duradoura. Com o advento da Lei nº 11.638/2007, que promoveu alterações na lei que disciplina a sociedade por ações (Lei nº 6.404/76), o ativo permanente passou a ser chamado de ativo não circulante, composto por bens de natureza de investimento, imobilizado, intangível e diferido.

Emprestando o conceito legal da lei que disciplina a sociedade por ações, ativo imobilizado passou a ser definido como os direitos que tenham por objeto bens corpóreos destinados à manutenção das atividades da companhia ou da empresa ou exercidos com essa finalidade, inclusive os decorrentes de operações que transfiram à companhia os benefícios, riscos e controles desses bens (artigo 179, IV, da Lei nº 6.404/76).

Nesse sentido, em consonância com o Comitê de Pronunciamento Contábeis (CPC 37), o exemplo do veículo automotor é considerado ativo não circulante, imobilizado, quando mantido para o uso na produção ou fornecimento de mercadorias ou serviços, ou para fins administrativos.

Cenário diametralmente oposto representa a alienação de grãos (commodity), que consiste no próprio bem de circulação ou produção da empresa que atua no ramo do agronegócio, produzindo, armazenando, exportando etc.

Logo, é possível concluir que a alienação de veículo automotor, acaso não seja essa a natureza de atividade empresarial, deve se enquadrar na categoria de ativo permanente, ou seja, não circulante, afeto pela regra do artigo 66 da Lei nº 11.101/05, exigindo, assim, autorização do comitê ou em da assembleia geral de credores.

Imperativo ressaltar, outrossim, que, nos termos do artigo 50 da Lei nº 11.101/05, constitui meio de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso, entre outros: "XI – venda parcial dos bens". Assim, na hipótese de constar do plano de recuperação judicial a alienação de bens, e havendo a aprovação do plano em assembleia, com posterior homologação judicial, resta possibilitada a venda desses ativos, conforme definido no plano, sempre observando o que dispõe o artigo 140 da legislação de regência, no que couber.

"Portanto, o empresário ou empresa deve observar a limitação relacionada ao ativo permanente, não circulante, sob pena de configurar hipótese de conduta típica em caso de favorecimento de credores (Lei nº 11.101/05, artigo 172)".

Não obstante o regramento claramente positivado, hodiernamente instalou-se na doutrina e jurisprudência a discussão quanto à possibilidade de alienação de ativos permanentes não essenciais para o funcionamento da empresa, excepcionando a regra de vedação legal exclusivamente em relação aos bens não essenciais.

A essencialidade de bens é citada pela legislação recuperacional pelo artigo 49, §3º, mediante imposição de restrição à retirada do estabelecimento do devedor "dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial". A vedação é imperativa, inclusive oposta em face de bens gravados com cláusula de alienação fiduciária, em que sabidamente há transferência da propriedade resolúvel do bem.

Não obstante, a expressão essencialidade deve ser avaliada sob os diversos pontos de vista que norteiam as relações econômicas, a fim de encontrar o real sentido e abrangência da norma, evitando-se limitações interpretativas indevidas.

Sob a perspectiva econômica [1], quanto à sua utilidade, os bens se apartam em bens de consumo, intermediários e de capital. Os primeiros são os que se empregam diretamente na satisfação das necessidades das pessoas, ao passo que os demais se utilizam na transformação e na produção de novos bens, diferenciando-se conforme sua função na cadeia produtiva: os insumos e as matérias-primas, sujeitos a transformação para posterior aproveitamento no atendimento das necessidades individuais, qualificam-se como bens intermediários; já os instrumentos, as máquinas, as instalações e os equipamentos que, sem desgaste imediato, sejam empregados na transformação de outros bens, jamais servindo diretamente ao consumo final, são os denominados bens de capital.

A terminologia que se reproduziu, porém, não é inteiramente consagrada na seara econômica. Há os que decomponham os bens, conforme a utilidade, apenas em consumo e capital, neste último sendo incluídos os intermediários. A ser utilizado o conceito econômico como arrimo, essa divergência terminológica pode ter considerado influência na própria definição jurídica do que sejam os bens de capital essenciais à atividade empresarial, notadamente pela possibilidade teórica de se qualificarem como merecedores da proteção da parte final do artigo 49, §3º, da LRF, também as matérias-primas e os insumos comumente utilizados pelo devedor.

Embora não possa afirmar, peremptoriamente, relação causal inaugurada pela verificada divergência conceitual da economia, fato é que, para a ciência jurídica, não se conseguiu atribuir ao termo bens de capital um sentido inequívoco. Para João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli e Rodrigo Tellechea, a expressão teria sido empregada "da forma mais ampla possível", correspondendo a todos os bens "tangíveis de produção", tais como as instalações físicas, os equipamentos, as ferramentas, os veículos, e bem assim quaisquer outros "efetivamente empregados na cadeia produtiva da recuperanda".

Fábio Ulhoa Coelho concluiu que, no Poder Judiciário, aquela expressão teria sido compreendida "de modo restrito", dela excluindo, então, os bens intermediários, como a matéria-prima e os insumos. Entretanto, prudentemente, o aludido autor, ao considerar o critério da "paralisação das atividades empresariais", entendeu possível que, no caso particular, também os bens intermediários sejam classificados como bens essências [2].  

No âmbito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, especificamente a 2ª Seção do STJ, no Conflito de Competência 153.473/PR, ponderou sobre a imprecisão conceitual do termo bens de capital, distinguindo bens de capital dos de produção [3].

Já na 3ª Turma do Tribunal Cidadão foi discutido nos autos do Rep nº 1.758.746/GO, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, limitando a abrangência dos bens de capital àqueles corpóreos que, na posse do devedor, sejam utilizados no processo produtivo [4].

Considerando como sinônimos os termos "bens de capital" e "bens de produção", a 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso reconheceu a proteção aos bens de capital, aduzindo tratarem-se de bens de instrumentalização, enquanto os bens de produção estariam sujeitos à transformação industrial.

Sob tal conjuntura, os tribunais pátrios têm deliberado pela regularidade da venda de bens não essenciais, conforme análise das diversas nuances do caso concreto [5].

Destarte, é possível afirmar que a jurisprudência tem relativizado a vedação legal a que alude o artigo 66 da Lei nº 11.101/05, especialmente quando verificada a utilidade e necessidade da medida.

Portanto, conclui-se que não é toda e qualquer disposição de bens, indistintamente, que caracterizará afronta ao dispositivo citado, sendo necessário sempre ter em mente a divergência conceitual tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência no que se atine à essencialidade do bem, sendo possível, mesmo sem autorização judicial, a disposição de bem que por definição pertenceria ao ativo não circulante, mas que pela utilidade e necessidade pode ser alienado em favor do objetivo maior da recuperação judicial. 

 

Referências bibliográficas
CARVALHO. Hallison Fernando Nunes. Advogado (OAB/MT 29.469). Livre docente pela Unic Primavera do Leste.

GOMES. Camila Aboud; FIGUEIREDO, Claudete Rosimara de Oliveira; BRASIL. Glaucia Albuquesque; SCALZILLI, João Carlos Lopes; CABRAL, Taciane Acerbi Campagnaro Colnago. Recuperação judicial, falência e administração judicial. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.

(CC 153.473/PR, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Rel. p/ Acórdão ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 09/05/2018, DJe 26/06/2018)

(REsp 1758746/GO, Rel. ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/09/2018, DJe 01/10/2018)

(TJPR – 17ª C. Cível – 0004640-30.2020.8.16.0000 – Maringá – Rel.: Desembargador Fabian Schweitzer – J. 19.04.2021)

(TJ-SC – AI: 40101429320168240000 Biguaçu 4010142-93.2016.8.24.0000, Relator: Jânio Machado, Data de Julgamento: 9/3/2017, Quinta Câmara de Direito Comercial)

(TJ-SP – AI: 22375776720188260000 SP 2237577-67.2018.8.26.0000, Relator: Araldo Telles, Data de Julgamento: 10/12/2019, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 11/12/2019)  

 


[1] RODRIGUES. Lásara Fabrícia, Fundamentos de Economia, p.31.

[2] GOMES. Camila Aboud; FIGUEIREDO, Claudete Rosimara de Oliveira; BRASIL. Glaucia Albuquesque; SCALZILLI, João Carlos Lopes; CABRAL, Taciane Acerbi Campagnaro Colnago. Recuperação judicial, falência e administração judicial. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.

[3] (CC 153.473/PR, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Rel. p/ Acórdão ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 09/05/2018, DJe 26/06/2018)

[4] (REsp 1758746/GO, Rel. ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/09/2018, DJe 01/10/2018)

[5] (TJPR – 17ª C. Cível – 0004640-30.2020.8.16.0000 – Maringá – Rel.: DESEMBARGADOR FABIAN SCHWEITZER – J. 19.04.2021).
(TJ-SC – AI: 40101429320168240000 Biguaçu 4010142-93.2016.8.24.0000, Relator: Jânio Machado, Data de Julgamento: 09/03/2017, Quinta Câmara de Direito Comercial).
(TJ-SP – AI: 22375776720188260000 SP 2237577-67.2018.8.26.0000, Relator: Araldo Telles, Data de Julgamento: 10/12/2019, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 11/12/2019).

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