Observatório Constitucional

Diacronia na apreciação de veto presidencial pelo Congresso Nacional

Autor

  • Marcelo Casseb Continentino

    é doutor em Direito pela UnB/Università degli Studi di Firenze professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Ufersa procurador do estado de Pernambuco advogado e sócio efetivo do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

9 de outubro de 2021, 8h00

Diz-se que tempo é dinheiro. Em matéria de política, contudo, o domínio do tempo pode ser mais do que dinheiro, pode ser poder. Já o demonstraram Rafael Mafei e Virgílio Afonso como o presidente da Câmara dos Deputados assenhorou-se de um poder que nem o regimento interno nem a Constituição Federal lhe conferiram [1], decorrente da suposta liberalidade autoconcebida de decidir os diversos pedidos de impeachment contra o presidente da República no momento em que entender adequado, conveniente e oportuno, ainda que esse tempo nunca chegue.

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Essa, porém, não é a única forma de controle do tempo e de exercício de poder político no âmbito do Poder Legislativo.

Chamou-nos a atenção o fato de o Congresso Nacional, em abril deste ano, ter apreciado veto parcial (Veto 08/2009 [2]) aposto pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva, em 2008, ao projeto de lei de conversão, decorrente da Medida Provisória nº 441/2008 (PLV 28/2008 [3]), convertida na Lei nº 11.907, de 2 de fevereiro de 2009, que dispunha sobre reestruturação e recomposição remuneratória de diversas carreiras do Poder Executivo.

Com a rejeição de um dos vetos parciais ao referido PLV, o Congresso Nacional autorizou a transformação do cargo de técnico da Receita Federal em analista tributário. Esse dispositivo foi vetado pelo presidente ao argumento de sua inconstitucionalidade, por afronta ao princípio do concurso público para provimento de novos cargos públicos (artigo 37, II) e por acarretar aumento de despesa (artigo 63, inciso I) [4].

No entanto, o Congresso Nacional rejeitou o veto em questão e autorizou a referida transformação de cargos, que, além de inconstitucional (por incorrer em "ascensão funcional"), gerou um impacto financeiro imediato de aproximadamente R$ 2,8 bilhões [5], criando ainda uma despesa permanente anual superior a R$ 190 milhões.

Não foram 12 dias, 12 semanas nem mesmo 12 meses. Foram 12 anos depois.

Tamanha diacronia no exercício de prerrogativa constitucional de apreciar vetos presidenciais, que sugere inequívoco descuido do Poder Legislativo, suscita dúvidas sobre a legitimidade do processo legislativo. Como poderia um projeto de lei (em sua fase finalíssima, após sofrer veto presidencial) adormecer por quase 12 anos no Congresso Nacional e, após uma sessão na Câmara e outra no Senado, renascer no mundo jurídico trazendo tamanho impacto às contas públicas?

Seria tal procedimento compatível com o processo legislativo previsto na Constituição Federal de 1988? Quando o legislador constituinte fixou o prazo de 30 dias para o Congresso Nacional, estabelecendo uma sanção para o descumprimento, não pareceria evidente que a rejeição do veto deve ser um instituto que mantenha alguma sincronia com o ato presidencial de vetar?

Sabemos que o presidente da República tem o prazo de 15 dias úteis para vetar ou sancionar os projetos de lei aprovados pelo Poder Legislativo (artigo 66, §1º). Aposto o veto, ele tem mais 48 horas para comunicar seus motivos ao Senado Federal.

O Congresso Nacional, a contar do recebimento da comunicação, deve em até 30 dias apreciar o veto, confirmando-o ou rejeitando-o por maioria absoluta dos votos dos senadores e deputados (artigo 66, §4º). Transcorrido o prazo sem deliberação, o veto será colocado na ordem do dia, sobrestando as demais proposições (artigo 66, §6º).

Não obstante a clareza das normas relativas aos prazos legislativos, formou-se um "costume inconstitucional" no Congresso Nacional, que resultou no acúmulo de centenas de vetos pendentes que há anos aguardam apreciação. Até que a presidente da República, Dilma Rousseff, vetou parcialmente o Projeto de Lei nº 2565/2011 (Veto 38/2012), que deu origem à Lei nº 12.734/2012, a qual fixou novas regras de distribuição dos royalties entre os entes da federação.

O deputado Alessandro Molon e outros parlamentares impetraram mandado de segurança (MS 31816) perante o Supremo Tribunal Federal alegando que, em face da iminente apreciação do referido veto pelo Congresso, poderia configurar-se violação ao direito público subjetivo parlamentar de submeter-se ao devido processo legislativo constitucional, vez que a deliberação do veto ao PL 2565/2011 afrontaria os §§4º e 6º do artigo 66 da Constituição, que determinam o sobrestamento das demais proposições até que se ultime a apreciação do veto; havendo mais de três mil vetos pendentes, alegaram os impetrantes, o Congresso Nacional não mais poderia dispor aleatoriamente do "poder de pautar" os vetos mais recentes, antes de pronunciar-se sobre todos aqueles anteriormente encaminhados para que, somente assim, pudesse legitimamente discutir os demais, inclusive o "veto dos royalties".

Para o ministro Fux, dada sua renitente omissão inconstitucional, o Congresso teria declinado de seu "poder de pautar" não mais podendo livremente decidir quais vetos poderia apreciar no universo total de projetos rejeitados pendentes de apreciação: "O absurdo aqui salta aos olhos: a inércia deliberativa de um dia não dá qualquer opção ao legislador sobre o que votar; já a inércia deliberativa de 4.325 dias abriria ao legislador 3.060 opções quanto ao que votar" (MS 31816 MC). Então, deferiu a liminar e determinou ao Congresso que analisasse todos os vetos pendentes com prazo expirado, observando a "ordem cronológica" de recebimento das respectivas comunicações antes de deliberar acerca do Veto 38/2012.

No agravo regimental, a tese do relator não prevaleceu, mas aquela defendida pelo ministro Teori Zavascki. Não havia como negar, segundo o saudoso ministro do STF, que mais de dez anos sem apreciação de vetos configurara ofensa ao devido processo legislativo constitucional, bem como que o prazo constitucional tem "caráter peremptório" (nos termos do artigo 66, §§4 e 6), operando a "caducidade". Contudo, o ministro Zavascki ponderou que a rígida interpretação dos dispositivos constitucionais atrairia um "futuro caótico para a atuação do Congresso" e, ainda, um "manto de insegurança sobre todas as deliberações tomadas pelo Congresso Nacional nos últimos 13 anos".

Na esteira do entendimento firmado na ADI 4029, em que o STF julgou situação similar ao examinar a constitucionalidade do processo de conversão em lei das medidas provisórias sem estrita observância ao rito procedimental previsto no artigo 62 da Constituição, o STF deu provimento ao agravo e determinou que, somente a partir dos novos vetos encaminhados, o Congresso teria sua pauta sobrestada, caso ultrapassado o prazo dos 30 dias úteis para apreciá-los.

O Congresso Nacional, após o julgamento, mudou seu regimento comum [6], que originariamente revelava duvidosa constitucionalidade ao prever que o prazo não se contaria do recebimento da comunicação presidencial do veto, mas da convocação do presidente do Congresso para discuti-lo [7].

Claro, a decisão do STF resolveu, em parte, os problemas para o futuro. Contudo, remanesce pendente passivo superior a três mil vetos presidenciais não apreciados, cujo impacto social, jurídico, econômico e político, como a rejeição diacrônica ao Veto 08/2009 expôs, é incomensurável. Afora o indesejado precedente que se ostenta, dotado do risco de potencial reprodução nas esferas estaduais e municipais.

Nesse curto espaço, não temos como explorar de modo adequado todas as implicações da matéria, não obstante arriscaremos algumas intuições a título de contribuição para o debate para posterior desenvolvimento.

Primeiro, sendo o veto relativo e não absoluto [8], porque se condiciona à posterior confirmação pelo Congresso Nacional, uma interpretação constitucionalmente adequada sugere que, não sancionado, o projeto de lei não se transforma em lei; como projeto de lei, com fundamento no "princípio da unidade da legislatura" [9], deveria submeter-se às regras de arquivamento em geral dos projetos de lei não concluídos ao final da legislatura, sendo necessário, nessa hipótese, realizarem-se as devidas adequações nos regimentos internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

Evidentemente essa interpretação tem suas fragilidades a exemplo de eventualmente retomar, ainda que de forma indireta, a sistemática presente na Carta de 1967/69 [10], na qual a inércia legislativa, transcorrido o prazo de 45 dias, configurava a confirmação tácita do veto presidencial, o que foi compreendido como um modo de prevalência institucional do Executivo sobre o Legislativo e, portanto, uma expressão do autoritarismo constitucional.

Uma segunda possibilidade interpretativa, partindo da premissa de harmonia e independência entre os poderes (artigo 2º), reconhece ser inadmissível interpretação constitucional que conduza ao apequenamento institucional de qualquer dos poderes. No enorme passivo de vetos pendentes de apreciação pelo Congresso Nacional, há por certo inúmeras outras situações similares ao Veto 08/2009, cuja rejeição tem o condão de acarretar impacto orçamentário-financeiro.

O diacronismo na apreciação do veto presidencial, nesse contexto, pode configurar uso abusivo de prerrogativa constitucional. No caso aqui examinado, há situação de evidente prevalência do Legislativo sobre o Executivo, que pode tornar-se "refém" de diversas pressões oriundas do Congresso Nacional, haja vista o impacto de bilhões de reais depender de apenas uma única decisão do legislativa.

Em tal hipótese, em que a rejeição ao veto se dá diacronicamente, facilmente se verifica que a nova despesa não mais está prevista na Lei Orçamentária (LOA), de Diretrizes Orçamentárias (LDO) ou mesmo no Plano Plurianual (PPA). Além dos dispositivos constitucionais violados já indicados no veto presidencial (artigo 37, II, e artigo 63, I), descumprem-se, ainda, os artigo 165 e seguintes da Constituição, que tratam da constituição orçamentária, que confere especial apreço ao princípio do equilíbrio orçamentário, e o artigo 113 do ADCT, recentemente incluído na Constituição de 1988, segundo o qual a "proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro".

Portanto, a interpretação constitucionalmente adequada em situações em que a recusa diacrônica do veto presidencial envolva o aumento da despesa pública com sensível repercussão orçamentária, seria a "caducidade" dos efeitos restauradores de que a rejeição ao veto presidencial pelo Congresso Nacional sincronicamente realizada se revestiria, haja vista a incompatibilidade da lei recém-criada com outras normas da Constituição. Não podemos ignorar, portanto, que o fator tempo constitui elemento fundamental da interpretação constitucional e da própria dimensão semântica da constitucionalidade das normas.

A prática de rejeição diacrônica do veto presidencial, ademais, com sensível impacto nas contas públicas não condiz com o Estado democrático de Direito. Em tempos em que a democracia é posta à prova no mundo inteiro, o Poder Legislativo há de ser a primeira trincheira institucional a assegurar o respeito à Constituição e ao Estado democrático de Direito. Torna-se incompreensível, pois, que a prerrogativa constitucional de rejeição do veto presidencial tenha seu uso enviesado para que, em vez de constituir a legítima contenção de um poder institucional pelo outro, configure justamente uma ameaça à separação dos poderes ou um instrumento de pressão institucional para obtenção de resultados outros que extrapolem o interesse público, como tudo faz sugerir no caso da rejeição do Veto 08/2009, ao contemplar-se uma determinada carreira de servidores do Poder Executivo com o estratosférico impacto financeiro de quase R$ 3 bilhões nas contas públicas de um país, justo no momento em que enfrenta a maior crise econômica e financeira dos últimos tempos.

Aceitar tal possibilidade como constitucionalmente tolerável significa, em outras palavras, atribuir ao presidente do Congresso Nacional o poder de controlar o tempo. E tempo, mais do que dinheiro, é também poder, inclusive contra a democracia e seus princípios constitucionais.


[6] A redação vigente do Regimento Comum do Congresso Nacional (Resolução nº 1 de 1970, alterada pelo Ato da Mesa nº 1 de 2015) prevê:
"Artigo 104-A – O prazo de que trata o §4º do artigo 66 da Constituição Federal será contado da protocolização do veto na Presidência do Senado Federal".

[7] O artigo 104, §1º, do Regimento Comum do Congresso Nacional ((Resolução nº 1 de 1970), em sua redação originária, previa:
"Artigo 104 – Comunicado o veto ao presidente do Senado, este convocará sessão conjunta, a realizar-se dentro de 72 (setenta e duas) horas, para dar conhecimento da matéria ao Congresso Nacional, designação da Comissão Mista que deverá relatá-lo e estabelecimento do calendário de sua tramitação.
§1º. O prazo de que trata o §4o do artigo 66 da Constituição será contado a partir da sessão convocada para conhecimento da matéria".

[8] Cf. MENDES, Gilmar Ferreira & BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 937.

[9] Cf. SILVA, José Afonso. Processo constitucional de formação das leis. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 50-52. Segundo José Afonso da Silva, o caráter representativo do Congresso Nacional e independente entre a atual e as futuras legislaturas de cada legislatura configura "um novo Congresso" (artigo 44, parágrafo único, da Constituição Federal), de sorte que a nova composição do Legislativo não deve iniciar sua jornada legislativa de quatro anos vinculada pelas matérias e compromissos legados pela legislatura anterior.

[10] "Artigo 59, §4º – Esgotado sem deliberação o prazo estabelecido no parágrafo anterior, o veto será considerado mantido".

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    é doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)/Università degli Studi di Firenze, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco (FCAP/UPE) e do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado) da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) e procurador do Estado de Pernambuco.

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