Opinião

Os 33 anos da promulgação da Constituição Federal

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9 de outubro de 2021, 13h57

Discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.

Com essas palavras de Ulisses Guimarães, entre outras, era promulgada no dia 5 de outubro a Constituição Federal de 1988, a chamada Constituição Cidadã.

Nascida no seio de uma sociedade recém-reprimida com políticas e normas antijurídicas, a Constituição Federal de 1988 refundou o Estado democrático de Direito brasileiro, trazendo uma ideologia inovadora, moderna e garantidora das liberdades individuais.

Para sua construção, importaram-se muitas das normas criadas por outros países, em especial os europeus, fazendo do Direito brasileiro um instrumento moderno e pacificador, mas sem história que o justificasse.

Quando a história de uma nação não conta com suor, batalhas e sangue na construção das normas, elas não têm validade histórica no seio social. O povo não compreende a norma e por isso não luta por ela. Não há, assim, uma confiança associada à norma constitucional de que aquelas palavras, de fato, representam a vontade e os anseios do povo. Não há confiança legítima.

Sem confiança, não há respeito.

E uma coisa que o Brasil não aprendeu, ainda, é a valorizar o passado e com ele aprender (mesmo que seja o passado dos outros). Por mais que não tenhamos sentido diretamente, como povo, a trágica história dos países de que importamos as ideias normativas, como França e Alemanha, poderíamos ter aprendido com eles e evoluído nossa nação, dando à nossa Constituição de 1988 o status e respeito que deveria ter, mas preferimos desprestigiá-la todos os dias e apoiar sua transfiguração.

Não existiu, por se dizer, uma construção real, no seio social, de muitos dos princípios normativos que nos regem, razão pela qual o brasileiro ainda é acostumado com um certo "jeitinho", ou com a busca por uma "brecha" qualquer que lhe beneficie. Não existe, ainda, um sentimento coletivo, a busca pelo bem de todos e para todos, mas ainda muito individualismo, a busca do melhor para o eu e para os nossos. E isso tem explicação: quando normas garantidoras universais são efetivadas apenas para pequenos grupos, cria-se uma repulsa.

A Constituição de 1988 é a Carta Magna do país recordista em desigualdade e distribuição de renda há décadas, demonstrando que suas ideologias e princípios não foram implementados de fato para todos, só para alguns. Essa é a causa de sua insistente destruição, pois quem já é agraciado quer ser mais, mas em detrimento do resto da sociedade, do povo. Para isso, lutam por políticas que desnaturam a Constituição em favor de suas vontades particulares. Reduzem a distribuição de renda com benefícios sociais, com os salários cada vez mais baixos em razão de políticas de emprego incondizentes com a realidade social e jurídica do país; criam um divisionismo social entre classes, preconceituando pessoas que necessitam e valorizando o falso sentimento de empreendedorismo num país sem renda para distribuir e consumir; valorizam a nação alheia, mesmo que nos repulse como inoportunos. É esse o pensamento de quem deseja reformar para destruir a Constituição, pois a gama de garantias atrapalha quem mais quer concentrar a renda.

Certamente esse sentimento de desligamento da sociedade às normas tem nascedouro nas históricas políticas que administram este país, as quais desvirtuam o sentimento de nação e permitem o apoio a constantes e insistentes tentativas de reformas de nossa Constituição. Ao que parece, para alguns ainda há um sentimento de construção de uma nova constituição, pois a atual, mais emendada que um grave ferimento de guerra, está perdendo a sua essência.

Temos, então, várias pessoas apoiando emendas e reformas para que o texto constitucional, em tese, sirva às suas vontades ou expectativas, e essa vontade não parte, apenas, de setores individuais ou organizados da sociedade. Muitas dessas propostas são feitas pela Administração Pública por pessoas que vivem no Brasil sem conhecê-lo de fato. Vivem um mundo das maravilhas e comparações, querendo alçar o país a uma realidade que não lhe pertence. Afinal, podemos aprender com a história, mas não a repetir.

Não é incomum que propostas de reformas sejam baseadas em comparativos com outros países, as quais tem uma visão proposital para induzir os juízos sociais e democráticos em erro. Assim ocorreu com a reforma da Previdência recente, deflagrada pela Emenda Constitucional nº 103/2019, e é o que vem acontecendo com a atual proposta de reforma administrativa. E são essas emendas que vem desfigurando, aos poucos, a Constituição, criando instrumentos juridicamente inseguros e passíveis de controle jurisdicional constante.

Chegamos ao absurdo jurídico de aprovar uma emenda constitucional eivada de erros, como ocorreu com a EC 103/2019, e apresentar a confissão desse fato por meio de uma PEC paralela, que tinha a intenção de rapidamente corrigir os erros da emenda aprovada, mas que precisava ser promulgada às pressas para garantir as políticas fiscais do novo governo, sem se preocupar com a segurança jurídica.

Por conta deste fato, hoje temos uma emenda constitucional altamente judicializada, que não confere segurança jurídica e que ainda está na pendência de confirmação de vários pontos pela aprovação da PEC paralela, um instrumento legislativo irregular que serve, apenas, para atender anseios políticos, mesmo que importe na garantia da insegurança jurídica da Carta Magna nacional.

Por falar em controle jurisdicional, caberia ao Poder Judiciário, em especial ao Supremo Tribunal Federal, ser o guardião da Constituição, mas tem atuado nos últimos anos como um bombeiro, tentando aos poucos apagar os incêndios promovidos por textos constitucionais que não possuem validade jurídica. Esse é o caso das ações diretas de inconstitucionalidade de normas constitucionais — uma redundância ou vício social? — que buscam declarar inconstitucional partes de reformas que alteram a Constituição e que possuem vários vícios.

Inclusive, esse fenômeno da crescente judicialização do Processo Legislativo tem demonstrado que os representantes do povo estão com dificuldades para interpretar as demandas de seu povo. Na prática, ideologias e vontades outras assumem a razão legislativa, permitindo que vários "jabutis" sejam inseridos em textos sérios e que demandariam uma apreciação calma e zelosa, mas que cedem lugar à pressa para satisfazer vontades econômicas desconhecidas, que nunca se revertem em favor da nação ou favorecem a distribuição de renda, único mecanismo para redução das desigualdades e para favorecer o crescimento econômico, aliado à confiança legítima do cidadão no Estado e em suas normas.

Atualmente várias ADIs tramitam no STF, sendo a mais relevante delas aquela que pretende declarar inconstitucional, por abuso normativo e jurídico, as novas regras transitórias que regem os benefícios de pensões por morte, cujos efeitos mostraram drásticas reduções na renda de famílias, alçando-as ao desamparo e à desordem social em um cenário pandêmico não só na saúde pública, como também no mercado de trabalho e na economia.

Não somente no que trata a previdência é que a Constituição vem sendo emendada. Agora, além da reforma administrativa — que vem ignorando o passado dos períodos de repressão contra os servidores —, outra proposta arrepia: a PEC dos Precatórios.

Por meio de uma emenda constitucional, o Poder Executivo quer solucionar um dos "problemas" do Estado gerando uma moratória forçada nas dívidas de direitos que foram violados pelo próprio Estado, contra seus cidadãos e contra empresas nacionais.

O que impressiona da razão e ocasião da proposta sobre os precatórios é a falta de conhecimento sobre as políticas e orçamentos do Estado, em especial no que tange à dívida pública interna e externa. Essa dívida é vista pelo Poder Executivo — não só deste governo, mas de todos desde antes mesmo a constituinte — como sagrada, um tabu que nunca foi investigado ou auditado. Essa dívida apenas é paga, mas sem saber para quem, por que ou desde quando.

Há anos existe um movimento no Brasil que pede, apenas, a auditoria da dívida pública nacional, a qual consegue a façanha de assumir quase 50% do orçamento federal sem que qualquer parlamentar ou membros dos poderes a questione com exatidão. Culpam a todos — servidores públicos, a Previdência, a assistência social etc. — sem saber que essa dívida é formada por título de imensos valores e que não são adquiríveis por qualquer um, senão por instituições bancárias.

No TRF da 1ª Região, no DF, uma ação civil pública foi julgada procedente ordenando que o Congresso Nacional exerça a obrigação constitucional estabelecida pelo artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, com vistas a realizar a auditoria da dívida pública nacional. Da sentença foram interpostos recursos que estão sob análise do TRF-1 há alguns anos, sem resposta efetiva ainda e sem, em especial, a auditoria.

Considerado esse fato, cabe-nos perguntar: por que o Estado se preocupa tanto com benefícios sociais — mantenedores da ordem social, vale dizer — ,com precatórios de dívidas oriundas de Direitos maculados pelo Estado, com a estabilidade de servidores públicos, entre outros assuntos, mas não se preocupa com a oculta dívida pública?

Assim, vemos que a data de promulgação da Constituição há 33 anos é difícil de ser comemorada, e vem sendo, inclusive, esquecida. Nosso povo ainda não entendeu que é preciso união e verdade para que o Estado seja uma República democrática de Direito e que, para isso, precisamos defender a nossa Constituição com paz e cuidado, não apoiando reformas pautadas em políticas atormentadas pela pressa e ansiedade do mercado, que nunca nos retribui a perda de direitos.

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