Opinião

Puseram 'jabutis' no CPC: a inconstitucionalidade da Lei 14.195/2021

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9 de outubro de 2021, 9h13

Causou-me estranheza a promulgação da Lei 14.195, de 26 de agosto deste ano, que resultou da conversão da Medida Provisória 1.040, de 29 de março, a começar pela extensão das ementas de uma e outra.

Numa simples visão das duas ementas, vislumbrei tantos "jabutis" que resolvi tecer algumas considerações especificamente sobre aqueles que foram, com evidente afronta à Constituição, colocados no Código de Processo Civil (CPC).

A possibilidade da adoção de medidas provisórias, com força de lei, pelo presidente da República vem contemplada no artigo 62, caput, da Constituição, dispondo que poderá ele, em caso de relevância e urgência, (ambas conjuntamente) adotá-las, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.

Ressalvado o disposto nos §§11 e 12 do artigo 62, as medidas provisórias perdem sua eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de 60 dias, prorrogável, nos termos do §7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes (CF: artigo 62, §3º).

Para evitar a invasão de competência legislativa de outros poderes, como vinha ocorrendo, desde a promulgação da Constituição em vigor, a Emenda Constitucional 32/2001 vedou de forma expressa a edição de medidas provisórias sobre diversas matérias (artigo 62, §1º, I a IV), dentre as quais sobre Direito Processual Civil (CF: artigo 62, §1º, I, "b").

As leis processuais são veiculadas através de lei ordinária (CF: artigo 59, III), nos moldes estabelecidos em Lei Complementar (CF: artigo 59, parágrafo único), sendo essa competência privativa da União (CF: artigos 22, I), cabendo ao Congresso Nacional, com a sanção do presidente da República, dispor sobre todas as matérias de competência da União (CF: artigo 48, caput), e a qualquer membro da Câmara dos Deputados e do Senado Federal a iniciativa das leis ordinárias, na forma e nos casos previstos na Constituição (CF: artigo 61, caput).

Em cumprimento do texto constitucional (artigo 59, parágrafo único), foi promulgada a Lei Complementar 95/1998, dispondo: a) o artigo 1º que a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis obedecerão ao disposto nesta lei complementar; e b) o artigo 7º que o primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: 1) excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto; e 2) a lei não conterá matéria estranha ao seu objeto ou a este não vinculada por afinidade ou conexão.

No particular, o Congresso Nacional usa de um subterfúgio para legislar, através da chamada "emenda de redação" (CF: artigo 118, §8º do regimento interno da Câmara dos Deputados), que deveria ter o propósito regimental de sanar o vício de linguagem, incorreção de técnica legislativa ou lapso manifesto, mas acaba por modificar o próprio texto original e até mesmo fazer acréscimos, que não encontram apoio no preceito regimental. Como ninguém neste país, nem as instituições, fiscalizam nada, o sistema legislativo acaba por consentir, patologicamente, leis como a recente Lei 14.195/2021, que introduziu no seu artigo 44 diversas disposições no Código de Processo Civil.

As medidas provisórias terão sua votação iniciada na Câmara dos Deputados, como reza o §8º do artigo 62 da Constituição, cabendo, nos termos do §9º desse mesmo artigo, à comissão mista de deputados e senadores examiná-las e sobre elas emitir parecer antes de serem apreciadas em sessão separada, pelo Plenário de cada uma das casas do Congresso Nacional.

Quando aprovada pelo Congresso Nacional, a medida provisória é convertida em lei, através da chamada "lei de conversão", lei esta que deveria converter apenas o que se contém, realmente, na medida provisória, sem travesti-la em lei ordinária, incorporando-lhe normas gerais que não tenham constado do texto original, porque o processo legislativo da lei ordinária é distinto do processo relativo à medida provisória.

Embora a lei de conversão deva ater-se em converter em lei ordinária a medida provisória tal como adotada pelo presidente da República e encaminhada ao Congresso Nacional, tem constituído o momento ideal para se acrescentar àquela medida normas gerais, que deveriam ser objeto de projeto de lei ordinária, o que se tem denominado, vulgarmente, de "emenda jabuti".

O autor desse termo "emenda jabuti" foi o saudoso deputado Ulysses Guimarães, aludindo a emenda parlamentar sem a nenhuma ligação com a medida provisória submetida à aprovação do Congresso Nacional, dizendo ele que: "Jabuti não sobe em árvore, pelo que, se ele está lá, ou foi enchente, ou foi mão de gente".

Portanto, jabuti se refere a emenda parlamentar que não tem ligação direta com o texto principal, submetido à aprovação do Congresso Nacional, sendo considerada como verdadeiro "contrabando legislativo" pelo STF, que a proibiu em medidas provisórias, só admitindo emendas de parlamentares para restringir, adequar ou adaptar assuntos referentes ao tema principal, e, mesmo assim, desde que não o desfigurem. Esse anômalo expediente é conhecido, também, como "colcha de retalhos".

Na visão do Supremo Tribunal Federal (expressa neste julgamento de 2015 (ADI 5.127/DF), "o que tem sido chamado de contrabando legislativo, caracterizado pela introdução de matéria estranha à medida provisória submetida à conversão (em lei), não denota mera inobservância de formalidade, e, sim, procedimento marcadamente antidemocrático, na medida em que, intencionalmente ou não, subtrai do debate público e do ambiente deliberativo próprios ao rito ordinário dos trabalhos legislativos a discussão sobre as normas que irão regular a vida em sociedade. Com efeito, 'nas democracias constitucionais contemporâneas apenas as normas postas pelos representantes do povo construídas por meio de um processo específico podem obrigar ou proibir uma ação ou omissão, como consta, p. ex. no artigo 5º, II, da Constituição Federal. Isso significa que a soberania popular deve ser exercida nos limites determinados pela ordem jurídica, cujas normas apenas são válidas se criadas nos marcos constitucionais do devido processo (…)
Não se trata em absoluto apenas de aproveitar o rito mais célere para fazer avançar o processo legislativo, supostamente sem prejuízo. A hipótese evidencia violação do direito fundamental ao devido processo legislativo — o direito que têm todos os cidadãos de não sofrer interferência, na sua esfera privada de interesses, senão mediante normas jurídicas produzidas em conformidade com o procedimento constitucionalmente determinado (…)". 

Em função desse julgamento, o STF cientificou o Poder Legislativo de haver o Supremo Tribunal Federal afirmado, com efeitos ex nunc (para o futuro), não ser compatível com a Constituição "a apresentação de emendas sem relação de pertinência temática com medida provisória submetida a sua apreciação".

Os "contrabandos legislativos" ou "emendas jabutis", desde 2002 —, muito antes, portanto, da histórica decisão do STF na ADI 5.127/DF, que é de 2015 —, são vedados pelo §4º do artigo 4º da Resolução n° 1/2002 do Congresso Nacional, mas sempre houve muita dificuldade, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, na efetivação desse controle.

A Resolução nº 1/2002-CN dispõe sobre a apreciação pelo Congresso Nacional, das medidas provisórias a que se refere o artigo 62 da Constituição Federal, prevendo no §4º do seu artigo 4º que:

"Artigo 4º  Omissis. (…)
§4º 
 É vedada a apresentação de emendas que versem sobre matéria estranha àquela tratada na medida provisória, cabendo ao presidente da Comissão o seu indeferimento liminar".

Esta norma, uma das que compõe o Regimento Comum do Congresso Nacional nunca foi observada pelos parlamentares, deputados e senadores, nem antes, nem depois da decisão do STF, na ADI 5.127/DF, e será pouco provável que algum dia venha a ser, pois inúmeras medidas provisórias têm servido de árvores para hospedar os "jabutis" — ou de porto para os "contrabandos legislativos", do que é exemplo a recentíssima Lei 14.195, em que o seu artigo 44 pegou carona para alterar nada menos do que sete artigos da Lei 13.105/2015, que contém o Código de Processo Civil.

Evidentemente que tais emendas à medida provisória não poderão conter matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão (LC 95/2998: artigo 7º, II).

Apesar da regulação regimental, não se tem conhecimento — a não ser no âmbito interno das duas casas do Congresso Nacional — da "forma como esses jabutis são colocados nas árvores", ganhando visibilidade para a nação apenas quando a lei resultante da conversão da medida provisória é publicada no Diário Oficial da União, já com a determinação da data em que começará a produzir os seus efeitos legais.  

A Lei 14.195/202 é aquela que altera o Código de Processo Civil, cujo artigo 44 introduz alteração nos artigos 77, 231, 238, 246, 247, 397 e 921, e cujo artigo 57, XXXII, revoga os incisos I, II, III, IV e V do caput do artigo 246 desse mesmo código, preceitos que, além de constituir matéria estranha ao objeto da Medida Provisória 1.040/2021, não estão vinculados a ele por afinidade, pertinência ou conexão (LC 95/1998: artigo 7º, II).

Estando a medida provisória sujeita aos requisitos de relevância e urgência (CF: artigo 62, caput), o que não acontece com as outras matérias (rectius, disposições) que pegaram carona na operação de conversão da medida provisória em lei, vê-se que tudo o que foi aprovado pelo Congresso Nacional, nessa ocasião, carece de suporte constitucional, mesmo porque, se houvesse relevância e urgência, teria sido incluída pelo presidente da República na MP 1.040/2021, e não foi.

Tanto a lei de conversão quando a medida provisória, genericamente, estão sujeitas ao formalismo da Lei Complementar 95/1998, por determinação expressa do parágrafo único do seu artigo 1º: "As disposições desta lei complementar aplicam-se, ainda, às medidas provisórias e demais atos normativos referidos no artigo 59 da Constituição Federal, bem como, no que couber, aos decretos e aos demais atos de regulamentação expedidos por órgãos do Poder Executivo". Destarte, a medida provisória deve também observância aos princípios referidos pelo artigo 7º da LC 95/1998: "I — (…) cada lei tratará de um único objeto; e II — a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão".

Por ocasião da conversão da Medida Provisória 1.040/2021 na Lei 14.195/2021, o Congresso Nacional legislou no vácuo porque, ao agir pela forma como agiu, acabou "convertendo em lei" preceitos que não figuravam na precitada medida provisória, ou seja, converteu miragens em regras legais concretas, que acabaram adquirindo concretude na ordem jurídica.

Para garantir a legalidade e a constitucionalidade da Lei 14.195/2021, a Medida Provisória 1.040/2021 só poderia ter sido convertida em lei com a observância do texto original, admitindo-se, quando muito, adaptações pontuais, por emendas permitidas pelo regimento interno da Câmara dos Deputados (CF: artigo 118), desde que pertinentes ao seu objeto — que era "a facilitação para abertura de empresas, a proteção de acionistas minoritários, a facilitação do comércio exterior, o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos, as cobranças realizadas pelos conselhos profissionais, a profissão de tradutor e intérprete público, a obtenção de eletricidade" (a prescrição intercorrente no Código Civil deveria ter sido excluída) —, mas, jamais, alterar o Código de Processo Civil para inserir nele as regras dos artigos 77, 231, 238, 246, 247, 397 e 921, que nada têm a ver com o objeto da medida provisória convertida, nem mantêm com ela qualquer vinculação por afinidade, pertinência ou conexão. Ademais, a norma processual é uma regra geral, não podendo ser veiculada no texto de uma lei especial, como é a Lei 14.195/021 — que trata de Direito Empresarial, comércio exterior, sistema de recuperação de ativos, cobranças pelos conselhos profissionais, profissão de tradutor e intérprete e obtenção de eletricidade —, o que inviabiliza, ainda mais, os exagerados e inconstitucionais enxertos-jabutis que a precitada medida provisória sofreu no Congresso Nacional.

A (ir)responsabilidade pela conversão da Medida Provisória 1.040/2021 na Lei 14.195/2021, com tantos "jabutis" pendurados nela, é do Congresso Nacional no seu conjunto, porque tanto os deputados quanto os senadores são simpatizantes desse procedimento, porque têm sempre interesse partidário em jogo, no sentido de fazer com que certas regras legais entrem pela porta dos fundos da lei de conversão, pegando carona nela com o propósito de se livrar do processo legislativo, onde nem sempre alcançam os mesmos objetivos.

Os "jabutis" pendurados nessa árvore, que é a Lei 14.195/2021 —, resultante da Medida Provisória 1.040/2021 —, ou, mais precisamente, no seu artigo 44, são os artigos 77, 231, 238, 246, 247, 397 e 921 do CPC, que foram por ele alterados, além do artigo 57, XXXII, que revogou os incisos I a V do caput do artigo 246 do mesmo código, por serem, todos, preceitos que, a par de constituir matéria estranha ao objeto da medida provisória convertida, não estão vinculados a ele por afinidade, pertinência ou conexão (LC 95/1998: artigo 7º, II).

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