Opinião

Regime remuneratório dos TCs: salvaguarda para a judicatura de contas

Autor

  • Valdecir Pascoal

    é conselheiro e diretor da Escola do TCE-PE e pós-graduado em Direito Constitucional e Administrativo (UFPE). Foi presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon).

8 de outubro de 2021, 21h16

As 17 ações diretas de inconstitucionalidade impetradas pelo procurador-geral da República questionando normas estaduais que definiram critérios de remuneração dos auditores a que se referem o artigo 73 da Constituição Federal têm o condão de mitigar sobremaneira a autonomia e a independência desses agentes ingressos por concurso público nos Tribunais de Contas, que asseguram heterogeneidade técnica no exercício da judicatura de contas e na composição desses órgãos.

Os auditores foram distinguidos de maneira muito especial pela Constituição Federal. Eles desempenham atividades próprias da judicatura, presidindo e proferindo decisões monocráticas em processos de sua relatoria, exercendo a substituição dos membros titulares (ministros, no plano federal, ou conselheiros, nos planos estadual e municipal), além da prática dos demais atos relacionados à judicatura de contas, segundo o regramento do artigo 73, §4º, da Constituição Federal de 1988 [1].

Auditor foi a nomenclatura utilizada pelo constituinte de 1988 para se referir aos membros julgadores responsáveis por substituírem os membros titulares dos Tribunais de Contas. A imprecisão terminológica gerou e gera confusões até os dias atuais, notadamente pela existência de uma outra carreira denominada de auditor de controle externo, cargo constituído por servidores dos quadros técnicos dos Tribunais de Contas, cujas atividades de fiscalização são distintas das atribuições de julgamento.

Com o propósito de dirimir qualquer dúvida, a Lei nº 12.811/13, em seu artigo 3º, passou a denominar os "auditores" de "ministros-substitutos" no âmbito do Tribunal de Contas da União, o que se aplica de modo simétrico aos conselheiros substitutos no âmbito estadual e municipal. A mudança legislativa também está em consonância com o posicionamento do STF, conforme elucida a ministra Cármen Lúcia na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4541/BA [2].

Com efeito, a Constituição confere às atribuições dos membros substitutos (ministros/conselheiros substitutos) a mesma natureza jurídica dos membros titulares. Tanto os titulares como os seus substitutos exercem, ao fim e ao cabo, atribuições atinentes à judicatura de contas, conforme se extrai dos §§3º e 4º do artigo 73 da CF/88. E não poderia ser diferente. Afinal, a substituição de um julgador somente pode ocorrer por outro que tenha a mesma natureza jurídica de atribuições e que integre o mesmo regime jurídico. Não se imagina um desembargador sendo substituído por um servidor, mas apenas por membros que exercem a função de julgamento.

Dada a proximidade da judicatura de contas com a magistratura do Poder Judiciário, a Constituição estendeu os atributos da autonomia administrativa e orçamentária conferidos aos tribunais judiciais aos Tribunais de Contas, em seu artigo 73, caput, devendo, ainda, as normas atinentes à organização, composição e fiscalização traçadas para o Tribunal de Contas da União ser replicadas nos Tribunais de Contas dos demais entes federativos, por determinação do próprio texto constitucional, em seu artigo 75 (ADIs nºs 4659/DF [3], 3276/CE [4], 1994/ES [5] etc.).

Em relação aos seus integrantes, a Constituição Federal equiparou o regime jurídico dos membros dos Tribunais de Contas ao dos membros dos tribunais judiciais, quando estipulou que os ministros do Tribunal de Contas da União terão as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos ministros do Superior Tribunal de Justiça, ao passo que os ministros substitutos terão as mesmas garantias e os mesmos impedimentos do titular, quando em substituição, e as de juiz de Tribunal Regional Federal, quando no exercício das demais atribuições da judicatura.

Denota-se, portanto, que a Constituição Federal previu espécie de equiparação da remuneração dos ministros do TCU com a dos ministros do STJ, em manifesta exceção à regra constitucional da vedação à vinculação remuneratória a que alude o seu artigo 37, XIII.

De igual sorte, o TCU e os demais Tribunais de Contas, em função do princípio da simetria, devem observar o necessário escalonamento de subsídios entre seus integrantes, nos moldes do artigo 96, II, "b", c/c o artigo 93, inciso V, ambos da CF/88, aplicáveis aos Tribunais de Contas, por força do caput do artigo 73 da CF/88, como já exposto.

Destarte, no âmbito dos entes federados, cabe a adequada fixação de subsídios dos integrantes (titulares e substitutos) das cortes de contas, nos moldes estabelecidos no Judiciário local, escalonados de forma que a diferença entre um e outro não exceda a dez por cento, nem seja inferior a cinco por cento, a fim de dar máxima efetividade ao texto constitucional e de preservar a similitude entre os Tribunais de Contas e os tribunais judiciais, delineada pelo poder constituinte originário.

Ademais, o entendimento do STF acerca do escalonamento previsto no artigo 93, inciso V, da CF/1988 é de que se trata de norma de eficácia plena, com aplicação imediata, constituindo em garantia subjetiva da carreira de magistrados e uma limitação ao poder de legislar do Estado, como pronunciado no RE 272219/PB [6] e na ADI 764 [7].

Assim, ainda que inexista equiparação remuneratória dos ministros e conselheiros substitutos de forma direta com os magistrados da carreira judiciária, subsiste a obrigatoriedade de os Estados membros cumprirem a regra do escalonamento de subsídios no âmbito dos Tribunais de Contas, em que os subsídios dos substitutos devem possuir como parâmetro os dos titulares, já que aos membros substitutos foram conferidas a afinidade jurídica de atribuições e a identidade de regime jurídico com os titulares, sendo, por imposição constitucional, os únicos legitimados a substituir os ministros ou conselheiros, conforme entendimento consolidado do STF, a exemplo da ADI nº 4541/BA [8].

O fato é que não havendo dúvidas acerca do caráter judicante das atividades desenvolvidas pelos ministros/conselheiros substitutos, não resta outra conclusão senão a de que o regime remuneratório desses agentes deve guardar parâmetro com os integrantes dos titulares/Judiciário, pois, caso contrário, estaria se admitindo a possibilidade de um regime jurídico híbrido, o que não possui guarida no ordenamento jurídico vigente, sendo inclusive vedado, conforme entendimento do próprio STF (RTJ 177/772, relator ministro Moreira Alves, RE 457.662/RN, relator ministro Celso de Mello e outros)

O regime remuneratório é vinculado à lei estatutária que rege o cargo, que no caso dos ministros e conselheiros substitutos é a Loman [9], conforme determinado pela própria Constituição, já que possuem todas as demais vedações e impedimentos conferidos aos integrantes do Poder Judiciário. É de se esclarecer que referido cargo, tal como ocorre com o cargo de conselheiro, é um cargo isolado, ou seja, não integra carreira. São cargos vitalícios desde a posse, submetidos à regra do subsídio e, apesar de denominações distintas, possuem, por mandamento constitucional, mesma natureza jurídica de atribuições judicantes, razão pela qual, são regidos pelo mesmo regime estatutário.

Assim, as 17 ações diretas de inconstitucionalidade propostas perante o STF, em que a Procuradoria-Geral da República contesta o sistema remuneratório conferido pelos Estados aos conselheiros substitutos dos Tribunais de Contas, passam completamente ao largo do regime jurídico do cargo e da melhor hermenêutica jurídica constitucional, notadamente da interpretação teleológica e sistemática da Lei Maior.

Inicialmente, houve o ingresso da ADI em face da emenda constitucional do Rio Grande do Sul (ADI nº 6472) [10], que instituiu o escalonamento de subsídios entre os membros do Tribunal de Contas daquele Estado, sob o fundamento de ter incorrido em violação à regra da vedação à vinculação remuneratória, o que não subsiste, como já discorrido. Posteriormente, ingressou-se com outras 16 ADIs [11], nas quais questionam-se normas de diversos Estados que definiram os critérios de remuneração dos conselheiros substitutos, de forma a referenciá-la à dos integrantes do Poder Judiciário e/ou promover o escalonamento determinado pela Constituição.

O Parquet não se atentou, contudo, para o fato de que o sistema remuneratório dos conselheiros substitutos deve ser harmonizado com o regime jurídico do cargo, definido pela Constituição Federal desde 1988, e, em suas iniciais, embasou-se no princípio da simetria para pedir a declaração de inconstitucionalidade das normas impugnadas, mas esqueceu que os entes federados seguem o modelo federal delineado para o TCU, consoante disposição da própria Carta Magna. Em algumas iniciais como as ADIs nºs 6948/MG, 6950/DF, 6951/CE e 6952/AM, desconsideram-se, inclusive, precedentes do próprio STF que assegura equiparação remuneratória dos substitutos em relação aos titulares, quando no exercício da substituição, a exemplo das ADIs nº 134/RS e 507/AM [12].

Cabe salientar que caso, julgadas procedentes as mencionadas ADIs, o STF criará verdadeira lacuna normativa acerca do tratamento a ser conferido às remunerações dos conselheiros substitutos, mas, sobretudo, pode comprometer e mitigar a independência e a autonomia do cargo, já que o eventual afastamento das balizas remuneratórias mínimas subordinará a fixação dos subsídios dos membros substitutos ao alvedrio dos agentes políticos locais, investidos em cargos com mandatos transitórios, o que os sujeitará a possíveis pressões de ordem política, sobremaneira indispensável para o exercício da fiscalização, do controle dos recursos públicos e da própria atividade de substituição dos titulares.

A situação preocupa, mais ainda, quando se constata que as ADIs foram distribuídas a ministros-relatores diversos, o que pode romper a uniformidade do tratamento constitucional previsto para os entes federados, cujo modelo guarda obrigatória simetria com o TCU, e, consequentemente, pode implicar insegurança jurídica às cortes de contas de todo o país.

Espera-se, portanto, que a Suprema Corte reconheça as balizas e os critérios mínimos traçados para a definição dos subsídios dos membros substitutos das cortes de contas, dentro dos limites constitucionais de suas atribuições judicantes, a fim de evitar lacunas normativas e garantir maior segurança à atuação do cargo, no intuito de salvaguardar a independência e a autonomia dos ministros e conselheiros substitutos, absolutamente essenciais para o bom desempenho do controle externo brasileiro, na medida em que sua decisão vinculará todos os 33 Tribunais de Contas do Brasil, inclusive o TCU.

 


[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 19 jul. 2021.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 4541/BA. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur445561/false. Acesso em: 19 jul. 2021.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 4659/DF. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur410735/false. Acesso em: 19 jul. 2021.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 3276/CE. Disponível em:  https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur4518/false. Acesso em: 19 jul. 2021.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 1994/ES. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur91179/false. Acesso em: 19 jul. 2021.

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 272219/PB. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1817477

[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 764/PI. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1544179.

[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 4541/BA.

[9] Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979.

[10] ADI nº 6.472/RS, Relatora ministra Cármen Lúcia. Pendente de julgamento, com pedido de vistas ao ministro Dias Toffoli. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5946928. Acesso em: 10/08/2021.

[11] ADI nº 6.939/GO, Relator ministro Roberto Barroso. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6228938;
ADI nº 6.940/RR, Relator ministro Ricardo Lewandowski. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6228939; ADI nº 6941/SC, Relator ministro Alexandre de Moraes. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6228943;
ADI nº 6942/SE, Relator ministro Roberto Barroso. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6228947;
ADI nº 6943/RN, Relatora ministra Carmen Lúcia. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6228956;
ADI nº 6944/RO, Relator ministro Roberto Barroso Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6228961; ADI nº 6945/PI, Relator ministro Roberto Barroso. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6228962;
ADI nº 6946/PE, Relator ministro Roberto Barroso. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6228973;
ADI nº 6947/MS, Relator ministro Roberto Barroso. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6228974;
ADI nº 6948/MG, Relator ministro Nunes Marques. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6228975;
ADI nº 6949/ES, Relator ministro Dias Toffoli. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6228977;
ADI nº 6950/DF, Relator ministro Roberto Barroso. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6228978;
ADI nº 6951/CE, Relator ministro Edson Fachinº Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6228979;
ADI nº 6952/AM, Relator ministro Edson Fachinº Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6228980;
ADI nº 6953/AL, Relatora ministra Rosa Weber. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6228981;
ADI nº 6954/AC, Relatora ministra Carmen Lúcia. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6228982  

[12] ADI 134 MC, Relator(a): PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado em 13/11/1989; ADI 507, Relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 14/02/1996.

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    é conselheiro e diretor da Escola do TCE-PE e pós-graduado em Direito Constitucional e Administrativo (UFPE). Foi presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon).

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