Opinião

A nova Lei de Ambiente de Negócios e a extinção da teoria ultra vires societatis

Autor

  • Melina Rocha M. Vaz

    é advogada com experiência nas áreas Contratual Empresarial Trabalhista e Regulatório/ Administrativo e especialista em Direito Processual Civil pela Unisul.

7 de outubro de 2021, 21h17

Teoria ultra vires societatis: conceito e aplicabilidade
A teoria ultra vires societatis dispõe que se o administrador, ao praticar atos de gestão, violar o objeto social delimitado no ato constitutivo, esse ato não poderá ser imputado à sociedade. O objeto social, por sua vez, delimita o ramo de atividade da sociedade. Tal teoria, tradicional no ordenamento civil brasileiro, teve sua aplicação extinta pela Lei nº 14.195/2021.

Surgida na Inglaterra, onde foi posteriormente abandonada, e também adotada nos Estados Unidos, onde também não mais subsiste, no ordenamento jurídico brasileiro estava previsto no parágrafo único do artigo 1.015 do Código Civil:

"Artigo 1.015  No silêncio do contrato, os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade; não constituindo objeto social, a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir.
Parágrafo único. O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses:
I
se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade;
II
provando-se que era conhecida do terceiro;
III — tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade".

O contrato social deverá definir quais atos os administradores podem praticar em nome da sociedade. No silêncio do contrato, os administradores podem praticar todos os atos que sejam considerados como "atos de gestão da sociedade", nos termos do caput do artigo acima transcrito.

Portanto, a teoria ultra vires societatis é caracterizada pelo abuso de poder por parte do administrador, o que ocasiona violação do objeto social lícito para o qual foi constituída a empresa. Caracteriza-se pela possibilidade de a sociedade opor ao terceiro o ato praticado pelo administrador além do objeto social.

Na explicitação de Babi Filho (1989), o objeto social é constituído por dois elementos-atividade e fim.

"(…) Será "ultra vires" o ato do administrador praticado em desacordo com estes elementos. É importante observar que este ato poderá ser aquele que está em desacordo com os dois elementos ao mesmo tempo, ou apenas com um deles. Assim, o ato que visa ao lucro, mas está fora da atividade empresarial da sociedade é "ultra vires". E, da mesma forma o é, o ato que, apesar de estar dentro do ramo empresarial da sociedade, não tem por objetivo final o lucro".

Ainda, André Santa Cruz Ramos (2021) explicava:

"Vê-se, pois, que pela interpretação a contrario sensu do parágrafo único do artigo 1.015, em regra a sociedade responde por todos os atos de seus legítimos administradores, ainda que eles tenham atuado com excesso de poderes. De fato, se o Código afirma que a sociedade somente pode opor o excesso contra terceiros em determinadas situações que o próprio legislador elencou, taxativamente, isso significa que nas demais situações o excesso dos administradores não pode ser oposto a terceiros, ou seja, a sociedade terá que responder pelas obrigações decorrentes da atuação excessiva dos seus gestores, não obstante possa depois voltar-se contra eles, em ação regressiva.
 (…)
Enquanto os incisos I e II do artigo 1.015, parágrafo único, do Código Civil tratam das hipóteses em que a sociedade impõe uma limitação de poderes ao administrador, como visto acima, o inciso III cuida de hipótese diversa, relacionada aos casos em que o administrador assume obrigação decorrente de 'operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade'.
Trata o inciso em comento da chamada teoria 'ultra vires', surgida no direito inglês há bastante tempo. Segundo essa teoria, se o administrador celebra contrato assumindo obrigações, em nome da sociedade, em operações evidentemente estranhas ao seu objeto social, presume-se que houve excesso de poderes. Entende-se que bastaria ao credor diligente atentar para a compatibilidade entre a relação jurídica travada com determinada sociedade e o seu respectivo objeto social. Afinal, como já destacado anteriormente, o caput do artigo 1.015 do Código Civil permite ao administrador praticar todo e qualquer ato de gestão dos negócios sociais, mas desde que haja pertinência entre o ato praticado e os negócios sociais".

Destarte, pela teoria ultra vires societatis a sociedade ficava isenta de responsabilidade perante terceiros, a não ser que tenha sido beneficiada com a prática do ato, caso em que passaria a ter responsabilidade na proporção do benefício auferido, como bem evoca a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no Resp. 704.546/DF, através do voto do ministro Luis Felipe Salomão:

"Não se pode invocar a restrição do contrato social quando as garantias prestadas pelo sócio, muito embora extravasando os limites de gestão previstos contratualmente, retornaram, direta ou indiretamente, em proveito dos demais sócios da sociedade fiadora, não podendo estes, em absoluta afronta à boa-fé, reivindicar a ineficácia dos atos outrora praticados pelo gerente".

Apesar de o artigo 1.015 do Código Civil estar disciplinado no capítulo destinado às sociedades simples, aplica-se às sociedades limitadas, pois estas são regidas, em caso de omissão das disposições do seu capítulo, supletivamente pelas normas da sociedade simples, salvo se o contrato social prever a "regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima", nos termos do parágrafo único do artigo 1.053 do Código Civil. Quanto às sociedades anônimas, apesar de a lei das sociedades por ações prever o detalhamento do objeto social, ela não consagrou a teoria ultra vires. Contudo, disciplinou a responsabilização do administrador que viola a lei ou o estatuto. Conforme Rubens Requião (2011):                   

"Não cuidou a lei dos efeitos do ato "ultra vires". Apenas responsabilizou os administradores pelos atos praticados 'com violação da lei ou do estatuto'. Sobre a validade desses atos silenciou. Contudo, a jurisprudência admite a oponibilidade dos atos ultra vires em relação à sociedade anônima, ressalvado ação de regresso em face do diretor com fundamento na teoria da aparência".

Revogação do parágrafo único do artigo 1.015 do Código Civil.
A Lei 14.195/2021 revogou o parágrafo único do artigo 1.015 do CC, acabando com as três exceções presentes no referido artigo.

Vista como um retrocesso por muitos, a teoria ultra vires societatis contrastava com o dinamismo contratual da sociedade atual. A revogação do parágrafo único do artigo 1015 do Código Civil representou uma evolução do Direito Contratual Societário no sentido de não aplicar a teoria ultra vires de forma a não prejudicar terceiros de boa-fé.

Essas exceções recebiam críticas de parcela significativa da doutrina, eis que contribuíam para uma situação de insegurança jurídica, isso porque elas enfraqueciam a proteção que devia ser conferida ao terceiro de boa-fé que contratava com a sociedade. Nas palavras de André Luiz Santa Cruz Ramos (2021):

"(…) A teoria ultra vires, após surgir na Inglaterra e nos Estados Unidos, foi sendo gradativamente abandonada, o que nos permite dizer que, de certo modo, a adoção dessa teoria pelo Código Civil de 2002 representa um retrocesso. É que na maioria das vezes, em razão do dinamismo inerente às atividades econômicas, é muito difícil analisar, em todas as transações negociais, se os poderes dos administradores lhe permitem firmar aquela relação jurídica específica. Portanto, a teoria ultra vires, é inegável, traz consigo uma certa insegurança jurídica para o mercado. Melhor seria, talvez, em homenagem à boa-fé dos terceiros que contratam com a sociedade limitada, reconhecer sua responsabilidade pelos atos ultra vires, mas assegurar-lhe a possibilidade de voltar-se em regresso contra o administrador que se excedeu".

Na mesma direção, o Enunciado 11, da I Jornada de Direito Comercial do CJF:

"A regra do artigo 1.015, parágrafo único, do Código Civil deve ser aplicada à luz da teoria da aparência e do primado da boa-fé objetiva, de modo a prestigiar a segurança do tráfego negocial. As sociedades se obrigam perante terceiros de boa-fé".

Destarte, a não adoção da teoria ultra vires está relacionada ao dever de probidade e ao princípio da boa-fé objetiva que norteia as relações privadas, em especial, no caso em tela, ao fortalecimento da proteção que deve ser conferida ao terceiro de boa-fé que contrata com a sociedade.

Portanto, mesmo havendo excesso de poder por parte do administrador ou prática de atos que não estavam autorizados, a sociedade estará vinculada ao que foi ajustado por ele e será responsabilizada. Isso para prestigiar a boa-fé do terceiro com quem o negócio foi celebrado.

 

Referências Bibliográficas
BARBI FILHO, Celso. Apontamentos sobre a teoria "ultra vires" no direito societário brasileiro. Revista Forense, ano 85, v. 305, jan./mar. 1989.

BRASIL. Lei nº 14.195, de 26 de agosto de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20192022/2021/Lei/L14195.htm#art57. Acesso em: 03 out, 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp. 704.546/DF, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão. D.J. 01 jun. 2010. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/14306523/recurso-especial-resp-704546-df-2004-0102386-0/inteiro-teor-14306524. Acesso em: 03 out.2021.

REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 2. vol. 28 ed. revista e atualizada por Rubens Edmundo Requião. São Paulo: Saraiva, 2011.

RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. 11ª ed., São Paulo: Juspdovim, 2021.

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  • é advogada com experiência nas áreas Contratual, Empresarial, Trabalhista e Regulatório/ Administrativo e especialista em Direito Processual Civil pela Unisul.

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