Opinião

Bolsonaro e a falácia do voto impresso em Bush v. Gore

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7 de outubro de 2021, 6h34

Desde a proclamação da República, as instituições políticas brasileiras encontraram nos Estados Unidos da América uma de suas maiores inspirações. De fato, há muito o que podemos aprender enquanto país com os americanos. Ainda assim, é certo que também há algumas lições que os Estados Unidos poderiam aprender conosco, a exemplo da organização do processo eleitoral.

Em sentido contrário, porém, uma das pautas mais caras ao presidente Jair Bolsonaro e à sua base parlamentar é justamente a (re)implantação do voto impresso no Brasil, modelo que ainda é utilizado na maioria dos condados nos Estados Unidos. Segundo ele — que foi eleito diversas vezes pelo sistema criticado, desde os longos anos como deputado federal —, as eleições brasileiras vêm sendo sucessivamente fraudadas, o que seria culpa da falta de segurança da urna eletrônica. Portanto, seria necessário que o Brasil aderisse ao voto impresso para sanar essas supostas fraudes e garantir eleições limpas e transparentes.

De modo a viabilizar esse ponto da agenda governista, a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) redigiu a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 135/2019, a famigerada PEC do Voto Impresso. A proposta só veio a ganhar mais força em meados deste ano, período em que as acusações de fraude eleitoral por parte de Bolsonaro se tornaram mais frequentes, criando uma crise política com ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e também do Supremo Tribunal Federal.

Nesse ponto, Bolsonaro também parece ter recebido influência americana, mais precisamente do ex-presidente Donald Trump (de quem Bolsonaro é profundo admirador), que foi derrotado nas eleições de 2020 e se recusou a reconhecer o resultado sob alegações não comprovadas de fraude. Desse fato, aliás, evidencia-se que, mesmo diante de um modelo eleitoral majoritariamente impresso, Trump rejeitou a sua derrota sob o pretexto de fraude, causando um tumulto político sem precedentes nos EUA e que culminou com a invasão ao Capitólio em janeiro deste ano, com a morte de cinco pessoas.

Esse fato nos faz questionar, por inteiro, a suposta preocupação de Bolsonaro com a segurança das urnas, sugerindo que suas intenções não são realmente aumentar a transparência e proteger o processo eleitoral. Possivelmente, o que o presidente quer é garantir um motivo para questionar os resultados das próximas eleições — para as quais as pesquisas indicam, com ampla margem, que ele não é o favorito.

O texto original da PEC nº 135/19 acrescentava o §12º ao artigo 14 da Constituição Federal, propondo a seguinte redação: "§12. No processo de votação e apuração das eleições, dos plebiscitos e dos referendos, independentemente do meio empregado para o registro do voto, é obrigatória a expedição de cédulas físicas conferidas pelo eleitor, a serem depositadas, de forma automática e sem contato manual, em urnas indevassáveis, para fins de auditoria".

Por ocasião do parecer do deputado Filipe Barros (PSL-PR) na Comissão Especial da Câmara que apreciou a matéria, a PEC foi radicalmente alterada. Entre as mudanças, o relator incluiu uma seção de disposições transitórias, cujo artigo 4º, II, tinha o seguinte teor: "A apuração dos votos dar-se-á exclusivamente de forma manual, por meio da contagem de cada um dos registros impressos de voto, em contagem pública nas seções eleitorais, com a presença de eleitores e fiscais de partido" (grifo do autor).

Como salta aos olhos, a PEC nº 135/19 ficou ainda pior após esse parecer substitutivo, o que levou à sua rejeição tanto na Comissão Mista quanto no Plenário da Câmara dos Deputados. Na nossa leitura, isso se deve a dois motivos principais. Em primeiro lugar, a proposta faz lembrar o período da República Velha (1889 — 1930), quando a fraude eleitoral e o voto de cabresto eram, infelizmente, a regra. Caso a PEC fosse aprovada, esse poderia voltar a ser um grande problema no país, considerando a influência de oligarquias em cidades do interior e de milícias nos maiores centros urbanos. Em segundo lugar, a dificuldade logística de contar manualmente cerca de 150 milhões de votos é colossal e contrasta com um dos principais benefícios da urna eletrônica, que é a divulgação dos resultados no mesmo dia das eleições.

A bem da verdade, há um exemplo muito claro na história constitucional recente dos EUA a denotar os problemas do voto impresso e da contagem manual. Trata-se do caso Bush v. Gore (2000), que significou a judicialização das eleições presidenciais daquele ano e teve como resultado a Suprema Corte — um órgão de legitimidade democrática indireta — decidindo quem seria o vencedor.

Para melhor compreensão dos antecedentes do caso, faz-se necessária uma breve explicação sobre o sistema eleitoral dos Estados Unidos. Diferentemente do Brasil, a eleição presidencial nos EUA é indireta. Assim, a cada Estado é atribuído um número de delegados, que são quem efetivamente vota para presidente. Ao final da contagem, "the winner takes all", isto é, "o vencedor leva tudo", tendo todos os votos dos delegados daquele Estado computados a seu favor, o que já fez com que presidentes fossem eleitos mesmo perdendo no voto popular — foi o caso de Trump.

Estabelecidas essas premissas, passamos ao cenário da eleição presidencial de 2000. No dia 7/11 daquele ano, as urnas de praticamente todos os Estados já haviam sido contabilizadas, indicando 267 votos para o republicano George W. Bush e 246 para o democrata Albert "Al" Gore. Restava apenas a contagem na Flórida, cujo colégio eleitoral era de 25 delegados — de modo que quem vencesse as eleições ali, venceria as eleições por inteiro. A primeira contagem naquele Estado apontava 2.909.135 votos para Bush e 2.907.351 para Gore, com uma diferença ínfima de 1.784 votos em um conjunto de quase seis milhões. Diante desse contexto, o próprio Al Gore telefonou a Bush para reconhecer a vitória do adversário e parabenizá-lo, como é tradição nos EUA. Contudo, o imbróglio ainda estava muito longe de acabar.

Como grande parte da legislação eleitoral nos EUA é de competência estadual, permite-se que cada condado utilize o tipo de cédula eleitoral que preferir.  O condado de Palm Beach, por exemplo, utilizava uma cédula de papel com campos a serem perfurados pelo eleitor para indicar o candidato escolhido. Entretanto, a distância entre cada campo era muito pequena, causando muitos erros por parte dos eleitores, especialmente idosos — que, na Flórida, são muitos. Provavelmente por isso, Pat Buchanan, um candidato de pouca expressão no resto do país, ganhou muitos votos naquele condado, sendo curioso que seu nome vinha muito próximo do de Al Gore, um dos dois favoritos. Acrescente-se que a cédula mais comum no restante do Estado não era muito melhor, tendo muitos casos em que o trecho do papel que era perfurado acabava ficando preso na cédula, ocasionando erros de leitura pelas máquinas e uma quantidade inesperada de votos em branco.

Em atenção a essa considerável possibilidade de erros, a legislação eleitoral da Flórida previa uma recontagem geral dos votos no caso de diferença de 2% ou menos entre os principais candidatos, a ser feita através de um sistema mecânico. Após ser informado desse fato pelos advogados do Partido Democrata, Gore telefonou novamente para Bush e, numa situação constrangedora, "revogou" o reconhecimento da própria derrota, que já havia sido divulgado no noticiário nacional. O resultado dessa primeira recontagem foi proclamado no dia 10/12 e fez a votação ficar ainda mais apertada, agora com irrisórios 324 votos a favor do republicano.

Na sequência, os democratas decidiram fazer uso de outra norma eleitoral do Estado que, na hipótese de a recontagem mecânica não solucionar a ínfima disparidade de votos, permitia a realização de uma recontagem manual dos votos. Para dificultar as coisas, a mesma norma também estabelecia que a apuração manual deveria ser finalizada em até sete dias do início do pleito, ou seja, dia 14/12. Assim, Al Gore pediu a recontagem somente nos quatro condados cujos resultados mais destoavam das pesquisas de "boca de urna" e que eram conhecidos redutos democratas, incluindo Palm Beach.

Nesse ponto, é importante destacar que as autoridades estaduais responsáveis pela eleição eram ninguém menos que o governador Jeb Bush, irmão de George W. Bush, e a secretária de Estado Katherine Harris, uma das chefes da campanha do candidato republicano naquele estado. Coincidentemente, algumas comissões eleitorais apresentaram resistência ao pedido de recontagem manual, pleito que poderia favorecer o democrata. Foi aí que Gore começou a judicializar a questão, impetrando ações mandamentais nos condados mais resistentes.

Em resumo, os casos chegaram à Suprema Corte da Flórida, que, com maioria de juízes indicados por governadores democratas, determinou a recontagem manual até 26 de novembro, o que estava sendo dificultado em função de diversas manifestações políticas de cada lado e de frequentes impugnações por fiscais de ambos os partidos. Nessa data, apesar de alguns condados ainda estarem contando, e do próprio condado de Miami-Dade (o mais populoso do Estado) ter desistido expressamente de contar, Harris certificou o encerramento da votação, homologando a vitória de Bush por 537 votos.

Irresignado, Gore conseguiu uma nova decisão favorável da Suprema Corte estadual em 8/12, desta vez para invalidar o resultado proclamado por Harris. Na mesma ocasião, o tribunal impôs a recontagem manual de todos os votos que passaram pelo sistema mecânico e ainda não haviam sido revistos por mãos humanas, a despeito de o prazo legal já ter sido ultrapassado havia muito tempo — o que também houve com a própria dilação deferida pela corte anteriormente.

Porém, os republicanos recorreram à Suprema Corte dos Estados Unidos, que deferiu, no dia 9/12, uma liminar — algo raro em sua jurisprudência — de suspensão da recontagem até a sua manifestação definitiva. Esse julgamento final não demorou para chegar, perfazendo um prazo que ficou muito aquém da média de tempo em que a corte costumava julgar os casos, visto que as sustentações orais foram feitas no dia 11 e a decisão foi proferida no dia 12.

Os argumentos de Bush eram, em síntese, os seguintes: a um passo, o republicano alegava que a decisão da Suprema Corte estadual violava a "equal protection clause" (cláusula de igual proteção perante as leis) da XIV Emenda ao admitir a recontagem em diversos condados, que poderiam fazê-lo através de critérios distintos, ferindo os direitos daquele candidato. A dois, Bush sustentou que o tribunal de origem também violara o princípio da separação dos poderes, em especial o Artigo II, Seção 1, Cláusula II, da Constituição Americana, qual seja: "Each State shall appoint, in such Manner as the Legislature thereof may direct, a Number of Electors […]" ("Cada Estado deverá indicar, na forma prevista pela sua legislação, um número de delegados […]" — grifo do autor). Nesse sentido, a tese republicana era de que o Judiciário estadual havia interferido indevidamente na seara do Legislativo ao ignorar o prazo legal para fim das votações, efetivamente alterando as regras do jogo que já estava em curso.

Por sua vez, Gore defendia que todos os votos deveriam ser corretamente contados, de modo a se conhecer a real intenção dos eleitores, eliminando a dúvida existente sobre a quantidade extraordinária de votos em branco ter ou não ocorrido por engano. Noutro giro, o democrata rebatia o primeiro argumento do adversário ao dizer que os condados de todo o país se organizam de formas variadas, o que levaria a concluir que Bush não poderia questionar a disparidade de critérios apenas entre aqueles condados da Flórida.

A decisão da Suprema Corte foi dividida em duas partes. Primeiro, por sete a dois, os juízes declararam que a XIV Emenda era, sim, violada pela disparidade de critérios de recontagem. Veja-se que, até aí, Al Gore ainda poderia sair vitorioso do julgamento e da eleição, bastando que a recontagem fosse feita de forma uniforme. Entretanto, a segunda parte da decisão fulminou qualquer esperança do democrata: por cinco a quatro, a Suprema Corte entendeu que o Judiciário estadual não poderia alterar as regras da legislação eleitoral da Flórida. Além disso, a decisão considerou que o prazo para a reunião dos delegados nas capitais de cada estado, definido em lei federal e que era 18 de dezembro no caso, estava próximo demais para que qualquer outra recontagem acontecesse. Inclusive, essa mesma lei federal dispunha que, naquele ano, todas as controvérsias sobre a eleição no âmbito estadual deveriam se encerrar até o dia 12 — mesmo dia em que a corte emitiu sua decisão final.

Essa decisão foi bastante prejudicial para o prestígio da Suprema Corte americana, já que, na segunda parte, os juízes indicados por presidentes republicanos votaram a favor de Bush e, aqueles indicados por presidentes democratas, votaram a favor das teses de Gore. Justamente por isso, trata-se de um exemplo clássico de judicialização da política. No mesmo sentido, a decisão ficou marcada como um caso de ativismo judicial, dado que um dos critérios para se reconhecer uma decisão judicial ativista é, segundo William Marshall [1], "decidir para satisfazer interesses político-partidários".

Outra linha de questionamento ao julgado se dá pelo fato de que o Judiciário americano raramente interfere em questões eleitorais, seguindo o precedente estabelecido pela Suprema Corte em Luther v. Borden (1849), o que não impediu que esse mesmo tribunal decidisse, indiretamente, o resultado das eleições no caso Bush.

De Bush v. Gore (2000), é possível extrair a grande dificuldade de coordenar uma eleição em escala nacional que dependa do voto em papel atualmente, mesmo para uma potência global como os EUA. A todo momento, novos erros de contagem eram revelados, causando confusão no público e na mídia. Do mesmo modo, ficou exposta a influência de autoridades locais no curso da contagem e das sucessivas recontagens, o que dialoga com o apontado anteriormente com relação ao poder que certos grupos ainda guardam no nível municipal do Brasil.

Não se diz que o sistema eleitoral brasileiro é perfeito ou que melhorias não seriam bem-vindas. Pelo contrário, de fato há uma certa lacuna em transparência com o eleitor que Bolsonaro soube aproveitar muito bem para espalhar dúvidas sobre todo o processo. Ainda assim, não há evidências concretas de fraudes em larga escala que permitam uma reestruturação tão drástica, especialmente em um período de instabilidade como o dos dias de hoje.

Concluímos, diante de todos esses pontos, que a Câmara dos Deputados fez bem ao enterrar a PEC nº 135/19. Impediu-se, assim, que o Supremo Tribunal Federal tivesse de julgar, eventualmente, um Bush v. Gore brasileiro.

 


[1] Marshall cita os "sete pecados do ativismo judicial" em: MARSHALL, William. Conservative and the seven sins of judicial activism. University of Colorado Law Review, Vol. 73, Set. 2002, p. 104.

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