Opinião

Ainda menos voz aos silenciados

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7 de outubro de 2021, 19h12

Nem bem se iniciou o julgamento da ADI nº 6.865 e de outras 21 ações constitucionais análogas, a questionar a constitucionalidade do poder de requisição da Defensoria Pública, e já somos tomados de perplexidade diante dos fundamentos formal e informalmente apresentados em amparo à pretensão do Ministério Público Federal.

E, convindo bem nomear nossos afetos, é de perplexidade que se trata quando nos deparamos com a extravagância de argumentos como os que presumem uma intenção da Defensoria Pública de se tornar uma instituição de "superadvogados", numa pretensa quebra de paridade entre seus agentes e aqueles que exercem a advocacia. Há, ainda, os que reduzem nosso poder de requisição previsto em lei complementar federal (artigo 128, X, da LC 80/94) — assim como se dá com a contagem em dobro de todos os prazos (artigo 128, I) — a uma prerrogativa que nos asseguraria paridade de armas com o Estado acusador, representado especialmente pelo Ministério Público, justamente aquele que pretende a inconstitucionalidade de nosso poder requisitório.

Para melhor esclarecer tantos e tão graves mal-entendidos, melhor que comecemos do princípio.

Com essa proposta, em primeiro lugar, cabe destacar que a Defensoria Pública não se confunde com a advocacia, o que se infere da própria Constituição, que inclusive trata das funções em seções separadas — diferentemente do que se dava antes da Emenda Constitucional nº 80/14. Enquanto a advocacia figura na Seção III do capítulo que trata das funções essenciais à Justiça, a defensoria figura na Seção IV. Localizado naquela, o artigo 133 da CF assim resume as funções da advocacia — referindo-se ao advogado: "O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei". Por sua vez, já na Seção IV, o artigo 134 assim define a Defensoria Pública e suas funções: "A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do artigo 5º desta Constituição Federal".

Ora, não é necessário maior esforço hermenêutico para se concluir, especialmente a partir da simples leitura dos dispositivos acima transcritos, que dizemos de coisas distintas quando tratamos de Defensoria Pública e de advocacia [1]. Não se trata de saber qual é melhor ou mais importante, numa infantilização do debate que mais parece voltada à ocultação das questões que realmente importam. Trata-se de saber o que é advocacia e o que é Defensoria Pública, o que implica bem delimitar suas diferenças, que, diga-se, são essenciais, a começar pelo fato — expressamente disposto no texto da CF — de que aquela instituição atua numa dimensão pública, cuja missão transcende o imediato do interesse privado do cidadão assistido para submeter-se aos princípios e objetivos constitucionais, especialmente aqueles voltados à redução das desigualdades sociais (CF, artigo 3º, III e IV) pela via da garantia de acesso à Justiça aos cidadãos vulneráveis, destacadamente em termos econômicos (CF, artigo 134 c/c artigo 5º, LXXIV).

Nesse ponto, cumpre lembrar que, num Brasil historicamente marcado pela pobreza — que cresce —, cerca de 80% de nossa população desponta como potencialmente assistida pela Defensoria Pública [2]. Estamos, portanto, no registro quantitativo das funções públicas desempenhadas por uma instituição — pública — umbilicalmente vinculada a princípios e objetivos constitucionais de máxima importância, principalmente quando se tem em mente o compromisso histórico assumido pela Carta de 1988 com a transformação do estado de coisas marcado por uma desigualdade que ainda nos prende a um passado escravocrata, sempre nos conduzindo a uma espécie de futuro do pretérito.

Assim, por uma simples questão de adequação entre meios e fins — algo lógico —, para missões públicas de tamanha grandeza e extensão são necessários poderes públicos de atuação a elas adequados, tal como se dá com o poder de requisição, que não torna o defensor público um superadvogado — tampouco um "miniadvogado" —, até porque não se trata de advogado, mas de um agente público comprometido com a assistência jurídica a cerca de 80% da população brasileira.

O que está sub judice, cabe refletir, não diz de uma estranha partilha de poder. A Corte Suprema, no caso em apreço, caminha pelas veredas da cidadania e lá adiante, encontrará o necessitado caminhante, sob todos os aspectos, perdido no emaranhado de leis e códigos, aprisionado nas interpretações que se colocam como obstáculo ao fortalecimento de uma das instituições responsáveis pela efetividade do acesso à Justiça, portanto, por sua condição de cidadão, considerado aquele que tem direito a ter direitos. A porta estará, como sempre, semicerrada.

No ponto, há de se observar que o poder de requisição não é prerrogativa exclusiva da magistratura ou do Ministério Público, mas é outorgada a distintas instituições, sejam promocionais, como é o caso do conselho tutelar (artigo 136 do ECA), ou de fiscalização, como é a Controladoria-Geral da União (artigo 51 da Lei Federal nº 13.844/19).

É justamente por isso, por razões públicas constitucionalizadas — de razões históricas —, que a defensoria, com seus pouco mais de cinco mil defensores estaduais e menos de 700 federais, na defesa dos direitos de seus mais de 150 milhões potenciais assistidos, conta com a requisição e com as outras prerrogativas distribuídas nos treze incisos do artigo 128 de sua lei de regência (LC 80/94). Ou seja, não se trata de uma prerrogativa atribuída ao defensor público para torná-lo melhor que o advogado, mas de um entre outros instrumentos de ordem pública — como é o caso da contagem em dobro de todos os prazos — que permitem à instituição exercer com eficiência seu múnus (CF, artigo 37), em defesa dos direitos dos cidadãos a que assiste, os quais existem em número suficiente — e crescente — a justificar as referidas prerrogativas.

Esclarecido que o poder de requisição não há de ser debatido tendo por referência uma comparação entre as funções de defensoria e advocacia, cumpre tratar da atuação da defensoria perante o Ministério Público. Se é essa a questão, ficaremos basicamente restritos à relação entre acusação e defesa, em que, salvo melhor juízo, a paridade de armas há de ser assegurada, como se extrai de texto e contexto constitucionais. Ou seja, se for essa a abordagem, reputamos impossível que se identifique qualquer inconstitucionalidade em um poder de requisição assegurado por lei complementar a uma instituição destinada a assistir juridicamente os vulneráveis em busca de alguma isonomia, formal e material.

Em verdade, além de ser indispensável ao exercício de nossas funções públicas, nosso poder de requisição não gera quaisquer prejuízos, o que induz àquela perplexidade anunciada no início do texto diante do empenho do Ministério Público em privar-nos desse instrumento. Aliás, trata-se de uma perplexidade que só faz aumentar se bem observamos as funções do Ministério Público tais quais previstas no artigo 127 da CF. Afinal, se lhe cabe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, não seria de se esperar uma atuação voltada à concretização digna e eficiente do acesso à Justiça por parte dos vulneráveis pelos meios e instituições constitucionalmente previstos, a fim de reduzir as desigualdades sociais e construir uma sociedade mais justa?

Data venia, não é a esse fim que serve a pretensão de inconstitucionalidade deduzida pelo Ministério Público e sobre a qual propomos a presente reflexão. Como precisamente percebeu o antropólogo Robert W. Shirley, "o Brasil é uma terra de contradições jurídicas dramáticas, não apenas nos duros conflitos entre classes sociais, mas também entre as próprias organizações. É uma terra com uma elite jurídica altamente desenvolvida, com fortes elementos progressistas, cujas leis, cuidadosamente elaboradas, são muitas vezes alteradas ou completamente ignoradas in praxis" [3]. Desse modo, a cada primavera, desde 1988, criaturas fantasmagóricas aparecem pelas veredas jurídicas, rondando as leis, insistindo em assombrar a cidadania, em assegurar uma boa distância entre textos, discursos e práticas, para que tudo permaneça como sempre foi.

Escapando ainda ao tradicional binômio estabelecido entre as searas civil e criminal, pensado numa lógica individualista, é necessário atentar, como reconhecido pelo próprio Supremo Tribunal Federal em outra iniciativa ministerial voltada a ceifar poderes — constitucionais e legais — das Defensorias Públicas, que esta instituição tem o dever de atuar coletivamente em prol de pessoas ou grupos em situação de vulnerabilidade. Logo, é não só compatível, mas sobretudo necessário ao exercício de funções públicas tão amplas o acesso a mecanismos ou instrumentos de força pública que as viabilizem. A esse respeito, convém rememorar que a própria Corte Suprema admitiu que o Ministério Público exerça poderes investigatórios ao arrepio de previsão específica ao reputar, em síntese, que isso derivaria de sua missão constitucional mais ampla, decorrendo daí os poderes implícitos correspondentes (RExt 593.727). Ou seja, ao Estado-acusação se reconhecem poderes implícitos de duvidosa legitimidade quando se atenta aos debates da constituinte, ao passo que ao Estado-defesa (base primeira de um Estado de Direito, fundado na contenção de poder) são negados os poderes explicitamente conferidos pelo Parlamento.

Dito isso, àqueles que sejam pouco informados ou familiarizados com o cotidiano da Defensoria Pública — ou mesmo aos que ainda não se dedicaram a pensar no que representa a instituição no contexto brasileiro —, cumpre destacar que o poder de requisição é por nós especialmente utilizado em desafogo ao sistema de Justiça, na obtenção de certidões e informações que, solicitadas uma a uma ao Judiciário, somente contribuiriam para uma prestação jurisdicional morosa e contrária a princípios constitucionais que regem a atuação pública e, especificamente, o acesso à justiça e o exercício da jurisdição. Em suma, a requisição é meio adequado ao alcance dos fins que a Constituição atribui não só à defensoria, mas ao próprio sistema de Justiça, mostrando-se essencial, entre outros, para a solução extrajudicial de conflitos — que é também dever institucional (artigo 4º, II, da LC 80/94) —, para o exercício da ampla ou plena defesa em processos penais sem atraso à prestação jurisdicional, bem como ao melhor acompanhamento da execução penal, da qual somos fiscais (LEP, artigo 81-A) e, portanto, comprometidos com esforços no sentido de ao menos mitigar a situação medieval de nossos cárceres, já reconhecida pelo STF como caracterizadora de um estado de coisas inconstitucional (ADPF nº 347).

A propósito, quando se pensa na questão penitenciária, devemos destacar que a Defensoria é responsável pela assistência jurídica direta à maioria absoluta de nossos encarcerados, tendo no poder de requisição importante instrumento para o eficiente exercício dessa atribuição. Ou seja, a cassação de nosso poder de requisição, além de contrariar previsões constitucionais e infraconstitucionais já referidas — entre outras —, concorreria para o agravamento do panorama já declarado caótico pela Corte Suprema, inviabilizando especialmente a busca por tutelas coletivas, preconizada pela Constituição, assimilada pelo novo viés da LEP e reclamada pela realidade vivenciada, com graves efeitos sobre questões basilares como saúde prisional. Não há possibilidade de atuação extraprocessual de caráter coletivo ou de preservação individual a direitos pela Defensoria Pública sem que se possa questionar e requisitar as informações necessárias ao exercício desse múnus, de importância inclusive preventiva e desempenhado quase que exclusivamente pela instituição, em razão de sua presença constante nos estabelecimentos prisionais brasileiros. Em suma, declarar que o sistema prisional brasileiro se encontra em estado falimentar e, ao mesmo tempo, retirar prerrogativa de questionamento da instituição pública de maior importância para a solução do problema é um verdadeiro contrassenso lógico-jurídico.

As considerações até aqui expostas evidenciam que o poder de requisição assegurado à Defensoria Pública está a serviço da Constituição, dos princípios e objetivos que a animam, de modo que, neste difícil momento, só nos resta relembrar o questionamento externado pela ministra Cármen Lúcia, justamente na ocasião em que se afastou contestação do Ministério Público Federal à legitimidade constitucional da defensoria para a atuação coletiva (RE nº 733.433), diante, pois, de situação que gerava perplexidade semelhante à de que agora tratamos: se é um meio adequado ao alcance dos fins constitucionalmente estabelecidos para a instituição e para a própria República Federativa do Brasil, cujo manejo não gera prejuízos, a quem — e por que — interessa retirar da Defensoria Pública seu poder de requisição?

 

Domingos Barroso da Costa
é defensor público no Rio Grande do Sul.
Arion Escorsin de Godoy
é defensor público no Rio Grande do Sul.
Andrey Régis de Melo
é defensor público no Rio Grande do Sul.
André Castanho Girotto
é defensor público no Rio Grande do Sul.
Patrícia Kettermann
é defensora pública no Rio Grande do Sul.
Pedro Carriello
é defensor público no Rio de Janeiro.
Rafael Raphaelli
é defensor público no Rio Grande do Sul.


[1] A propósito, vale remeter às questões debatidas na ADI5334.

[2] IBGE — INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. Disponível em <https://censo2010.ibge.gov.br/resultados.html>. Acesso em 05 out 2021.

[3] SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 89.

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